A curiosidade é uma característica importante na formação dos médicos?
O que você acha?
Primeiro, vou contar por que resolvi explorar este tema.
Nas férias de verão, perguntei ao meu filho Lucio (que considero um médico bem aparelhado para exercer a Medicina com rigor e respeito aos pacientes):
“Qual é a qualidade mais importante que você vê em um estudante de Medicina? E qual conselho você daria a seu pai blogueiro, que anda atrás de um assunto palpitante?”
Ele respondeu no ato:
“A curiosidade. Escreva sobre a curiosidade na Medicina.”
Então está aí, filho!
“Deixa de ser curiosa, menina!”
“Não meta o nariz onde não foi chamada!”
“A curiosidade matou o gato!”
“Para de especular a vida alheia!”
“Vai cuidar da sua vida!”
“Xereta!”
Todo mundo já deve ter ouvido uma frase dessas alguma vez na vida, não é?
Essas afirmações são originárias de adultos impacientes – ou, pior, de déspotas da Idade das Trevas.
Inibir a curiosidade dos estudantes ou dos jovens médicos é impedir sua aprendizagem e tolher sua criatividade.
Infelizmente, a estrutura hierárquica da cultura médica e a pressa, muitas vezes falsa, na resolução de problemas, criam um ambiente hostil ao questionamento por parte de estudantes e residentes.
Dessa maneira, surge uma abordagem da profissão que redunda em malefícios aos pacientes, por conhecimentos incompletos, histórias clínicas medíocres e exames em excesso.
Em primeiro lugar, é a inconformidade em receber somente o conhecimento mínimo e estéril. É dedicar-se à procura daqueles pequenos detalhes que fazem a Medicina ser tão fascinante!
Segundo, é pesquisar informações que permitam enfrentar as incertezas inerentes ao dia a dia do exercício da profissão.
Finalmente, é a curiosidade respeitosa que devemos ter para nos inteirarmos de detalhes da vida dos pacientes. Ela nos permite estabelecer uma relação de confiança e assim obter dados imprescindíveis para o diagnóstico e tratamento dos seus males.
Então, quais são os principais inimigos da curiosidade na Medicina?
1)As escolas de Medicina são, na sua maioria, anticuriosidade, na medida em que privilegiam a transmissão dos conhecimentos automaticamente, através de aulas teóricas, sem estímulo ao diálogo. Os estudantes adoram ser “alimentados de colher”, isto é: receber a matéria mastigada, sem estímulo ao questionamento. Além disso, estudantes também têm uma preocupação excessiva e irracional por notas. A obsessão em estudar para as provas ocorre em detrimento da obtenção de conhecimento prático significativo, que só pode ser alcançado através da curiosidade.
2)A prepotência e a pressa intempestiva, muitas vezes manifestadas em nome da eficiência, por colegas e preceptores. Juntamente com a obediência cega à hierarquia, esses fatores inibem qualquer possibilidade de perguntas ou dúvidas. Ou seja: bloqueiam a curiosidade. Quem nunca viu colegas correndo feito baratas tontas nas emergências dos hospitais atrás de soluções apressadas que poderiam ser resolvidas com tranquilidade? Nessa hora, o interno, doido para tirar uma dúvida, é inibido pela habitual resposta:
“E isto é hora de perguntar?!”
Há uma cultura de extirpar a curiosidade, ao invés de “matar” (ou satisfazer) a curiosidade dos estudantes.
3)A curiosidade é sensível ao desconforto e à angústia. Por isso, ela é inibida quando o ambiente está carregado de emoções negativas, como quando o estudante é obrigado a enfrentar situações inesperadas, de alta ansiedade ou atende um paciente muito doente. O médico, em nome da objetividade e da eficiência, muitas vezes se distancia dos problemas para cuidar da sua própria sanidade mental. Isso também colabora para bloquear a curiosidade, que poderia ser útil na solução dos problemas dos pacientes.
4)O excesso de confiança, que se manifesta na causa mais comum de erro diagnóstico: o viés do fechamento prematuro. Na ânsia de “resolver logo” um problema, o estudante tende a fechar o diagnóstico antes de analisar todas as possibilidades. Esse viés inibe a curiosidade e a busca por explicações alternativas que poderiam ser mais adequadas, levando o médico o estudante a cometer erros.
Há várias maneiras de estimular a curiosidade durante a formação médica:
1)Provocando a curiosidade inata do estudante. Para isso, é preciso não só dar liberdade e espaço para perguntas, mas ajudar o estudante a formular questões. Isto se faz criando um ambiente amigável e seguro, dando exemplos e participando efetivamente das dúvidas, sem falsa modéstia. Só assim estaremos colaborando com nossos estudantes para aumentar a sua capacidade de fazer questionamentos.
2)Usando as chamadas metodologias ativas de aprendizagem. Metodologias como o Problem-Based Learning (PBL), o Team-Based Learning (TBL) e, principalmente, o Case-Based Learning (CBL) facilitam a interação entre os pares e o instrutor. A aprendizagem, assim, ocorre de forma ativa, estimulada pelas dúvidas que surgem e reforçada pelas perguntas a serem resolvidas no grupo ou em pesquisas posteriores.
3)Quem?, Quando?, Onde?, Como? e Por Quê? são excelentes instrumentos para equipar um estudante para manter seu espírito inquieto. Dessa maneira, estaremos formando “estudantes para toda a vida”, que vão sempre dar seu melhor para exercer bem seu trabalho.
4)A metacognição, que consiste em pensar sobre o que se está pensando ou fazendo, é uma forma de equacionar e dirigir o raciocínio e a mente para uma consciência plena. Alguns exemplos de como estimular a metacognição são as seguintes perguntas:
“O que mais pode ser?”
“Estou muito cansado?”
“Estou irritado com este paciente?”
“Meu diagnóstico leva em conta toda a informação existente?”
“O tratamento instituído está dando resultado?”
“Devo parar e repensar tudo de novo?”
“Preciso pedir ajuda de outro colega ou professor?”
Bons cirurgiões cultivam o hábito de diminuir o ritmo da cirurgia para reavaliar o processo. Quando paramos para refletir durante um procedimento ou intervenção, chamamos o processo de reflexão em ação.
5)O preceptor precisa prestar atenção para perceber quando o estudante age com excesso de confiança. Também precisa notar quando o estudante mostra pouca habilidade para lidar com situações delicadas e inesperadas no seu relacionamento com o paciente e sua família. Nesses casos, uma intervenção cuidadosa e equilibrada pode ajudar o estudante a reencontrar seu caminho.
A curiosidade talvez seja a maior força para impulsionar a aprendizagem!
Citando Thomas Friedman, articulista do New York Times e vencedor do Prêmio Pulitzer, autor do livro “O mundo é plano: uma breve história do século XXl”:
O Dr. Lucio Navarro Gordan, citado no início deste post, é médico formado pela Universidade Estadual de Londrina, com residência em Oncologia no Shands Cancer Hospital, da Florida University.
Recentemente, o Dr. Lucio foi nomeado Presidente do Florida Cancer Specialists (FCS & Research Institute, LLC), a maior organização de Oncologia e Hematologia de propriedade de médicos nos Estados Unidos.
Ele mora em Gainesville, Florida, e de vez em quando colabora com palpites para este site.
Ficou curioso, né? Para ouvir essa história verídica (e mais outra tão curiosa quanto), assista ao vídeo do Dr. Pedro Gordan, logo abaixo:
Roman, Brenda. Curiosity: a best practice in education. Medical Education, 2011.
Dyche, Lawrence; Epstein, Ronald M. Curiosity and medical education. Medical Education, 2011.
Pluck, Graham; Johnson, Helen. Stimulating curiosity to enhance learning. GESJ: Education Science and Psychology, 2011.
Autor: Pedro Alejandro Gordan
Você pode referenciar o artigo acima usando o Digital Object Identifier (Identificador de Objeto Digital) – DOI.
DOI: 10.29327/823500-51
This website uses cookies so that we can provide you with the best user experience possible. Cookie information is stored in your browser and performs functions such as recognising you when you return to our website and helping our team to understand which sections of the website you find most interesting and useful.
Strictly Necessary Cookie should be enabled at all times so that we can save your preferences for cookie settings.
If you disable this cookie, we will not be able to save your preferences. This means that every time you visit this website you will need to enable or disable cookies again.