Existe algum segredo para aumentar a aprendizagem a partir da discussão de casos clínicos? Claro que sim! Um deles é a reflexão estruturada

Neste artigo, vamos falar sobre como usar a reflexão estruturada para potencializar sua aprendizagem usando casos clínicos!

A IMPORTÂNCIA DO RACIOCÍNIO CLÍNICO NA FORMAÇÃO MÉDICA

Os profissionais de saúde, em especial os médicos, se dedicam à arte do cuidado.

Tal conceito, longe de ser tratado em suas nuances filosóficas, é claramente identificado como o foco da prática médica. Por isso, deve ser levado à excelência, seja durante a atuação no dia-a-dia, seja durante a formação acadêmica do profissional.

Isto posto, podemos perceber que o aspecto chave para a prática em saúde é o diagnóstico. Esse conceito é definido por Manuila (2003) como a “determinação da natureza de uma doença, após recolha das informações dadas pelo doente, do estudo dos seus sinais e sintomas, dos resultados dos exames laboratoriais.

Essa definição do diagnóstico pode ser entendida de duas maneiras: indicar o resultado último do processo diagnóstico, ou o processo adotado para atingir o resultado final (Chiffi, 2021).

Diante disso, o diagnóstico, visto como processo, pode ser escrutinado em sua estrutura, e, visto como resultado do processo, pode ser aprimorado visando a uma maior acurácia.

É nesse contexto que o raciocínio clínico aparece como peça fundamental em ambos os sentidos, haja vista ser o núcleo do pensamento utilizado pelo médico.

MAS O QUE É, AFINAL, o RACIOCÍNIO CLÍNICO?

Uma boa definição de “raciocínio clínico” é a proposta por Higgs (2006):

“Raciocínio clínico é uma maneira contexto-dependente de pensar e tomar decisões na prática profissional para guiar ações práticas. Isso envolve a construção de narrativas para dar sentido aos múltiplos fatores e interesses pertinentes à tarefa de raciocinar. O raciocínio clínico ocorre dentro de um conjunto de ‘espaços de problema’ orientado pelas referências do profissional, pelo contexto da sua atuação profissional e pelos seus modelos de prática, bem como pelos contextos do paciente. Para ocorrer, utiliza-se das dimensões essenciais do conhecimento prático, raciocínio e metacognição, e também se apóia nessas capacidades em outras pessoas. A tomada de decisões, dentro do raciocínio clínico, ocorre em níveis micro, macro e meta, e pode ser conduzida de forma individual ou colaborativa. Também envolve as meta-habilidades de diálogo crítico, geração de conhecimento, autenticidade do modelo de prática e reflexão.”

Diante dessa definição, é visível a interação do raciocínio clínico com o processo de decisão, guiando o profissional em suas ações. 

Então, o raciocínio clínico permite:

  • a identificação (ou rejeição) de uma doença como provável diagnóstico;
  • a explicação dos achados e as mais prováveis causas para eles;
  • a predição do curso da doença;
  • por fim, a modificação do curso previsto da doença, por meio de tratamento adequado ao quadro.

Embora as habilidades de coleta de dados (anamnese, exame físico e exames complementares) e o estudo das patologias sejam amplamente desenvolvidos na formação médica, muito pouco é falado sobre o raciocínio clínico diagnóstico e como desenvolvê-lo.

A inclusão no currículo de atividades de ensino sobre os processos mentais do raciocínio clínico pode ser muito útil na constituição de melhores processos diagnósticos, menos erros diagnósticos, e melhores tratamentos e prognósticos.

ESTUDO POR CASOS CLÍNICOS

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Dentre as várias formas de desenvolver o raciocínio clínico e o processo diagnóstico, a discussão de casos clínicos apresenta-se como alternativa interessante aos iniciantes – como os acadêmicos com pouca experiência prática e que ainda não se encontram no internato. Logo, estudar casos é uma boa maneira de desenvolver competências essenciais à prática médica, ainda antes de iniciar a vida de hospital.

Para isso, os casos são montados de maneira a simular uma situação clínica real, em que o estudante ou médico estaria diante de um paciente com determinado quadro clínico. Esse profissional então seguiria as etapas de um atendimento: identificação e queixa principal, aprofundamento direcionado da anamnese, exame físico, geração de hipóteses, comparação de scripts, busca racional de dados adicionais (da história, exame físico ou exames complementares), até chegar a um diagnóstico de trabalho que permita a tomada de decisões.

Entretanto, é comum que ocorram dificuldades ao longo do caminho. Os estudantes podem achar difícil a coleta ou a interpretação dos dados, por falta de prática. Os médicos podem ter dificuldades em interpretar exames complementares, ou em reconhecer patologias raras.

É aí que entram os casos clínicos como boa opção para resolver esse problema, permitindo que os estudantes ou profissionais pratiquem habilidades e fixem conhecimentos essenciais ao processo diagnóstico. Ao seguir todos os passos de um processo de raciocínio real, pode-se exercitar o quanto quiser a investigação de determinado sintoma, patologia ou área de especialidade de interesse para o aprendizado.

Diante da importância do estudo por meio de casos clínicos e do seu potencial de aprimoramento do processo diagnóstico, por meio do raciocínio clínico, abaixo traremos os resultados de dois trabalhos científicos que investigaram a reflexão estruturada como ferramenta de aprendizagem.

REFLEXÃO ESTRUTURADA FUNCIONA?

Silvia Mamede e colaboradores, em um trabalho publicado em 2013, investigaram se a reflexão estruturada poderia aumentar a retenção de conteúdo e a acurácia diagnóstica de estudantes.

Para tanto, realizaram um ensaio clínico randomizado, no qual alunos prestes a entrar no internato passavam por uma fase de aprendizado, composta por sete casos clínicos de sete diferentes doenças (duas delas eram ensinadas previamente).

Durante essa fase de aprendizado, os alunos liam as descrições das duas doenças principais analisadas (Infarto agudo do Miocárdio e Coledocolitíase). Posteriormente, os alunos foram divididos em três grupos, sendo que cada um resolvia os casos clínicos de maneira distinta:

  1. diagnóstico simples (escreviam o mais provável),
  2. diagnóstico diferencial (escreviam alguns mais prováveis), e
  3. reflexão estruturada.

A reflexão estruturada consistia nos seguintes passos:

  • escrever o diagnóstico mais provável,
  • listar os achados que favoreciam o diagnóstico inicial,
  • listar os achados que falavam contra o diagnóstico inicial, e
  • listar os dados que estavam ausentes, mas que seriam esperados nesse diagnóstico.
  • Depois, escreviam outros diagnósticos diferenciais, ranqueando todos eles em ordem de probabilidade.

Uma semana mais tarde, realizavam um teste diagnóstico, com dez novos casos clínicos de dez diferentes doenças (duas doenças eram as mesmas da fase de aprendizado, 4 doenças eram relacionadas às primeiras – possíveis diagnósticos diferenciais – e o restante eram doenças aleatórias).

O resultado do artigo foi a confirmação da hipótese inicial: o método da reflexão estruturada permitiu aos alunos vantagem sobre os demais colegas na acurácia diagnóstica uma semana depois do aprendizado, tanto nas doenças ensinadas previamente, quanto nas doenças semelhantes e que poderiam ser diagnósticos diferenciais.

POR QUE A REFLEXÃO ESTRUTURADA FUNCIONA?

Em uma continuação do trabalho anterior, Ribeiro et al (2018) fizeram um estudo para determinar os mecanismos pelos quais a reflexão estruturada levaria à melhora do aprendizado.

Duas possibilidades foram aventadas: a motivação do estudante ao resolver casos clínicos, ou a ativação de processos cognitivos facilitadores.

Para isso, realizaram um ensaio clínico randomizado, consistindo em três fases:

  • a primeira era a resolução de dois casos clínicos sobre icterícia,
  • a segunda era o aprendizado com um texto didático de icterícia,
  • a terceira foi um teste de evocação, avaliando a acurácia de cada grupo no diagnóstico de icterícia.

Os participantes foram divididos novamente em dois grupos: 

  1. aqueles que realizariam o processo de reflexão estruturada (semelhante ao artigo anterior), e
  2. aqueles que fariam apenas um diagnóstico diferencial. 

Por fim, cada grupo era dividido novamente em dois, durante a fase de aprendizado: um deles tinha tempo livre para ler, e o outro tinha tempo restrito.

Ao final, portanto, foram comparados quatro grupos de estudantes:

  1. reflexão estruturada com tempo livre,
  2. reflexão estruturada com tempo restrito,
  3. diagnóstico diferencial com tempo livre, e
  4. diagnóstico diferencial com tempo restrito.

Entre a resolução dos casos, foram aplicado dois testes: o AKG (“awareness of knowledge gaps”) e o SI (“situational interest”). O primeiro tinha como objetivo verificar se os estudantes tinham ciência do quanto sabiam ou não sabiam, e o segundo visava avaliar o quanto eles estavam focados na tarefa.

Os resultados mostraram que o grupo com reflexão estruturada foi superior ao do diagnóstico diferencial no teste de evocação, demonstrando novamente o melhor aprendizado e a maior acurácia diagnóstica obtidos com esse método.

Além disso, observou-se que o grupo da reflexão estruturada teve melhor pontuação tanto no teste SI quanto no teste AKG após cada caso clínico, mostrando que a reflexão traz consigo melhora na autoavaliação dos estudantes sobre as deficiências de seu conhecimento e maior engajamento no percurso do estudo.

Contudo, não houve diferenças entre os grupos com ou sem tempo restrito, o que deixa claro que as diferenças nos resultados não têm a ver com o tempo gasto para estudo, mas sim com o método usado para avaliar o caso.

CONCLUSÕES

Diante do exposto neste artigo,  pode-se perceber como o desenvolvimento do raciocínio clínico é fundamental para a capacidade diagnóstica dos estudantes e futuros médicos.

Para tanto, a resolução de casos clínicos é uma ferramenta excelente para a preparação desses profissionais, pois avaliar doenças hipotéticas facilita o seu reconhecimento em casos reais no futuro.

Além disso, como vimos nos estudos citados, pode-se potencializar a aprendizagem usando casos clínicos com o uso da reflexão estruturada uma técnica que mostrou-se capaz de melhorar a acurácia diagnóstica, o engajamento dos estudantes e a sua percepção sobre as lacunas do próprio conhecimento, de forma independente do tempo de estudo.

PARA SABER MAIS:

CHARLIN B, TARDIF J, BOSHUIZEN H. Scripts and medical diagnostic knowledge: theory and applications for clinical reasoning instruction and research. Academic Medicine, Volume 75, Issue 2, p. 182-190, Feb 2000. Disponível em: Scripts and Medical Diagnostic Knowledge: Theory and Applica… : Academic Medicine (lww.com). Acesso em: 14 maio 2021.

CHIFFI, Daniele. Foundations of Clinical Diagnosis. In: CHIFFI, Daniele. Clinical Reasoning: Knowledge, Uncerteainty, and Values in Health Care. 1ª edição. Local: Springer, 2021. p. 9-12.

DIAGNÓSTICO. In: MANUILA L., MANUILA A., LEWAJLE P., NICONLIN M. Dicionário Médico. Lisboa: Climepsi editores, 2004. p. 195.

HIGGS J. The complexity of clinical reasoning: exploring the dimensions of clinical reasoning expertise as a situated, lived phenomenon. [Seminar presentation at the Faculty of Health Sciences, University of Sydney, Australia, 5 May] 2006.

MAMEDE Sílvia, MD, PhD, VAN GOG Tamara, PhD, MOURA Alexandre S., MD, PhD, FARIA Rosa M. D., MD, PhD, PEIXOTO José Maria, MD, MSc, and SCHMIDT Henk G., PhD. How Can Students’ Diagnostic Competence Benefit Most from Practice with Clinical Cases? The Effects of Structured Reflection on Future Diagnosis of the Same and Novel Diseases. Academic Medicine, Vol. 89, No. 1, Jan 2014. Disponível em: How Can Students’ Diagnostic Competence Benefit Most From Pr… : Academic Medicine (lww.com). Acesso em: 14 maio 2021.

RATCLIFFE TA, DURNING SJ. Theoretical concepts to consider in providing clinical reasoning instruction. In: Trowbridge RL, Rencic JJ, Durning SJ. Teaching Clinical Reasoning. 1ª ediçao. Local: American College of Physicians: Philadelphia, PA; 2015:13–30.

RIBEIRO Maria C., MAMEDE Silvia, MD, PhD, BRITO Eliza Maria, MD, MSc. MOURA Alexandre S, MD, PhD, FARIA Rosa Malena D., MD, PhD. Exploring mechanisms underlying learning from deliberate reflection: An experimental study. Medical Education, Vol. 55, Issue 3, p. 404-412, Nov 2020. Disponível em: Exploring mechanisms underlying learning from deliberate reflection: An experimental study – Ribeiro – 2021 – Medical Education – Wiley Online Library. Acesso: 14 maio 2021.