AUTORA: PRISCILA HORTA

Você já ouviu falar na cascata de prescrição? Vamos ilustrar este conceito com um caso clínico:

Sr. José R. Silva, hipertenso de 59 anos, vem em consulta com uma única queixa: suas pernas estão ficando inchadas. Como uma boa hipótese é a de insuficiência cardíaca, sai de lá com a prescrição de furosemida, uma vez ao dia.

Meses depois, no retorno, refere que começou a se sentir muito tonto ao levantar. Inclusive, mostra uma cicatriz em face por conta de um desmaio há 3 dias.

O que aconteceu com o seu José – e com o médico dele – é um erro muito comum na prática clínica.

Entre várias medicações, seu José fazia uso de anlodipino, um bloqueador de canal de cálcio que pode causar edema periférico por um mecanismo diferente da sobrecarga volêmica. Sendo assim, os diuréticos não tem o efeito previsto e, por consequência, só causam hipovolemia, hipotensão postural e quedas (como na história acima).

Todo o problema começou quando o edema foi interpretado incorretamente como sinal de uma nova doença. E que, como tal, necessitava de um tratamento – o qual acabou causando um novo efeito adverso.

Essa sequência de acontecimentos é conhecida como prescrição em cascata, ou cascata de prescrição.

A cascata de prescrição (prescribing cascade) ou cascata iatrogênica ocorre quando um novo medicamento é prescrito para “tratar” uma reação adversa de um medicamento prévio, na convicção errônea de que uma nova condição clínica está presente.

CASCATA DE PRESCRIÇÃO

cascata de prescrição - destaque - raciocinio clinico

As prescrições em cascata representam um dos novos desafios da Medicina e são um importante problema de saúde pública, uma vez que provocam polifarmácia, elevam custos e expõem o paciente ao risco de efeitos prejudiciais relacionados a um tratamento que, em tese, seria dispensável.

E essa talvez seja a característica mais marcante da cascata de prescrição: ela pode ser prevenida.

O primeiro passo para enfrentar qualquer problema é: reconhecer que ele existe.

Porém, apesar do termo ter sido introduzido há mais de 20 anos, por Rochon e Gurwitz no British Medical Journal, existem pouquíssimos estudos a respeito, principalmente em se tratando da América Latina.

É urgente a necessidade de falarmos mais a respeito de um erro tão recorrente – e de trazer a discussão para a nossa realidade clínica.

Se não identificarmos ou interrompermos tais processos, continuaremos colocando nosso paciente em situação de risco aumentado para danos  potencialmente preveníveis.

AS CASCATAS MAIS CONHECIDAS

É necessário conhecer para identificar.

Não só o conceito, mas estar familiarizado com quais são as mais comuns, suas apresentações clínicas e intervenções disponíveis.

No quadro abaixo, podemos ver sequências comuns na rotina clínica.

cascata de prescrição - exemplos - raciocinio clinico

Como este é um assunto ainda pouco estudado, provavelmente existem várias outras cascatas de importância clínica que ainda não foram devidamente detectadas ou caracterizadas.

Você conhece mais alguma? Então coloque no comentário, abaixo deste texto!

POR QUE É TÃO FÁCIL ACONTECER UMA CASCATA DE PRESCRIÇÃO?

No contexto médico, as condições de trabalho que forçam tomadas rápidas de decisão e o acesso precário a informações do paciente contribuem muito para esse tipo de erro.

Nos casos em que um indivíduo é assistido por vários profissionais, fica claro como a falta de comunicação entre eles e de longitudinalidade do cuidado acabam sendo fatores essenciais para perpetuar o problema.

Somado a isso, o aumento da expectativa de vida e sua relação direta com o uso de um maior número de remédios eleva as chances da cascata de prescrição.

As cascatas de prescrição são mais comuns quando múltiplas terapias são prescritas.

Por isso, apesar de poder acontecer em qualquer idade, a cascata de prescrição é bem mais comum em idosos. Mais remédios, mais efeitos adversos.

Interessante lembrar que os próprios processos fisiológicos do envelhecimento podem ser confundidos como causas de um novo sintoma – por exemplo, o delírio -, tornando cada vez mais difícil atribuir tais problemas a uma medicação.

Durante nossa prática clínica, é imprescindível analisar a causalidade de uma possível reação adversa medicamentosa.

Em outras palavras, precisamos sempre verificar se existe alguma probabilidade de que um novo sinal ou sintoma seja consequência de um medicamento em uso pelo paciente.

Nem sempre essa é uma tarefa fácil!

Mas, calma: existem instrumentos que nos ajudam nesta tomada de decisão. Principalmente em situações em que as cascatas não são tão conhecidas.

O Algoritmo de Naranjo, por exemplo, é um questionário que atribui pontuações para dez perguntas e determina um score de probabilidade para a ocorrência de uma reação adversa com um determinado medicamento.

A partir das respostas a esses itens, a pontuação é somada para gerar um score, que estabelece se há causalidade entre o uso de um medicamento e uma reação:

O conceito de causalidade definida fala a favor de um evento clínico que ocorre em tempo plausível em relação à administração do medicamento e que não pode ser explicado pela doença de base ou por outros medicamentos/substâncias químicas.

Conhecer exemplos clássicos e usar algoritmos de probabilidades, com certeza, ajudarão na hora de revisar um caso de potencial reação adversa medicamentosa.

COMO PREVENIR A CASCATA DE PRESCRIÇÃO?

Quando estiver diante de um novo sinal ou sintoma em um paciente:

  1. Sempre considere a possibilidade de serem causados por uma reação adversa a medicamento;
  2. Pergunte se um remédio foi recentemente iniciado ou teve sua dose alterada.

E quando iniciar um novo tratamento em um dos seus pacientes:

  1. Envolva os indivíduos e seus cuidadores;
  2. Dê preferência para tratamento não farmacológico, quando possível;
  3. Se optar por iniciar uma medicação, comece com doses baixas e faça o aumento gradual, reduzindo o risco de reações adversas;
  4. Se houver opções, opte por aquela com menor risco de efeito adverso;
  5. Informe ao paciente os possíveis efeitos adversos e como ele deve proceder se ocorrem. É importante avisar que medicamentos sem receita e produtos naturais também podem causar reações.

Também é fundamental continuar os estudos sobre o tema para identificar as cascatas mais comuns e reduzir sua prevalência.

Se uma lista com as principais cascatas for definida, é possível, por exemplo, criar ferramentas nos softwares de prescrição para gerar alertas quando alguma medicação envolvida esteja presente.

Um dos estudos inclusive usou análise de simetria de sequência – um método de detecção de sinal estatístico – para identificar no Twitter e fóruns de saúde online sinais de cascatas a partir de dados gerados pelos próprios usuários. A grande vantagem desse análise é envolver também automedicação.

Os estudos e relatos de casos são importantes, pois podem incluir cascatas mais complexas e raras, como, por exemplo, psicose por dexametasona e rinorreia induzida por inibidor da ECA. Essas possibilidades talvez passassem despercebidas em nosso raciocínio clínico sem a ajuda de softwares para identificá-las.

Existem vários caminhos para reduzir a ocorrência da cascata de prescrição, e a maioria deles ainda não foram explorados.

Mas, acima de tudo, este deve ser um trabalho contínuo, pois se novos medicamentos surgem, também surgirão novas cascatas. E nós precisamos conhecê-las!

O QUE EU POSSO FAZER, COMO PACIENTE?

Mantenha uma lista atualizada com todos os medicamentos que você usa, incluindo informações de dose e frequência, quando e porque começaram – principalmente se você é acompanhado por vários profissionais de saúde diferentes.

IDENTIFIQUEI UMA CASCATA DE PRESCRIÇÃO. E AGORA?

Agora é o momento de uma reflexão mais detalhada.

Será que a terapia medicamentosa inicial era absolutamente necessária? Eu posso substituí-la por uma alternativa mais segura? Posso reduzir a dose?

No caso do seu José, existem outros três anti-hipertensivos de primeira linha que poderiam substituir o anlodipino – sem falar nas estratégias não farmacológicas para controle de pressão arterial. E caso, por algum motivo, esse medicamento não pudesse ser interrompido, também existem opções para reduzir o edema, como o uso de meias compressivas, que dispensariam a necessidade da furosemida.

Mas sejamos realistas: remédios causam efeitos adversos.

E nem sempre teremos opções para fugir disso.

Em um cenário em que não há outra alternativa diante de uma medicação que iniciou uma cascata, é preciso considerar os riscos e benefícios junto com o paciente para uma tomada de decisão compartilhada.

Decidir, conscientemente, prescrever um segundo medicamento para neutralizar a reação adversa do primeiro só deve ocorrer quando os benefícios de continuar a terapia com o primeiro superarem os riscos de possíveis novas reações adversas do segundo medicamento.

CONCLUSÕES

A cascata de prescrição é um assunto urgente e complexo. É muito difícil que encontremos uma única solução.

É preciso educar os profissionais, criar protocolos, listas e diretrizes, garantir longitudinalidade do atendimento, cuidado multiprofissional e criar mecanismos de triagem e prevenção para efeitos adversos.

Mas podemos começar com o hábito de revisar os medicamentos usados pelos nossos pacientes, refletindo sobre suas reais necessidades e objetivos, tornando o cuidado um processo consciente.

 Nós podemos e devemos fazer melhor.

SOBRE A AUTORA:

Priscila Horta - Cascata de Prescrição - Raciocínio Clínico

Priscila Picanço Horta é acadêmica de Medicina na Universidade Federal do Amazonas (UFAM).

“Larguei o Cinema e a Publicidade para fazer Medicina por causa do dinheiro. Deu errado: me apaixonei. Fã da Clínica Médica e Endocrinologia. Em busca de tentar responder: como os médicos pensam?

PARA SABER MAIS:

Ronchon P, Gurwitz JH. The prescribing cascade revisited. Lancet, 2017. 

DeRhodes, K. H. The Dangers of Ignoring the Beers Criteria—The Prescribing Cascade. JAMA Internal Medicine, 2019. 

Brath H, Mehta N. Savage RD et al. What Is Known About Preventing, Detecting, and Reversing Prescribing Cascades: A Scoping Review. Journal of the American Geriatrics Society, 2018.