Esta é a continuação do Webcaso #4: Um homem de 70 anos com febre. Muito obrigado a todos que participaram!
Você pode assistir à discussão em vídeo logo abaixo ou, se preferir, pode ler o texto mais embaixo com nossos comentários e a resposta final do caso.
Continuação do caso
O paciente tinha uma radiografia de tórax normal e uma ultrassonografia de abdome mostrou apenas aumento do volume da próstata.
Foram colhidas várias sorologias, levando em conta sua epidemiologia (dengue, HIV, hepatites, CMV, doença de Lyme, febre maculosa das Montanhas Rochosas, Anaplasma, Erlichia) que resultaram todas negativas.
Como o paciente tinha anemia, foi solicitado perfil de ferro, que excluiu deficiência de ferro. As provas de hemólise, no entanto, resultaram alteradas (reticulócitos 6%, LDH 504 e haptoglobina indetectável).
Por esse motivo, foi avaliado um esfregaço do sangue periférico, que veio com o seguinte aspecto à microscopia óptica:
Dada a presença de parasitas intraeritrocitários, foi feito um teste rápido para detecção de antígenos de Plasmodium, que resultou negativo.
Tendo em vista o teste negativo para malária, foi solicitado um ensaio por PCR para detecção de Babesia microti que deu positivo, com parasitemia estimada de 1,4%.
O paciente foi tratado com atovaquona e azitromicina por uma semana, com resolução completa do quadro.
Diagnóstico final
Babesiose
Comentários sobre a doença
A babesiose é uma zoonose causada por protozoários intraeritrocitários do gênero Babesia.
A Babesia microti é a espécie mais comum nos Estados Unidos, sendo endêmica no nordeste (Nova Inglaterra, inclusive o estado de Massachusetts) e no meio-oeste americanos (Minnesota e Wisconsin). Outras espécies de Babesia são endêmicas na Europa e no nordeste da China.
No Brasil, é uma doença rara em humanos, tendo um maior número de casos descritos em São Paulo e Rio de Janeiro, mas é bem conhecida dos médicos veterinários, pois é um grave problema de saúde animal, conhecida como “tristeza parasitária bovina”. A transmissão para bovinos é feita pelo carrapato-de-boi (Boophilus microplus).
Para humanos, é transmitida por carrapatos do gênero Ixodes (carrapato do cervo), os quais também podem transmitir Borrelia e Anaplasma (tanto que a coinfecção com doença de Lyme é bastante comum).
Carrapato Ixodes
A apresentação clínica da babesiose lembra a da malária, pois os pacientes infectados apresentam febre (como sintoma mais comum) e variados graus de anemia hemolítica e trombocitopenia. Sintomas constitucionais como calafrios, mialgia, perda de apetite e náuseas também são muito frequentes. Outros achados, tais como dor abdominal, hepatoesplenomegalia, vômitos e diarreia, são menos comuns e se associam a pior prognóstico.
O período de incubação geralmente é de 1 a 4 semanas (embora possa ser bem mais longo em alguns casos), e são descritos vários casos assintomáticos.
Os casos mais leves costumam ter parasitemia menor que 4%. Casos severos podem ser fatais sem o tratamento adequado e ocorrem principalmente em pacientes imunocomprometidos.
Classicamente, o diagnóstico de babesiose é feito pelo esfregaço de sangue periférico, com a visualização de parasitas intraeritrocitários. O aspecto de “cruz de Malta” associado às formas merozoítas do parasita é considerado patognomônico, mas não é o mais comum. A Babesia também pode assumir um aspecto de “formas anelares” (como visto neste caso), que podem ser confundidas com Plasmodium (outro protozoário que se aloja no interior das hemácias).
Babesia com aspecto de “cruz de Malta” e com formato “em anel”
Nos casos de dúvida diagnóstica, em pacientes com fatores de risco para ambas as infecções, uma dica é a visualização de parasitas tanto dentro como fora das hemácias, que fala a favor de Babesia (plasmódios são vistos apenas no interior das hemácias). No entanto, a visualização de Babesia no esfregaço de sangue periférico nem sempre é fácil e exige profissionais experientes.
Outras ferramentas para diagnóstico são os testes sorológicos e a detecção direta do parasita por reação em cadeia da polimerase (PCR).
Comentários sobre o raciocínio diagnóstico
O início de um quadro agudo de febre e sintomas sistêmicos em um paciente com histórico de múltiplas viagens recentes acaba levando à suspeita de alguma doença infecciosa à qual ele possa ter sido exposto nas suas andanças.
Conhecer a epidemiologia das doenças nos locais para os quais ele viajou é uma maneira de tentar estabelecer um diagnóstico diferencial – mas essa tarefa pode não ser nada simples se o paciente foi para vários lugares diferentes, cada um com seu próprio leque de agentes infecciosos endêmicos.
Jamaica
A Jamaica, por exemplo, é área endêmica para malária, dengue e febre amarela. Já o nordeste dos Estados Unidos é área endêmica para Lyme e babesiose. A Índia, por sua vez, é área de risco para dengue, chikungunya, gripe aviária, parasitoses e esquistossomose (dentre outros).
Este caso, em resumo, é um prato cheio para infectologistas!
Pistas para o diagnóstico
As dicas que ajudam a direcionar melhor o raciocínio neste caso são a presença de anemia hemolítica e plaquetopenia.
A associação de febre, anemia e plaquetopenia sempre deve levantar a suspeita das microangiopatias trombóticas: púrpura trombocitopênica trombótica (PTT), síndrome hemolítico-urêmica (SHU) e SHU atípica – além da síndrome hemofagocítica primária ou secundária. No entanto, o estado geral relativamente preservado e a ausência de comprometimento renal ou neurológico (e de esquizócitos no esfregaço de sangue periférico) falam contra essas hipóteses. Outras hipóteses são anemias hemolíticas associadas a doenças autoimunes ou inflamatórias, mas a história aguda deste caso é mais sugestiva de infecção.
Infecções agudas que podem cursar com febre, anemia e plaquetopenia incluem dengue, malária e febre maculosa, só para citar as mais comuns. Dessas, anemia hemolítica é um achado mais sugestivo de malária.
Esta deve ter sido a principal suspeita do médico atendente ao juntar as peças: febre aguda, sintomas sistêmicos, anemia hemolítica e plaquetopenia em um paciente que tinha voltado da Jamaica há pouco tempo.
Some a isso o esfregaço de sangue periférico com de parasitas dentro das hemácias e – bingo! Malária!
Só que não…
A pesquisa de antígenos de plasmódio pelo teste rápido foi negativa.
E agora, José?
Algumas situações podem explicar a presença de parasitas intraeritrocitários no esfregaço com testes específicos para malária negativos, e devem ser consideradas:
[ads_color_box color_background=”#CEECF5″ color_text=”#000000″]Como explicar teste negativo para malária num paciente com parasitas dentro das hemácias?1) Falso negativo do teste rápido (a sensibilidade do teste é em torno de 92%);
2) Parasitemia muito alta (que pode gerar um fenômeno conhecido como “efeito prozona” no caso de testes sorológicos);
3) Parasitemia muito baixa;
4) Infecção por plasmódio não-falciparum (P. ovale ou P. malariae), a depender do teste empregado, já que alguns são mais específicos para detecção de P. falciparum;
5) Infecção por P. falciparum mutante que deixa de expressar os antígenos detectados pelo teste rápido;
6) Infecção por parasita intraeritrocitário que não seja plasmódio – ou seja, por Babesia. [/ads_color_box]
No nosso paciente, o PCR positivo para Babesia confirmou que o caso dele era causado pela situação 6: o parasita intraeritrocitário não era malária, mas sim babesiose!
Conclusões
Ao atender um paciente com febre e histórico de viagens recentes, é sempre importante levar em conta a epidemiologia. Quais doenças infecciosas são comuns nos locais para onde ele viajou? Essa informação pode ser encontrada em sites como o da Organização Mundial da Saúde ou do Centers for Diseases Control (CDC).
No entanto, isso pode não ser suficiente: também é necessário conhecer as limitações dos testes diagnósticos usados para avaliação dessas doenças.
Neste caso em particular, foi fundamental reconhecer a possibilidade de um agente não-plasmódio (a Babesia) como possível explicação para o achado de um parasita intraeritrocitário no esfregaço de sangue periférico em um paciente com clínica sugestiva de malária mas com teste rápido negativo para Plasmodium.
Esta é uma boa ilustração para a importância do conhecimento como um dos três pilares do diagnóstico!
Se você não sabe por que um paciente pode ter um esfregaço sugestivo de malária mas um teste específico para malária negativo – vá estudar!
Se você nunca ouviu falar em babesiose – procure no Google!
A informação hoje está amplamente disponível e ao alcance dos seus dedos, não importa onde você esteja.
Afinal, a velha máxima continua sendo válida:
Médicos só diagnosticam as doenças que conhecem!
FONTE DO CASO:
Phadke V. 70-year-old man with fevers. The Human Diagnosis Project (HumanDx), 2020.
PARA SABER MAIS:
World Health Organization (WHO). International Travel and Health.
Centers for Disease Control (CDC). Travelers’s Health.
Krause PJ, Vannier EG. Babesiosis: clinical manifestations and diagnosis. UpToDate, 2020.