Sou um grande fã de rock clássico.

A minha banda favorita, de todos os tempos, foi fundada na Inglaterra, nos anos 60, por quatro músicos.

Não, não são os Beatles!

Estou falando do Pink Floyd.

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A música deles é fantástica. Os shows eram incríveis!

Mas devo confessar: o que eu mais gosto no Pink Floyd são as letras das canções.

Uma delas, em particular, sempre me faz parar para pensar. Estou fazendo o que eu queria da minha vida? Estou usando bem o pouco tempo que tenho aqui?

É a música “Time” (“Tempo”). A letra da canção começa falando de como é bom ser jovem e ter todo o tempo do mundo.

You are young and life is long and there is time to kill today.
(Você é jovem, a vida é longa, e você pode matar tempo hoje.)

Mas, quando você menos percebe, os anos se passaram – e você ficou para trás. Ninguém te disse quando começar a correr. Você perdeu a largada.

And then one day you find ten years have got behind you.
No one told you when to run, you missed the starting gun.
(E então um dia, você vê que 10 anos ficaram para trás.
Ninguém te disse quando correr. Você perdeu o tiro de partida.) 

Alguma vez você já teve essa impressão de que todos à sua volta saíram correndo, enquanto você ficou parado, sem saber que devia ter corrido também?

Eu tive.

Pelo menos duas vezes.

A PRIMEIRA VEZ QUE EU PERDI A LARGADA

Foi no final do internato. Faltavam poucas semanas para a minha formatura na faculdade de Medicina.

Fui me inscrever no concurso para a residência médica.

Meio sem saber direito o que eu queria da vida, optei pela Clínica Médica. (A Clínica Médica é um grande coringa: enquanto se especializa em generalidades, você tem mais 2 anos para pensar no que você quer fazer.)

O problema foi na hora de montar o meu currículo.

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Ao tentar juntar os certificados das atividades que eu tinha feito durante o curso de graduação, encontrei vários certificados de palestrinhas e jornadinhas sobre tudo quanto é assunto. Um ou outro trabalho. Sem foco nenhum. Quase nenhum congresso. Quase nenhum estágio. Nenhum intercâmbio. Nenhuma participação em liga ou centro acadêmico.

O currículo de muitos dos meus concorrentes a uma vaga na residência era bem melhor que o meu. Iniciação científica. Monitoria. Trabalhos publicados.

Essa foi a primeira vez que eu senti que tinha perdido a largada.

Eles tinham saído correndo. Eu fiquei andando, sem muita direção.

Mas isso não me desanimou. Pelo contrário: estudei bastante! Botava música bem alta enquanto eu lia e relia meus livros e cadernos e fazia provas e simulados.

E passei na residência – em primeiro lugar.

Mas sempre ficou a sensação de que eu podia ter feito mais durante a faculdade, se tivesse me ligado que tinha que correr!

A SEGUNDA VEZ QUE EU PERDI A LARGADA

Dez anos depois de formado, residência feita, especialista em Clínica e em Endocrinologia, mestrado, docente universitário e atendendo em consultório: eu estava me esforçando para correr. Não queria mais ficar para trás.

Um belo dia, no hospital universitário, um docente mais antigo, por quem sempre eu tinha tido muito respeito e alguma admiração, me pediu para ver uma paciente.

Era uma gestante que estava internada por hipertensão de difícil controle e que tinha desenvolvido uma lesão de pele muito estranha.

A princípio não entendi direito. Por que ele precisava da minha opinião? Nem parecia ser um caso de Endocrinologia! (Na época, eu só pensava endocrinologicamente.)

Mas, como o professor pediu – e eu fiquei muito curioso – fui lá ver.

Eram lesões castanho-avermelhadas, com crostas e algumas bolhas, nas extremidades dos membros superiores e inferiores, que tinham aparecido há poucas semanas. Pioravam quando ela tomava sol. Além das lesões, ela começou a ter uma diarreia de vez em quando.

E mais nada. Exame físico normal (fora as lesões). Criança bem. Glicemia e TSH normais.

Faça o diagnóstico diferencial”, disse o colega mais velho.

E eu lá entendia de lesão de pele?…

Abri o livro e fui procurar.

Acabei fazendo uma lista enorme de possíveis diagnósticos. Dezenas de doenças que podiam cursar com lesões de pele. Muitos nomes que eu nunca tinha ouvido falar.

Mas, se me perguntassem quais eram as minhas principais suspeitas (dentro daquela lista imensa), eu não ia conseguir responder.

E foi isso mesmo que o professor me perguntou.

Eu não sabia.

Foi quando ele exclamou, triunfante:

– É uma pelagra! Caso típico!

Nesse momento, eu vi que tinha perdido outra largada.

Fiquei para trás numa corrida que eu nem sabia que existia.

Eu não tinha aprendido a raciocinar direito.

A CORRIDA DO RACIOCÍNIO CLÍNICO

Aquele professor mais graduado era o Dr. Pedro Gordan, nefrologista, clínico muito experiente e um grande interessado em Clínica Médica e em raciocínio clínico.

Minha admiração por ele cresceu depois desse diagnóstico difícil.

Mas eu fiquei pensando: como ele conseguiu chegar a esse diagnóstico?…

POR QUE A PACIENTE TINHA PELAGRA?

Lesões típicas da pelagra em extremidades. (Fonte: Manual Merck)

pelagra é causada pela deficiência de niacina, ou vitamina B3, e cursa com a tríade: dermatite, diarreia e demência, embora nem todos os pacientes tenham todos os três componentes.

(Um quarto “D” pode ser a morte: death.)

Muito comum em alcoólatras e pessoas com má absorção, a pelagra também pode ser efeito adverso de algumas medicações, como a isoniazida.

Aquela gestante vinha usando hidralazina para controle da hipertensão. No livro, a hidralazina não é listada como causa comum de pelagra. No entanto, hidralazina pode causar deficiência de piridoxina (vitamina B6). E a deficiência de piridoxina pode bloquear a biossíntese da niacina – causando pelagra!

De fato, quando a paciente parou de usar hidralazina e começou a repor vitaminas do complexo B, seus sintomas melhoraram completamente.

COMO ELE FEZ ESSE RACIOCÍNIO?

Quando perguntei isso, ele me indicou o livro do Dr. Jerome Groopman, “Como os médicos pensam”, que tinha acabado de ser publicado. No livro, o Dr. Groopman comenta sobre os processos do raciocínio clínico diagnóstico, sobre os sistemas de pensamento e sobre as potenciais fontes de erro diagnóstico.

Eu nunca tinha ouvido falar disso. Nem na graduação, nem na pós-graduação ou na residência.

Era um mundo novo que se descortinava: entender como os médicos pensam e fazem diagnósticos – ou deixam de fazê-los!

Fiquei fascinado.

Desde então, não parei mais de ler a respeito e de discutir o assunto sempre que posso. Aprendi bastante.

Achei outros amigos que também gostam do tema, como o Dr. Fabrizio Prado, meu colega na UEL.

Dez anos depois, aqui está o resultado: este site que você está lendo agora.

VAMOS FALAR MAIS DE RACIOCÍNIO CLÍNICO?

O raciocínio clínico, como já dissemos inúmeras vezes, é um dos três pilares do diagnóstico correto, junto com a coleta de dados e o conhecimento médico.

Portanto, é uma competência fundamental para a formação e a atuação de qualquer médico.

Como estudantes aprendem a raciocinar?

Geralmente, vendo médicos mais experientes raciocinarem – e imitando. (Leia sobre a importância de ter bons modelos no nosso post sobre identidade profissional.)

No entanto, nem sempre o processo de raciocínio de um clínico experiente consegue ser inteiramente claro para os alunos.

Às vezes, o expert faz um diagnóstico que lhe parece óbvio, mas nem consegue explicar direito como chegou ali. Boa parte do processo de raciocínio pode ocorrer de forma “intuitiva”, no subconsciente do médico. E os alunos ficam tentando “juntar os pontos” com as partes que eles conseguiram captar, para montar uma imagem do processo como um todo. Muitas vezes, por conta própria. Muitas vezes, sem ajuda. Muitas vezes, da forma errada.

(A verdade é que quase todo médico acaba aprendendo, na prática, como fazer seu raciocínio clínico diagnóstico. Mas geralmente é por um processo de tentativa e erro – com muitos erros no caminho!)

O interessante é que o processo de raciocínio clínico diagnóstico pode ser dividido em etapas bem distintas, para fins didáticos.

E todas essas etapas podem ser estudadasensinadas e praticadas!

Etapas do Raciocínio Clínico Diagnóstico

  • Rapport (construir relação médico-paciente)
  • Coleta de dados
  • Representação do caso
  • Geração de hipóteses
  • Comparação de scripts de doenças
  • Coleta guiada de dados adicionais
  • Diagnóstico (“final” ou provisório) 

Quando aprender raciocínio clínico?

Quanto antes, melhor! De preferência, desde o primeiro ano da faculdade.

Infelizmente, ainda são bem poucos os cursos de Medicina que dedicam pelo menos algumas horas a discutir abertamente os fundamentos do raciocínio clínico e as causas de erro.

Na maioria dos escolas médicas, os professores simplesmente assumem que os alunos vão aprender a raciocinar sozinhos.

Esses alunos, assim como eu, acabam perdendo a largada. Durante vários anos, vão atuar com uma formação insuficiente do raciocínio clínico. Falta-lhes um dos três pilares do diagnóstico. Ficam para trás na corrida para tornar-se bons clínicos e diagnosticadores competentes.

Quem você acha que vai errar menos?

Quem você acha que o mercado vai preferir?

E você? Onde você quer ficar nessa corrida?

Peça à sua escola para introduzir atividades sobre raciocínio clínico.

E, claro: fique ligado no nosso site para sair sempre na frente!

Ouça o Pink Floyd: não há tempo a perder!

Aproveite e ouça a inesquecível “Time” do Pink Floyd, no vídeo acima!

PARA SABER MAIS:

Sanders L. Dizzying symptoms. New York Times, 2010.

Autor: Leandro Arthur Diehl

Você pode referenciar o artigo acima usando o Digital Object Identifier (Identificador de Objeto Digital) – DOI.

DOI: 10.29327/823500-54