Quando eu ainda era estudante de Medicina, lembro de ter saído todo confiante de uma das primeiras aulas de Semiologia.

Agora já sei examinar pacientes!

Isso, depois de uma única aula teórica, de duas horas…

Hoje, vinte e muitos anos depois (e trabalhando como professor de Semiologia), é evidente para mim que toda aquela autoconfiança da época não era justificada.

Mas como eu não percebi isso na época? Como eu não consegui ver que o pouco que eu havia aprendido de Semiologia era só a pontinha do iceberg? Por que eu não me liguei que ainda havia muito mais a aprender?

Hoje, também sei explicar o que houve. Simplesmente, eu fui mais uma vítima do efeito Dunning-Kruger: a confiança exagerada dos incompetentes.

Continue lendo para entender mais sobre esse fenômeno, que está por trás de muitos erros e decisões ruins nas nossas vidas, e qual sua importância para o raciocínio clínico!

O suco de limão da invisibilidade

efeito-dunning-kruger-raciocinio-clinico-suco-de-limao

Em 6 de janeiro de 1996, McArthur Wheeler roubou dois bancos na cidade de Pittsburgh, nos Estados Unidos, em plena luz do dia. O mais interessante: não usou nenhuma máscara ou disfarce, e nem sequer tentou se esconder das câmeras de segurança.

Pouco depois, as filmagens das câmeras foram mostradas na TV. McArthur foi identificado e preso pouco menos de uma hora depois disso.

Mas eu usei o suco de limão!” exclamou o ladrão, incrédulo, ao ser levado à delegacia.

Alguém havia dito a McArthur que esfregar suco de limão no rosto o tornaria invisível para as câmeras de segurança.

O próprio McArthur não acreditou muito nisso ao ouvir essa “dica” pela primeira vez. Por isso, antes de qualquer coisa, fez um experimento em si mesmo. Esfregou suco de limão no rosto e, com a pele e os olhos ardendo, tirou uma selfie com uma câmera Polaroid (era 1996). Qual não foi sua surpresa: seu rosto não apareceu na foto! Por isso, ele foi todo confiante roubar os bancos, certo de que não poderia ser identificado.

(Os detetives que o prenderam, depois de rir muito, concluíram que o filme da câmera devia estar estragado, ou que McArthur errou o enquadramento.)

A história foi publicada num jornal de Pittsburgh e chamou a atenção de David Dunning, um professor de psicologia da Universidade de Cornell. Como alguém poderia ficar tão confiante numa idéia tão absurda – e não ter a menor dúvida de que não daria certo?

Dunning chamou um aluno, Justin Kruger, para investigar a idéia de que a confiança que as pessoas depositam no próprio conhecimento nem sempre tem a ver com a quantidade ou qualidade do conhecimento que elas de fato possuem.

Essa pesquisa explica por que eu achei que sabia tudo de Semiologia, depois de ver uma única aula, e por que McArthur Wheeler colocou tanta fé nos poderes de invisibilidade do suco de limão.

Ignorante demais para perceber a própria ignorância

David Dunning e Justin Kruger

Dunning e Kruger aplicaram testes em seus próprios alunos de psicologia para avaliar o quanto eles sabiam sobre assuntos diversos (humor, lógica e gramática) e o quanto eles se sentiam confiantes e competentes nessas áreas.

Os resultados confirmaram a impressão inicial de David Dunning: os alunos que menos sabiam sobre esses assuntos (ou seja, os mais incompetentes) também sentiam-se muito competentes, ou seja, eram incapazes de reconhecer a própria incompetência.

Além disso, os mesmos alunos tendiam a não reconhecer a competência de outras pessoas (achavam que eram mais competentes que outros indivíduos com mais conhecimento na área).

Em resumo: quanto mais incompetente você é em alguma área, menos você percebe sua incompetência – e mais confiante você se sente no seu (pouquíssimo) conhecimento.

Isso pode ser explicado pelo fato de que as habilidades que faltam a você naquela área são as mesmas habilidades que seriam necessárias para reconhecer o quão pouco você sabe sobre aquilo. É por isso que os ignorantes são tão confiantes: eles nem sequer fazem idéia do tanto de conhecimento que não possuem! Nem sabem o tanto que eles não sabem.

Isso também explica por que um indivíduo incompetente fica realmente surpreso, contrariado ou até ofendido quando descobre que estava errado. Ele tinha tanta certeza!

A maldição de saber muito: mais conhecimento, menos certeza

Por outro lado, pessoas que são realmente competentes em alguma área, com vasto conhecimento e experiência, tendem a ter uma confiança mais moderada nas suas capacidades. Os experts conseguem reconhecer melhor a vastidão do conhecimento na sua área e, comparativamente, os limites do seu próprio conhecimento.

Assim, é comum que, apesar de estarem corretos com mais frequência, as pessoas verdadeiramente competentes não têm tanta certeza disso. Quando são informados que acertaram, costumam reagir com um certo grau de “surpresa agradável”. Quando descobrem que erraram, ficam curiosos em entender o motivo do erro e agradecidos pela oportunidade de aprender algo novo.

No entanto, os experts em alguma área também tendem a apresentar um outro tipo de “cegueira”. Eles acham que as outras pessoas têm tanta competência que elas. Especialistas não costumam se dar conta da raridade das suas habilidades naquele campo, e acreditam que sabem a mesma coisa, ou apenas um pouco mais, que a média das pessoas comuns.

Ou seja: experts também têm excesso de confiança – mas, neste caso, voltada à competência das demais pessoas!

Resumo da ópera: pessoas incompetentes tendem a ter mais certeza e a superestimar suas habilidades, enquanto pessoas competentes tendem a ter mais dúvidas e a subestimar sua competência (e superestimar a dos demais).

Apesar do estudo de Dunning e Kruger ter sido publicado em 1999, esse conceito não é tão novo assim.

O próprio Charles Darwin já havia escrito, no século XIX:

"A ignorância gera confiança com muito mais frequência do que o conhecimento."
Charles Darwin (1809-1882)
Naturalista e biólogo britânico

E o prêmio ignobel vai para...

Essa desconexão entre a percepção de competência e a competência real de alguém acabou se tornando conhecida pelo nome dos seus descobridores: é o “efeito Dunning-Kruger”.

A descoberta ganhou popularidade rapidamente, e seus achados foram confirmados nas mais diversas áreas de conhecimento, desde finanças e matemática até o xadrez.

No ano 2000, Dunning e Kruger foram os vencedores do Prêmio IgNobel, uma honraria científica pouco ortodoxa que é conferida às descobertas mais improváveis do ano.

Segundo os organizadores, merecem o prêmio IgNobel aquelas descobertas científicas que primeiro fazem rir e, depois, fazem pensar.

O efeito Dunning-Kruger é uma dessas descobertas. É engraçado, à primeira vista, tentar entender por que um assaltante acha que suco de limão pode torná-lo invisível, mas depois essa reflexão acaba nos trazendo um aprendizado valioso sobre a natureza humana.

Afinal, o efeito Dunning-Kruger pode ser visto ao seu redor o tempo todo (especialmente em discussões no Facebook). Muita gente se considera muito mais competente do que realmente é – e nem se dá conta de que pode estar errada.

Por exemplo: um estudo com engenheiros de software de duas grandes companhias mostrou que 32% dos engenheiros em uma empresa e 42% dos engenheiros na outra consideravam-se entre os 5% de profissionais mais competentes. Isso é simplesmente impossível, matematicamente falando!

Outro estudo mostrou que 88% dos motoristas norte-americanos consideram que suas habilidades para dirigir estão acima da média. (Deveriam ser 50%!)

o efeito dunning-kruger na medicina

Na Medicina, não é diferente. Médicos que são realmente experts nas suas áreas, em geral, fazem hipóteses diagnósticas mais corretas, mas sem tanta certeza. Por outro lado, médicos novatos se acham “a última bolacha do pacote”: erram mais, mas com muita certeza nos seus palpites!

Um exemplo muito bom desse fato aparece num estudo feito por Friedman e colaboradores em 2005. Os autores apresentaram uma série de casos clínicos de diagnóstico difícil a um grupo de estudantes de Medicina, um grupo de residentes de Clínica Médica e um grupo de médicos atendentes e preceptores.

Primeiro, analisaram a acurácia diagnóstica (a taxa de acerto). Nenhuma novidade até aqui: os médicos atendentes, mais experientes, acertaram mais diagnósticos (50%) do que os residentes (44%) e os estudantes (26%).

Depois, analisaram um dado mais interessante: a discordância entre a percepção de confiança dos sujeitos (se eles achavam que tinham acertado ou não) e a acurácia diagnóstica (se eles haviam acertado ou não).

Os estudantes, menos experientes e mais conscientes das suas limitações, tenderam a subestimar suas habilidades de diagnóstico: em 75% dos casos em que a confiança e a acurácia eram discordantes, os alunos achavam que haviam errado quando, na verdade, tinham acertado.

Por sua vez, os residentes apresentaram a tendência oposta: em 59% dos casos de discordância, eles superestimaram suas habilidades (achavam que tinham acertado mas, na verdade, tinham errado).

Finalmente, os atendentes foram mais cautelosos: apesar de acertarem mais, mostraram subestimar sua competência em 64% dos casos de discordância entre a confiança e a acurácia.

Esses dados parecem reforçar as conclusões de Dunning e Kruger:

  • pessoas que não têm conhecimento nenhum na área, como os estudantes,  acabam errando bastante, mas têm consciência que erraram (sabem que não sabem);
  • pessoas que começaram a aprender alguma coisa na área, como os residentes, têm seu ego inflado pelo pouco de conhecimento que ganharam e passam a sentir-se extremamente confiantes nas suas habilidades, dificilmente reconhecendo seus erros (não sabem que não sabem);
  • pessoas que já têm bastante experiência, como os atendentes, tendem a ser mais humildes e a reconhecer a incerteza, pois conhecem bem os limites da sua própria expertise, apesar de serem mais competentes que os demais.

Portanto, se você é residente, cuidado! Você não é tão bom quanto você pensa. Ouça seus preceptores!

E se você é preceptor, cuidado! Fique de olho nos seus residentes (principalmente os R1).

Quem está sujeito ao efeito Dunning-Kruger?

A resposta curta é: todos nós!

Por mais competente, experiente e brilhante que você seja em uma área de conhecimento (aquela na qual você é especialista), é impossível ser especialista em tudo! Tendo em vista a amplidão do conhecimento humano, todo indivíduo vai ter lacunas importantes de conhecimento em diversas áreas.

Por isso, muito cuidado quando você for dar opiniões ou tomar decisões relacionadas a alguma área de conhecimento que não seja da sua especialidade. (Que são praticamente todas exceto aquelas poucas às quais você realmente dedicou tempo e esforço para aprender.) Fora do seu campo de expertise, você está mais sujeito a erros diagnósticos!

Tenha a modéstia de reconhecer que você não sabe tanto assim sobre esse assunto (na verdade, muito do que você acha que sabe pode ser composto apenas de “senso comum”, preconceitos e idéias que você ouviu por aí.)

Tenha a humildade intelectual de reconhecer que há pessoas que entendem disso melhor que você.

E tenha cuidado em não ter tanta certeza assim! Quem tem muita certeza, erra mais.

(BÔNUS: leia um pouco mais sobre o papel da incerteza na Medicina.)

PARA SABER MAIS:

Autor: Leandro Arthur Diehl

Você pode referenciar o artigo acima usando o Digital Object Identifier (Identificador de Objeto Digital) – DOI.

DOI: 10.29327/823500-60