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Um paciente de 52 anos com história de diabetes chama o SAMU porque está tendo uma dor no peito “que vai e vem” nos últimos dois ou três dias, mas que aumentou de intensidade nas últimas 2 horas.

Foi rapidamente levado para o hospital de referência, para melhor avaliação do quadro.

Duas horas depois, a central do SAMU recebe uma segunda ligação do mesmo paciente.

Ele havia sido avaliado e liberado para casa “porque o eletro estava normal”. Mas ele continuava com dor no peito, ainda mais forte do que antes, associada a dispneia e mal-estar.

O médico regulador decide encaminhá-lo para outro hospital, onde o paciente apresentou uma parada cardíaca em fibrilação ventricular.

Após reanimação, foi submetido a um cateterismo que mostrou obstrução do tronco da coronária esquerda.

síndrome coronariana aguda: um desafio diagnóstico

Você já deve ter ouvido uma história como esta, não é?

síndrome coronariana aguda (SCA), que inclui a angina instável e o infarto agudo do miocárdio (IAM) com e sem supradesnivelamento do segmento ST, atualmente é uma das maiores causas de morte no mundo.

No entanto, também é uma das situações em que mais se cometem erros diagnósticos. E isso não ocorre apenas em hospitais pequenos e sem recursos. Pode acontecer em qualquer lugar, com qualquer um.

Quem já deu alguns plantões em serviços de urgência e emergência sabe que nem sempre é fácil fazer o diagnóstico correto de SCA nesse contexto. A necessidade de tomar decisões rápidas, muitas vezes com informações incompletas, aumenta a chance de erros.

Por isso, não é uma grande surpresa o fato de que 2% a 8% dos pacientes que procuram atendimento por IAM acabam saindo sem o diagnóstico correto.

Infelizmente, esses pacientes com diagnóstico “perdido” de IAM acabam evoluindo com maior risco de morte ou de complicações potencialmente fatais.

Péssimo para os pacientes, péssimo para os médicos. Erros diagnósticos associados a IAM ou SCA estão entre as cinco maiores causas de processos contra médicos emergencistas.

como melhorar a avaliação da síndrome coronariana aguda?

Conhecer as principais armadilhas diagnósticas é o primeiro passo para evitá-las!

Para aumentar a segurança diagnóstica em casos difíceis de SCA, seria importante que os profissionais que fazem o atendimento inicial ganhassem mais familiaridade com alguns aspectos importantes como:

  • fisiopatologia dos casos atípicos;
  • as diferentes manifestações possíveis da síndrome;
  • e as limitações dos testes diagnósticos usados na avaliação desses pacientes.

Por isso, resolvemos ajudar quem trabalha nos pronto-socorros e setores de urgência e emergência, atendendo pacientes com dor no peito o tempo todo.

Fizemos um levantamento da literatura, conversamos com especialistas no assunto e listamos abaixo as 7 maiores armadilhas no diagnóstico da síndrome coronariana aguda (além de uma dica bônus que você não pode perder).

Confira e compartilhe com seus colegas! Estas informações podem ajudar a salvar vidas!

As 7 maiores armadilhas no diagnóstico da síndrome coronariana aguda ( sca )

1. não pensar em sca porque a dor é "atípica"

A inervação sensitiva do coração é do tipo visceral, e não somática. Isso significa que a representação no córtex dos estímulos dolorosos originados do coração é menos específica.

Além disso, o coração compartilha “viscerótomos” (o equivalente dos dermátomos, na pele) com o esôfago, estômago, intestino delgado, trato biliar, pâncreas, baço e cólon.

É por isso que a dor originada do miocárdio nem sempre é sentida na região anatômica correspondente ao coração, e nem sempre a dor sentida no precórdio é originada do coração!

Dor precordial “típica” é a queixa principal em apenas 40% a 75% dos pacientes com um IAM. Pacientes com isquemia miocárdica podem sentir dor referida em qualquer lugar do tórax, ou nas costas, epigástrio, pescoço, mandíbula ou braço (esquerdo ou direito), em qualquer combinação.

Eu mesmo conheci um médico que começou a ter uma dor forte na mandíbula que o fez procurar um dentista, achando que era dor de dente – mas depois descobriu que havia infartado!

Mais raramente, a dor pode ser sentida apenas no abdome inferior, no quadril ou na cabeça.

tipo de dor também é amplamente variável.

Embora a maioria dos médicos associe a síndrome coronariana a uma dor tipo “aperto” ou “peso”, os pacientes com angina podem ter experiências dolorosas diferentes (“facada”, “pontada” ou outras), e também podem usar palavras ou termos muito diversos para descrever o que estão sentindo.

2. não pensar em sca porque o paciente não tem dor

Você já deve ter ouvido falar que “diabéticos infartam sem dor”, não é? De fato: cerca de 30% dos portadores de diabetes sofrem IAM de forma completamente indolor, o que provavelmente se deve à desnervação do miocárdio por neuropatia autonômica diabética.

A novidade é que isso não ocorre apenas em pessoas com diabetes. Pode ocorrer também em pacientes idosos, especialmente após os 75 anos, quando até 50-60% dos casos de SCA e IAM podem ocorrer na ausência de dor!

Infartos indolores também são mais comuns em mulheres e em pacientes com história prévia de insuficiência cardíacaAVC ou demência.

Mas IAM sem dor pode ocorrer mesmo em pacientes fora desses grupos!

Veja, por exemplo, a história do ator Raul Gazolla!

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A pista para pensar em SCA nesses casos é ficar atento para outros possíveis sintomas de isquemia coronariana, os chamados “equivalentes isquêmicos”:

  • dispnéia de início súbito, especialmente aos esforços (que parece ser uma apresentação mais comum de SCA do que a dor precordial, em pacientes muito idosos);
  • surgimento agudo de estertores ou sibilos à ausculta pulmonar em pacientes sem história prévia de asma ou doença pulmonar;
  • sintomas neurológicos de início súbito (síncope, delírio ou AVC);
  • insuficiência cardíaca franca, arritmias novas ou bloqueio atrioventricular;
  • diaforese inexplicada (lembrando de descartar hipoglicemia, se o paciente tem diabetes), náuseasfadiga ou fraqueza.

Pacientes com múltiplos fatores de risco para doença cardiovascular que se apresentem com um ou mais dos sintomas acima devem ser investigados para a possibilidade de SCA, mesmo na ausência de dor – especialmente se forem muito idosos ou tiverem diabetes.

O grande problema é o IAM que ocorre de forma completamente assintomática, sem dor e sem nenhum equivalente isquêmico. Este é o verdadeiro “IAM silencioso”!

No estudo de Framingham, encontraram-se infartos sem história de dor em 28% dos casos em homens e 35% dos casos em mulheres. Em metade desses casos, uma entrevista cuidadosa encontrou pelo menos alguns sintomas (mesmo atípicos) que poderiam ser equivalentes isquêmicos. Mas a outra metade foi completamente assintomática, detectada apenas pelo eletrocardiograma ou outros exames.

Nestes casos de IAM sem sintoma algum (cerca de 15% a 20% dos episódios de IAM), pode-se culpar o médico por não ser capaz de fazer o diagnóstico?

Claro que não!

Este é um exemplo dos chamados “erros sem culpa”.

Mas é claro que precisamos melhorar nossas estratégias de detecção desses casos, com mais pesquisas e melhores testes diagnósticos.

3. não pensar em sca porque o paciente é jovem ou mulher

Já publicamos num post anterior a história de um homem de 42 anos com dor típica mas em que o médico não considerou SCA porque ele era muito jovem.

Cuidado! Até 10% dos casos de IAM ocorrem em pacientes com menos de 45 anos. Os maiores fatores de risco para SCA em jovens parecem ser a história familiar de doença coronariana prematura e o tabagismo.

Outro grupo em que pode haver subdiagnóstico de SCA são as mulheres.

Apesar da doença arterial coronariana ser a causa número um de morte em ambos os sexos, sabe-se que, em mulheres com dor no peito, é menos provável que os médicos suspeitem de SCA ou peçam testes diagnósticos para avaliar essa possibilidade.

Interessante é que mulheres tendem a ter uma apresentação um pouquinho diferente: têm mais dispnéia, náusea e dor na mandíbula, pescoço e dorso, e menos diaforese em comparação com os homens.

A Dra. Miranda Bayley, do seriado Grey’s Anatomy, sabe muito bem disso! (Veja vídeo abaixo.)

4. Descartar SCA porque a dor tem uma duração “muito grande”

O paciente do início deste texto tinha dor há dois dias, o que pode ter contribuído para o médico concluir que era pouco provável tratar-se de SCA. Afinal, dor de angina dura em torno de 5 a 10 minutos, e dor de infarto costuma durar de 20 minutos a algumas horas – não foi isso que você aprendeu em Semiologia?

Esta armadilha ocorre por falta de conhecimento da fisiopatologia das síndromes coronarianas agudas.

A história do paciente com aterosclerose coronariana pode ser dividida, de forma didática, em três diferentes fases:

a) o desenvolvimento de placas de ateroma no endotélio vascular, levando à redução gradual da luz do vaso. Este processo geralmente leva vários anos ou décadas, e costuma ser assintomático ou se acompanhar de angina estável;

b) a ruptura do endotélio e exposição parcial do conteúdo da placa de ateroma, levando à agregação plaquetária e formação inicial de trombos locais (“instabilização” da placa). Conforme a trombose progride e oclui o vaso, o paciente experimenta dor isquêmica; mas também ocorre ao mesmo tempo o processo de trombólise endógena, que pode aliviar a obstrução vascular e a dor. Nesta fase de “briga” entre a trombogênese e a trombólise, que pode levar minutos, horas ou vários dias, o paciente ter episódios repetidos de dor, de duração variável, em repouso ou não, representando a angina instável;

c) a trombose total e oclusão completa do vaso, levando à lesão isquêmica e necrose de porções variáveis do miocárdio, onde o paciente freqüentemente experimenta piora da dor que já vinha tendo: ao invés de intermitente, passa a ser contínua e de maior intensidade. Neste ponto, o paciente já progrediu para infarto, com ou sem supradesnivelamento de ST.

Assim sendo, é bem freqüente que o paciente que chega ao pronto-socorro com um IAM (dor no peito tipo aperto, de forte intensidade, contínua, irradiando para membro superior ou pescoço, há várias horas, associada muitas vezes a dispnéia, diaforese ou náuseas) tenha uma história prévia de vários dias com dor no peito mais leve, associada aos esforços ou não, durando poucos minutos e que melhorava com repouso.

Portanto, a história de dor no peito moderada e intermitente há vários dias, antes do quadro atual de dor contínua e de mais forte intensidade há poucas horas, não deve diminuir, mas sim aumentar a suspeita de SCA!

Inclusive, imagine como seria bom se todos os pacientes com SCA pudessem ser diagnosticados (e tratados) na fase de angina instável, antes de evoluir com dano isquêmico irreversível ao miocárdio! Muitas complicações seriam evitadas.

Outro problema diretamente relacionado à duração da dor tem a ver com a indicação de terapia de reperfusão de urgência (angioplastia ou trombólise).

Em pacientes que sofrem um IAM, há benefício clínico dessa terapêutica apenas se o paciente tem menos de 12 horas de dor.

Mas é preciso tomar muito cuidado para não confundir a dor da angina instável precedente, que pode começar alguns dias antes do infarto, com a dor do infarto em si!

A janela de 12 horas para indicação de terapia de reperfusão deve começar a ser contada apenas a partir do momento em que a dor do paciente assume as características da dor de infarto: contínua, de maior intensidade, com mais sintomas associados.

Por isso, tome muito cuidado ao colher a história clínica do paciente, para conseguir identificar esse momento da maneira mais acurada possível! 

5. Descartar SCA porque o paciente tem dor à palpação do tórax

Este é um clássico: no paciente com queixa de dor aguda no peito, afasta-se a possibilidade de origem isquêmica se a dor for estimulada ou aumentada pela palpação da parede torácica.

Errado!

Dor desencadeada ou reproduzida pela palpação da parede torácica associa-se a IAM em até 15% dos casos.

Portanto, embora esse achado possa diminuir um pouco a probabilidade de SCA como causa da dor no peito, jamais deve ser usado como único critério para descartar essa possibilidade.

Não caia nessa armadilha!

6. Descartar SCA porque o eletro está normal

eletrocardiograma é um exame simples, barato e importantíssimo para avaliação inicial da dor torácica na urgência.

Mas sabe qual a sensibilidade de um único exame eletrocardiográfico, na chegada do paciente, para detectar IAM?

Em torno de 50%!

Lembre-se que as síndromes coronarianas agudas são processos dinâmicos: o paciente pode chegar ao pronto-socorro ainda na fase de angina instável (em que o eletro pode estar rigorosamente normal); depois evoluir para IAM sem supradesnivelamento do segmento ST (em que pode haver apenas alterações eletrocardiográficas discretas ou inespecíficas), e talvez só depois disso manifestar o clássico supra de ST.

Portanto, uma solução é fazer a “curva” de eletrocardiograma: repetir o exame a intervalos de poucas horas para detectar possíveis mudanças no traçado, sugestivas de lesão isquêmica.

Muito melhor, não é?

Mesmo assim, a literatura mostra que, dos pacientes que permanecem com eletro normal durante a “curva”, cerca de 15% acabam sendo mais tarde diagnosticados com IAM!

Outro problema é que pode haver achados eletrocardiográficos difíceis de avaliar ou interpretar, se o paciente tem um infarto em parede posterior ou inferior do miocárdio, bloqueio do ramo esquerdo ou outras alterações como sobrecarga de ventrículo esquerdo ou taquiarritmias.

Por isso, tome cuidado: eletro normal afasta IAM com supra de ST, mas não afasta síndrome coronariana aguda!

7. Descartar sca porque a troponina não subiu

troponina é uma proteína produzida exclusivamente no miocárdio, cujos níveis aumentam no sangue no caso de lesão cardíaca. É um exame sensível e específico para detecção de isquemia ou necrose do miocárdio, inclusive em casos mais leves em que não chega a ocorrer alteração eletrocardiográfica típica (ou seja, nos casos de IAM sem supradesnivelamento de ST).

No entanto, é preciso conhecer as limitações da troponina, para não cair em outra armadilha!

Troponina aumentada indica necrose das células do coração, por isso seus níveis podem estar normais em pacientes com síndrome coronariana que ainda não evoluiu para necrose – ou seja, na angina instável.

Além disso, apesar de bastante específica, sabe-se que a troponina também pode aumentar em outras doenças do miocárdio (cardiomiopatia, injúria elétrica pós-desfibrilação, pericardite, miocardite, contusão miocárdica) e se sua excreção estiver diminuída (na insuficiência renal avançada).

[ dica bônus ] não considerar outras causas de dor torácica

Apesar de ser essencial considerar SCA como causa de dor no peito na urgência, também é importantíssimo considerar outras explicações que podem ser igualmente graves e fatais!

Por isso, suspeitou de SCA? Suspeite automaticamente também de dissecção aguda de aorta, pneumotórax hipertensivo, tromboembolismo pulmonar, pericardite/miocardite e ruptura de esôfago (síndrome de Boerhaave).

Examine o paciente com essas hipóteses em mente.

Desnudar o paciente para examiná-lo também pode ser a única coisa que você precisa fazer para encontrar as lesões de pele típicas de um herpes zoster.

Conclusões

Avaliar o paciente com dor torácica na urgência pode ser um desafio para médicos emergencistas, por isso é importante conhecer as principais armadilhas no diagnóstico da síndrome coronariana aguda.

Mesmo assim, na vida real, pode restar considerável dúvida em muitos casos.

Nessas situações, com alto risco de cometer algum erro, o que fazer?

Minha sugestão é: escolha que tipo de erro você prefere cometer.

Você prefere:

  1. Errar por achar que o paciente não tem nada de grave, mandá-lo para casa e ele morrer de IAM?
  2. Errar por achar que o paciente tem uma síndrome coronariana aguda, mantê-lo internado e depois concluir que ele não tem nada de grave?

Lembram do paciente de 52 anos do início deste texto? O médico que o liberou para casa, no primeiro hospital, preferiu o erro 1.

Teria ajudado mais o paciente se tivesse optado pelo erro 2!

Na dúvida, prefira errar por excesso de segurança.

Mantenha o paciente em observação por mais um tempo, repita os exames, deixe o tempo ajudar a definir melhor o quadro.

Afinal, sua avó já dizia: cautela e caldo de galinha não fazem mal a ninguém!

Agradecemos imensamente ao Dr. Ricardo José Rodrigues, médico cardiologista e docente da Universidade Estadual de Londrina (UEL), que inspirou e ajudou a escrever e revisar este post.

Muito obrigado! 

PARA SABER MAIS:

Ghaemmaghami CA, Brady Jr. WJ. Pitfalls in the emergency departament diagnosis of acute myocardial infarction. Emergency Medicine Clinics of North America, 2001.

Fai MLK. Pitfalls and red flags in common clinical syndromes. The Singapore Family Physician, 2014.

Autores:

Leandro Arthur Diehl, Ricardo José Rodrigues

Você pode referenciar o artigo acima usando o Digital Object Identifier (Identificador de Objeto Digital) – DOI.

DOI:10.29327/823500-66