Recentemente, fui chamado para avaliar um paciente hospitalizado por piora da função renal e diminuição do débito urinário. Era um senhor dos seus 60 anos, conversador, mas com uma face sofrida. Ansioso, logo que me apresentei já respondeu que precisava de ajuda, pois não estava bem e não estavam fazendo nada por ele.

O olhar suplicante e humilde desse senhor me chamou a atenção e pus-me a ouvir o paciente um pouco. Logo fiquei sabendo que havia sido submetido a 4 cirurgias prévias devido a polipose intestinal familiar e que recentemente perdera a esposa.

A hipótese diagnóstica do médico que solicitou a avaliação era a presença de alguma fístula enterovesical devido às cirurgias prévias, a última com complicações e reintervenções que custaram ao paciente uma internação prolongada e uma ressecção intestinal extensa com colostomia.

Uma tomografia contrastada de abdome já havia sido solicitada para investigar essa hipótese – e o contraste provavelmente iria piorar ainda mais sua função renal, já prejudicada.

Fiquei pensando: esse exame era mesmo necessário? Será que a história do paciente era mesmo sugestiva de uma fístula enterovesical?

E foi aí que me dei conta: em Medicina, sempre acabamos voltando à história do paciente. Tudo depende da história.

Ouvir o paciente é o que faz bons médicos

Geralmente, quando discutimos algum caso clínico, damos por pressuposto que houve uma adequada coleta de dados. Isso ocorre tanto em casos publicados em revistas, como em discussões acadêmicas em sala de aula e até mesmo nas discussões do dia-a-dia entre alunos, residentes e docentes.

Essas discussões de casos, longe do paciente, facilitam o debate de alguns aspectos da doença e podem ajudar a chegar ao diagnóstico ou a atingir objetivos educacionais com os alunos. No entanto, essas ocasiões não traduzem toda a experiência médica e, na prática, podem reduzir o interesse dos aprendizes pelo relacionamento com o paciente.

anamnese, todos sabem, é um dos pilares essenciais para o diagnóstico correto e para o posterior acompanhamento do paciente. Para alcançar a maestria em conduzir uma entrevista e realizar uma boa anamnese, são necessários: muita prática deliberada, uma busca contínua pelo diagnóstico e um interesse legítimo pelo paciente. Penso que este último requisito seja o aspecto fundamental para o desenvolvimento das demais aptidões. Sem um interesse legítimo pelo paciente e pelo seu sofrimento, o que fazemos perde a motivação, a força e a profundidade.

Todos querem ser ouvidos

Dediquei um tempo maior a ouvir o paciente da história acima, não só devido ao seu histórico, digno de compaixão, mas também pela necessidade que ele demonstrava de falar e ser ouvido – de que alguém realmente ouvisse sua história.

Desse modo, ele me contou que já tinha sofrido um episódio anterior de insuficiência renal, com necessidade de algumas sessões de hemodiálise, devido ao uso de contraste radiológico.

Também fiquei sabendo que se alimentava mal, pois vivia sozinho e estava passando por um período de luto. Além disso, muitas vezes o que ele comia lhe causava dores abdominais e diarreia.

O exame físico mostrou aquilo que pela história podia se esperar: um homem emagrecido, com todos os sinais de depleção.

Enquanto eu me dedicava a ouvir o paciente, percebi alguns movimentos de pernas do interno e do residente. Os jovens, claramente ansiosos e impacientes, tentaram até conduzir a anamnese e agilizar o processo, mas sem sucesso. O paciente e o médico já estavam conectados.

O resumo do caso, se fosse ser apresentado em uma reunião, revelaria algo bastante simples:

 

“Homem idoso com intestino curto, má aceitação e absorção de dieta, depletado e anúrico.”

Muito pouco, não é?

É verdadeiro, mas não reflete toda a verdade sobre esse paciente.

A história clínica não é a história do paciente!

Como dizia o grande Dr. William Osler:

"O bom médico trata a doença do paciente, mas o médico excelente trata o paciente que tem a doença."
william-osler-ouvir-o-paciente-raciocinio-clinico
Sir William Osler (1849-1919)
Pai da Medicina Moderna

Não interrompa seus pacientes!

Você sabe quanto tempo, depois de começar a falar, um paciente é interrompido pelo médico?

Em média, depois de 10 segundos!

Imagine a seguinte cena:

 

Doutor: – Olá, eu sou o Dr. Fulano de Tal, em que posso ajudá-la?

Paciente: – Bom dia doutor, estou com falta de ar, …

Doutor (alguns segundos depois): – Desde quando?

Paciente: – Há uns 3 meses.

Doutor: – Piora com esforço?

Paciente: – Hum… às vezes, é que…

Doutor: – Melhora com algum remédio?

Paciente: – Sim, mas…

Doutor: – A senhora já teve isso antes?

 

Chato, não foi? Imaginemos a história antes da consulta:

Essa mulher vinha experimentando algum sintoma (no caso, falta de ar), que a vinha incomodando há certo tempo. Talvez tenha conversado com alguém a respeito – a filha, amiga, vizinha, marido – que a aconselharam a procurar o médico. Procurou uma UBS, agendou a consulta e ficou esperando ansiosamente, torcendo para a falta de ar não piorar muito até lá. No dia da consulta, arrumou-se, repassou o que falaria ao médico e no caminho, indo de carro ou talvez de ônibus, repassou novamente. Quando finalmente chegou para contar tudo ao médico, este, ao invés de ouvir o paciente, interrompeu a história depois de poucos segundos. Dessa maneira, a história que ela ensaiou tanto para contar foi soterrada sob uma avalanche de perguntas.

Esse modo de atender tem muitas origens. Imagino que algumas delas estejam na nossa formação, onde aprendemos a:

  • “Tirar” uma história;
  • Seguir um roteiro inflexível: queixa principal, história da moléstia atual etc., com sequências predeterminadas dentro de cada um dos itens;
  • Focar-nos em conseguir somente uma história clínica completa.

Isso talvez piore pelo fato de, na prática, o tempo muitas vezes ser curto. Mas ainda acho que o mais importante é os médicos não aprenderem ou não cultivarem o gosto por criar um relacionamento com o paciente.

O relacionamento humano na Medicina

De certo modo, está na moda a Medicina Centrada no Paciente, ou ainda a Medicina Centrada nos Relacionamentos. Fala-se muito de humanização, empatia, compaixão etc. Por mais que essas coisas sejam boas, elas têm que passar do plano das ideias e das intenções para o plano da ação e da prática.

Quando um paciente procura um médico, o que ele espera que seu médico ou médica faça em primeiro lugar?

A resposta é óbvia: que o profissional dê uma explicação para o seu problema de saúde e indique soluções. Mas como dar uma solução para um problema não identificado? Ora, o que o médico busca é justamente o diagnóstico, e tudo o mais acaba sendo consequência disso.

Mas o paciente não é um carro, uma coisa ou um objeto a ser consertado. É um âmbito da realidade que só se alcança mediante o encontro, o relacionamento. É uma vida que precisa ser curada, aliviada e confortada. E esse tipo de conforto, o médico só consegue prover mediante um bom relacionamento com seu paciente.

A relação médico-paciente, quando adequada e efetiva, é um verdadeiro relacionamento de cura. É daí que o doutor retira grande parte da sua motivação, e é aí que o paciente encontra confiança e esperança.

Portanto, não podemos deixar de ouvir o paciente e fazer a nossa própria anamnese, a não ser para um exercício abstrato de raciocínio clínico. Ouvir o paciente para entender a sua história pessoal (não só a história da sua doença) é uma parte fundamental do diagnóstico, do tratamento e da satisfação do paciente e do médico.

Neste site, falamos muito do raciocínio clínico: seus aspectos técnicos e científicos, processos mentaiscausas de erro diagnóstico, estratégias antierro, dicas e estatísticas.

Mas é importante lembrar que quem raciocina é um indivíduo – uma médica ou um médico. Por isso, é importante desenvolver-se em todas as habilidades e virtudes médicas, ao mesmo tempo em que desenvolvemos um pensamento integral da estrutura da prática da Medicina – esta que é, nas palavras do Dr. Edmund Pellegrino:

“a mais humana das ciências e a mais científica das humanidades”.

Um dos maiores medos ou angústias dos estudantes de Medicina é o de falar com os pacientes. As primeiras anamneses podem ser muito estressantes e frustrantes, principalmente quando não se dispõe de um modelo para imitar ou de indicações claras sobre como proceder, ou quando falta um ambiente amistoso e compreensivo por parte dos colegas e docentes.

Você certamente já passou por isso (ou logo passará): o paciente é uma pessoa desconhecida até a qual nos levam para “tirar uma anamnese”, ou um paciente que algum interno ou residente nos disse que era “bom para conversar”. Receosos, nos aproximamos dessa pessoa doente. Uma breve introdução: “Sou estudante de medicina e queria falar com senhor”. Batimentos acelerados, suando em bicas…. Começamos a perguntar, o paciente não responde o que queremos; agora começa a falar de outra coisa; o que ele quer dizer com essa palavra?

Agradecemos, o paciente sorri da nossa inexperiência e, reduzidos ao pó do qual viemos, rastejamos de volta para escrever aquilo que não perguntamos e depois testemunhar publicamente a nossa inépcia na discussão com o professor.

Penso que, apesar dessas experiências serem sempre estressantes, é possível começar de uma maneira melhor.

Existem várias ideias para facilitar a construção da anamnese que você já pode começar a incorporar, independente de já ser um médico ou ainda um aluno:

  • Estabeleça uma conexão com o paciente;
  • Mais importante que “tirar” uma história é “construir” uma história;
  • Anamnese bem-feita é a chave para o diagnóstico correto;
  • O tempo gasto na anamnese é tempo (e dinheiro) poupado – você não vai precisar fazer o serviço de novo, e pedirá menos exames desnecessários.

Aprenda de cor!

Gosto também de uma estratégia que você pode decorar. Isso mesmo, decorar! Para os que não gostam dessa palavra (por motivos fúteis, diga-se de passagem) apresento sua origem etimológica: aprender de cor – em inglês, “learn by heart” – é aprender com o coração, ou seja, incorporar na sua vida.

Então, aprenda de COR:

CONVIDAR é pedir para o paciente dizer o que ele quiser sobre seu problema.

Doutor– Olá, eu sou Dr. Fulano de Tal, em que posso ajudá-la?

Paciente: – Bom dia doutor, estou com falta de ar, …

Aqui você não interrompe! Ao contrário, você apenas faz algum gesto (como assentir com a cabeça) que indica ao paciente que continue falando.

O interessante é que muitas vezes já vi o paciente “travar” à espera de uma interrupção minha, e quando não falei nada, ou até pedi que continuasse (por favor, fale mais…), muitas vezes percebi um certo olhar de surpresa e até de admiração. Os próprios pacientes já se encontram tão acostumados a serem rapidamente interrompidos que ficam desconcertados quando isso não acontece!

OUVIR é ouvir o paciente com atenção, com contato pelo olhar, acenos de cabeça. É deixar o paciente à vontade, sem inquietações.

RESUMIR só depois de ouvir um bom pedaço da história, ou aproveitando alguma pausa do paciente, é que interrompemos e dizemos:

– Deixe-me ver se entendi, quer dizer que você tem sentido isso desde tanto tempo, que depois foi para tal lugar e que melhora assim, é isso mesmo?

Aqui o paciente tem a oportunidade de saber-se compreendido e também de corrigir algum detalhe que tenhamos entendido mal ou ele não tenha deixado tão claro.

Difícil? Então vamos praticar!

No início, pode ser que o aluno esqueça aspectos do interrogatório sobre diversos aparelhos, ou que não explore suficientemente bem um sintoma de dor, mas muito provavelmente ele conseguirá uma história mais completa e uma experiência mais tranquila e fluida com o paciente.

Para os mais experimentados, esse hábito ajuda a ir um pouco mais devagar, e a experimentar uma satisfação maior no processo; permite conhecer e admirar os pacientes e suas histórias de vida e também ver um paciente mais agradecido.

Usando esse modelo, que eu também sempre procuro utilizar, muitas vezes ouvi os alunos dizerem que tiveram uma boa experiência e que puderam passar bons momentos com um paciente.

E nosso paciente?

Cancelamos a tomografia com contraste e, após receber uma reposição volêmica baseada em um plano terapêutico, nosso paciente voltou a urinar e recuperou a função renal.

Além disso, ele foi avaliado pela nutricionista e pela equipe da psiquiatria. Esta diagnosticou um transtorno depressivo (já não era mais apenas luto) e o medicou. Aquela elaborou um plano nutricional adequado para a sua condição de ressecção intestinal e colostomia.

O paciente ficou poucos dias internado e recuperou-se bem.

Depois de um tempo, revi esse paciente no consultório. Ele se lembrava bem do atendimento e estava feliz e agradecido; eu também lembrava dele. Estava comendo bem, tinha ganhado peso e estava mais animado. Função renal recuperada.

Raciocínio clínico adequado, diagnóstico correto, um exame desnecessário (potencialmente danoso) evitado, e terapias adequadas para uma condição específica – todos foram o resultado de uma boa anamnese. Um paciente feliz e recuperado e um médico em paz. Eis a ciência e a arte do raciocínio clínico em Medicina!

PARA SABER MAIS:

Boyle D. Invite, listen, and summarize: a patient-centered communication technique. Acad Med. 2005;80:29–32.

Haidet P. “Building” a history rather than “taking” one. Arch Internal Med. 2003; 163:1134-1140.

Beach MC. Relationship-centered care. Journal Gen Intern Med. 2006;21:S3–8.

Pellegrino ED. The most humane of the sciences, the most scientific of the humanities. In: Engelhardt HT, Jotterand F, editors. Pellegrino ED: The Philosophy of Medicine Reborn: A Pellegrino Reader. Notre Dame, IN: University of Notre Dame Press, 2011.

Autor: Fabrizio Almeida Prado

Você pode referenciar o artigo acima usando o Digital Object Identifier (Identificador de Objeto Digital) – DOI.

DOI: 10.29327/823500-6