curiosidade é uma característica importante na formação dos médicos?

O que você acha?

Primeiro, vou contar por que resolvi explorar este tema.

Nas férias de verão, perguntei ao meu filho Lucio (que considero um médico bem aparelhado para exercer a Medicina com rigor e respeito aos pacientes):

Qual é a qualidade mais importante que você vê em um estudante de Medicina? E qual conselho você daria a seu pai blogueiro, que anda atrás de um assunto palpitante?

Ele respondeu no ato:

A curiosidade. Escreva sobre a curiosidade na Medicina.”

Então está aí, filho!

“Eu não tenho nenhum talento especial. Sou apenas apaixonadamente curioso.”
Albert Einstein (1879-1955)
Físico suíço

Curiosidade na Medicina

“Deixa de ser curiosa, menina!”

“Não meta o nariz onde não foi chamada!”

“A curiosidade matou o gato!”

“Para de especular a vida alheia!”

“Vai cuidar da sua vida!”

“Xereta!”

Todo mundo já deve ter ouvido uma frase dessas alguma vez na vida, não é?

Essas afirmações são originárias de adultos impacientes – ou, pior, de déspotas da Idade das Trevas.

Inibir a curiosidade dos estudantes ou dos jovens médicos é impedir sua aprendizagem e tolher sua criatividade.

Infelizmente, a estrutura hierárquica da cultura médica e a pressa, muitas vezes falsa, na resolução de problemas, criam um ambiente hostil ao questionamento por parte de estudantes e residentes.

Dessa maneira, surge uma abordagem da profissão que redunda em malefícios aos pacientes, por conhecimentos incompletos, histórias clínicas medíocres e exames em excesso.

Qual é a curiosidade que um médico deve ter?

Em primeiro lugar, é a inconformidade em receber somente o conhecimento mínimo e estéril. É dedicar-se à procura daqueles pequenos detalhes que fazem a Medicina ser tão fascinante!

Segundo, é pesquisar informações que permitam enfrentar as incertezas inerentes ao dia a dia do exercício da profissão.

Finalmente, é a curiosidade respeitosa que devemos ter para nos inteirarmos de detalhes da vida dos pacientes. Ela nos permite estabelecer uma relação de confiança e assim obter dados imprescindíveis para o diagnóstico e tratamento dos seus males.

"Sem a curiosidade, então a dedicação, o fascínio e o pensamento crítico para exercer a Medicina são irremediavelmente perdidos."
Brenda Roman (2011)
Psiquiatra e professora americana

Reprimindo a curiosidade na medicina

Então, quais são os principais inimigos da curiosidade na Medicina?

1)As escolas de Medicina são, na sua maioria, anticuriosidade, na medida em que privilegiam a transmissão dos conhecimentos automaticamente, através de aulas teóricas, sem estímulo ao diálogo. Os estudantes adoram ser “alimentados de colher”, isto é: receber a matéria mastigada, sem estímulo ao questionamento. Além disso, estudantes também têm uma preocupação excessiva e irracional por notas. A obsessão em estudar para as provas ocorre em detrimento da obtenção de conhecimento prático significativo, que só pode ser alcançado através da curiosidade.

2)prepotência e a pressa intempestiva, muitas vezes manifestadas em nome da eficiência, por colegas e preceptores. Juntamente com a obediência cega à hierarquia, esses fatores inibem qualquer possibilidade de perguntas ou dúvidas. Ou seja: bloqueiam a curiosidade. Quem nunca viu colegas correndo feito baratas tontas nas emergências dos hospitais atrás de soluções apressadas que poderiam ser resolvidas com tranquilidade? Nessa hora, o interno, doido para tirar uma dúvida, é inibido pela habitual resposta:

E isto é hora de perguntar?!

Há uma cultura de extirpar a curiosidade, ao invés de “matar” (ou satisfazer) a curiosidade dos estudantes.

3)A curiosidade é sensível ao desconforto e à angústia. Por isso, ela é inibida quando o ambiente está carregado de emoções negativas, como quando o estudante é obrigado a enfrentar situações inesperadas, de alta ansiedade ou atende um paciente muito doente. O médico, em nome da objetividade e da eficiência, muitas vezes se distancia dos problemas para cuidar da sua própria sanidade mental. Isso também colabora para bloquear a curiosidade, que poderia ser útil na solução dos problemas dos pacientes.

4)excesso de confiança, que se manifesta na causa mais comum de erro diagnóstico: o viés do fechamento prematuro. Na ânsia de “resolver logo” um problema, o estudante tende a fechar o diagnóstico antes de analisar todas as possibilidades. Esse viés inibe a curiosidade e a busca por explicações alternativas que poderiam ser mais adequadas, levando o médico o estudante a cometer erros.

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como estimular a curiosidade na medicina?

Há várias maneiras de estimular a curiosidade durante a formação médica:

1)Provocando a curiosidade inata do estudante. Para isso, é preciso não só dar liberdade e espaço para perguntas, mas ajudar o estudante a formular questões. Isto se faz criando um ambiente amigável e seguro, dando exemplos e participando efetivamente das dúvidas, sem falsa modéstia. Só assim estaremos colaborando com nossos estudantes para aumentar a sua capacidade de fazer questionamentos.

2)Usando as chamadas metodologias ativas de aprendizagem. Metodologias como o Problem-Based Learning (PBL), o Team-Based Learning (TBL) e, principalmente, o Case-Based Learning (CBL) facilitam a interação entre os pares e o instrutor. A aprendizagem, assim, ocorre de forma ativa, estimulada pelas dúvidas que surgem e reforçada pelas perguntas a serem resolvidas no grupo ou em pesquisas posteriores.

3)Quem?Quando?Onde?Como? e Por Quê? são excelentes instrumentos para equipar um estudante para manter seu espírito inquieto. Dessa maneira, estaremos formando “estudantes para toda a vida”, que vão sempre dar seu melhor para exercer bem seu trabalho.

4)metacognição, que consiste em pensar sobre o que se está pensando ou fazendo, é uma forma de equacionar e dirigir o raciocínio e a mente para uma consciência plena. Alguns exemplos de como estimular a metacognição são as seguintes perguntas:

“O que mais pode ser?”

“Estou muito cansado?”

“Estou irritado com este paciente?”

“Meu diagnóstico leva em conta toda a informação existente?”

“O tratamento instituído está dando resultado?”

“Devo parar e repensar tudo de novo?”

“Preciso pedir ajuda de outro colega ou professor?”

Bons cirurgiões cultivam o hábito de diminuir o ritmo da cirurgia para reavaliar o processo. Quando paramos para refletir durante um procedimento ou intervenção, chamamos o processo de reflexão em ação.

5)O preceptor precisa prestar atenção para perceber quando o estudante age com excesso de confiança. Também precisa notar quando o estudante mostra pouca habilidade para lidar com situações delicadas e inesperadas no seu relacionamento com o paciente e sua família. Nesses casos, uma intervenção cuidadosa e equilibrada pode ajudar o estudante a reencontrar seu caminho.

Conclusões

A curiosidade talvez seja a maior força para impulsionar a aprendizagem!

Citando Thomas Friedman, articulista do New York Times e vencedor do Prêmio Pulitzer, autor do livro “O mundo é plano: uma breve história do século XXl”:

"Em termos de conquista educacional, a curiosidade, aliada à motivação, é mais importante que a inteligência."
Thomas Friedman
Jornalista e escritor americano

Colaborou para este artigo:

O Dr. Lucio Navarro Gordan, citado no início deste post, é médico formado pela Universidade Estadual de Londrina, com residência em Oncologia no Shands Cancer Hospital, da Florida University.

Recentemente, o Dr. Lucio foi nomeado Presidente do Florida Cancer Specialists (FCS & Research Institute, LLC), a maior organização de Oncologia e Hematologia de propriedade de médicos nos Estados Unidos.

Ele mora em Gainesville, Florida, e de vez em quando colabora com palpites para este site.

Peraí! E o jornaleiro que urinava leite?

Ficou curioso, né? Para ouvir essa história verídica (e mais outra tão curiosa quanto), assista ao vídeo do Dr. Pedro Gordan, logo abaixo:

Para saber mais:

Roman, Brenda. Curiosity: a best practice in education. Medical Education, 2011.

Dyche, Lawrence; Epstein, Ronald M. Curiosity and medical education. Medical Education, 2011.

Pluck, Graham; Johnson, Helen. Stimulating curiosity to enhance learningGESJ: Education Science and Psychology, 2011.

Autor: Pedro Alejandro Gordan

Você pode referenciar o artigo acima usando o Digital Object Identifier (Identificador de Objeto Digital) – DOI.

DOI: 10.29327/823500-51