Apresentação:

  • Salmito de Almeida Campos Jr.
  • Cecilia d’Ávila Chambi
  • Petrus Davi Pinheiro Freire

Comentários:

  • Maria Almerinda V. F. Ribeiro Alves
  • Pedro A. Gordan
  • Márcio Dantas
"Der Besuch der alten Dame."
ensaio - patologia renal - raciocínio clínico - a visita da velha senhora - frederich dürrenmatt
Frederich Dürrenmatt
1956

Algumas enfermidades têm os seus quinze minutos de fama.  Ganham notoriedade, celebridade instantânea. De uma hora para outra passam a ser parte constante dos diagnósticos clínicos, não importando se há critérios mais ou menos robustos para tal.  São os diagnósticos da moda. 

As glomerulonefrites agudas associadas a processos de natureza infecciosa foram reconhecidas desde as primeiras descrições de doenças renais, passando pela relação com a escarlatina, no início do século XX e ganhando contornos mais abrangentes com os estudos epidemiológicos dos anos 50.  Notadamente, uma doença pediátrica que foi extensamente estudada no contexto das síndromes nefríticas da infância.  Apesar de ainda prevalente, particularmente em países menos desenvolvidos, ela tem mudado o seu perfil de apresentação. E, por ainda serem as lídimas representantes das nefrites infantis, podem passar despercebidas ao olhar clínico do nefrologista de adultos.

A peça teatral de Frederich Dürrenmatt trata do retorno, após 30 anos, de uma filha pródiga a sua cidade natal, agora decadente e moribunda, na forma de uma rica benfeitora, criando um clima de ansiosa excitação e esperança aos seus miseráveis habitantes.  Contudo, o disfarce de altruísta oculta, na verdade, sua intenção de vingança pela humilhação sofrida na juventude.  Uma moderna Medéia que, ao invés de feitiços, utiliza de seus dotes financeiros para corromper a moral dos locais.

O caso clínico do Ensaio 2 chama a atenção para um diagnóstico antigo, renovado e dissimulado, exteriorizado sob forma de síndromes clínicas variadas, mas que, na sua essência, ainda preserva os parâmetros pelos quais foi reconhecido através dos tempos.

É o retorno da velha senhora travestida:  a máscara que cai.

Caso Clínico

Dr. Petrus Davi: Trata-se de um homem negro de 61 anos com história de edema progressivo, inicialmente em membros inferiores, há cerca de quatro meses da entrada, que se tornou generalizado.

Há um mês, também notou dispneia aos pequenos esforços, ortopneia e dispneia paroxística noturna, com ganho de peso aproximado de 25 kg no período (peso prévio: 87 kg), concomitante com redução do débito urinário.

Procurou atendimento inicialmente no Hospital São Paulo, no dia 27/01, onde foi internado e transferido, três dias após, para a enfermaria da Nefrologia para continuar a investigação e o tratamento.

No interrogatório por sistemas, nega hiporexia, mantendo a ingesta aumentada de sódio e com mais de 2 litros de água diariamente. Referia diarreia há uma semana da entrada, de natureza líquida e sem produtos patológicos, com cerca de 3-4 episódios por dia. Negava febre, náuseas, vômitos, odinofagia, dor torácica, tosse, bem como outras queixas.

De antecedentes, ele é um paciente hipertenso há cerca de cinco anos em tratamento regular e bem controlado.

Tem uma história de epilepsia há seis anos. Referia ter realizado um exame de crânio na época do diagnóstico com alteração que ele não sabia especificar e também não tinha trazido o exame consigo.

Tabagista ativo (30 anos-maço), ex-etilista, tendo cessado há dois meses na entrada; costumava ingerir cerca de dois copos de destilado por dia, por um período de 40 anos.

Negava diabetes, dislipidemia, cardiopatia, tireoidopatia, pneumopatia, neoplasia, infecções recentes, negava alergias medicamentosas, uso de AINE (anti-inflamatório não esteroidal), antibiótico e quaisquer eventos cardiovasculares prévios.

De história familiar, também não tinha nada significativo em relação a doença renal.

Fazia uso prévio de fenobarbital 200mg ao dia (havia cessado uma semana antes da entrada, por falta da medicação), enalapril 20mg de 12/12h, AAS 100mg uma vez ao dia, furosemida 40mg uma vez ao dia e sinvastatina 20mg à noite.

Exame físico: hipertenso, com uma PA de 160/102mmHg, FC: 86bpm, FR: 18irpm, saturando 96% em ar ambiente com a glicemia de 92mg/dL;  afebril, com peso: 114,4kg (lembrando que o peso seco dele prévio era de 87kg).

Ele estava em bom estado geral, hipocorado 2+/4+, porém hidratado, orientado e cooperativo, em anasarca e com dentes em mau estado de conservação.

Ausculta cardíaca e respiratória sem alterações.

Força muscular preservada, abdômen globoso e algo tenso por causa de uma ascite bem volumosa com edema de parede, ruídos hidroaéreos presentes, indolor à palpação e com pulsos palpáveis, porém com edema bem significativo de membros inferiores até raiz das raiz das coxas, 3+/4+, além de edema de menor intensidade em membros superiores, 2+/4+.

edema - ensaio - patologia renal - o retorno da velha senhora - raciocínio clínico

Em relação aos exames laboratoriais que nós solicitamos, Hb: 9,6g/dL com Ht de 28,4% com VCM e CHCM normais.

Ureia de 87mg/dL e creatinina de 3,75mg/dL, TFG: 20 ml/min/1,73 m² (CKD-EPI). Não havia creatinina prévia.

Sódio e potássio normais, magnésio também normal e um cálcio total de 7,5mg/dL, após correção pela albumina, 9,9mg/dL, também normal. A gasometria venosa mostrava um pH de 7,34 com CO2 de 36,2mmHg, bicarbonato de 19,2mEq/L, lactato de 12mg/dL. Apresentava albumina sérica de 1,3g/L.

Exame de urina: densidade de 1020, pH de 5,0, proteinúria de 18,94g, glicose menor do que 0,3, leocócitos de 15 por campo, hemácias de 40 por campo, com dismorfismo presente em 2+ e alguns cilindros granulosos e hialinos. Relação proteína/creatinina de 5,28 gramas por grama de creatinina. TSH de 4,1mU/L.

DISCUSSÃO DO CASO CLÍNICO

Dr. Salmito Campos: Então, sobre o caso, até aqui, gostaríamos de saber o que mais vocês pediriam para investigar a etiologia dessa disfunção renal do paciente em questão.

Prof. Márcio Dantas: Em uma discussão hierarquizada em termos de problemas, eu destaco primeiro o edema generalizado. Num edema desse porte, de 25kg de ganho de peso, podemos pensar nos três grandes órgãos:

Fígado, coração e rim

Esse paciente tem ascite e história de etilismo, mas não tem aparentemente nenhum sinal de hipertensão portal nem esplenomegalia. Não tem história de sangramento digestivo.

Um outro quadro que pode gerar um pouco de confusão é a queixa respiratória: ele tem ortopneia, dispneia paroxística noturna e dispneia aos pequenos esforços. Pode ser um problema cardíaco primário que causou edema ou pode ser uma consequência de um outro tipo de edema, renal, por exemplo.

Porém, com 25 kg de ganho de peso, num edema cardíaco, esperaríamos o paciente muito sintomático, já com comprometimento bem intenso, e não tem nenhuma descrição no exame físico de congestão jugular, por exemplo.

Sobra o edema de origem renal. Podemos pensar em duas grandes síndromes:

Síndrome nefrótica ou síndrome nefrítica

É um edema de instalação progressiva ao longo de quatro meses, um pouco mais lenta, que pode sugerir mais um quadro nefrótico que nefrítico.

Ele também tem hipertensão arterial, mas nesse momento não sabemos dizer se é antiga ou se ela se agravou recentemente caracterizando um quadro nefrítico. Não tem história de hematúria macroscópica, mas ele tem uma hematúria microscópica que também é compatível com o quadro nefrítico.

Quanto à creatinina elevada, a pergunta que fazemos é: isso é agudo ou crônico?

A favor de uma doença renal crônica, ele tem anemia e isso pode apontar que já seja realmente uma taxa de filtração de 20ml/min, um grau bem mais avançado de doença renal.

Como não tem uma creatinina prévia, eu trabalho com a hipótese de que é agudo, até que se prove o contrário.

A urina de rotina tem uma densidade 1.020, porém a interpretação é difícil nesse caso por conta da proteinúria importante e por conta do uso da furosemida.

Mas a hematúria está presente e também com uma leucocitúria aparentemente sem sintomas infecciosos: é o que a gente chama de sedimento “sujo”.

Também chama atenção a presença de cilindros granulosos. Talvez esse paciente esteja complicando com uma necrose tubular aguda por conta da síndrome mais exacerbada, já que incidência de NTA é alta, cerca de 20-25%.

Com essas considerações, eu colocaria como hipótese principal uma síndrome nefrótica-nefrítica, uma síndrome mista.

A síndrome nefrótica tem risco de trombose, além de desnutrição por causa da perda proteica exagerada.

Fico surpreso pelo paciente não ter nenhum sinal de derrame pleural e o próprio exame cardíaco também não mostrar terceira, quarta bulha; o exame físico exposto é um coração normal.

Isso leva à hipótese de que a insuficiência cardíaca apresentada é consequência do quadro renal.

Quanto à proteinúria, nessa intensidade só tem duas coisas que eu conheço: glomerulopatia ou quilúria, que ocorre por uma anastomose entre o tubo digestivo e o trato urinário excretor; o quilo absorvido pelo intestino sai pela urina que fica leitosa, branca, com aspecto de leite ou coalhada. Então eu não acho que seja quilúria, obviamente.

Portanto, hipóteses:

Um diagnóstico a se pensar é o de lúpus eritematoso sistêmico. Só que são quatro meses de doença em um homem negro de 60 anos; nesse tempo já esperaria manifestações do lúpus em outros órgãos. O hemograma não tem nada de lúpus, por enquanto: leucócitos estão normais, e essa anemia talvez seja decorrente do quadro da filtração glomerular reduzida, mas não dá para descartar.

Outra possibilidade seria uma nefropatia por IgA primária. Eu penso em primária porque, se fosse pela hepatopatia, naquele paciente etilista, eu não esperaria quadros de proteinúria tão intensos. Esses quadros tendem a ser mais leves nessa nefropatia por IgA secundária. Não parece ser púrpura de Henoch-Schonlein. Bem certo que o paciente não tem nada na pele, tinha sido destacado. Então eu ficaria com uma nefropatia da IgA primária (doença de Berger).

Um terceiro diagnóstico seria a glomerulonefrite membranoprofilferativa. Esse paciente tem os dentes em mau estado de conservação e pode ter um quadro infeccioso, um abscesso dentário, e isso provoca um quadro inflamatório, infeccioso permanente que pode gerar membranoprofilferativa também.

Essas seriam as minhas três principais hipóteses pensando num diagnóstico de síndrome nefrítica-nefrótica, eu acho que com um componente de necrose tubular agudo e talvez com o componente de fibrose intersticial associado.

Quanto à investigação:

Há um protocolo para isso:

Avaliamos as doenças infecciosas mais comuns – hepatite B, C, HIV, sífilis.

A parte imunológica, com pesquisa do lúpus, ANCA (anticorpo anticitoplasma neutrofílico), dosagem de C3 e C4 e outros testes mais que possam se fazer necessários.

Podemos pensar depois em diagnósticos mais incomuns, por exemplo, gamopatias monoclonais, que requerem eletroforese de proteínas, dosagem de gamoglobulinas, cadeia kappa e lambda no sangue, imunofixação de kappa e lambda.

Depois disso, se ele estiver com coagulação e plaquetas normais, e rins tópicos com tamanho normal no ultrassom, podemos partir para biópsia renal.

A princípio, eu conduziria o caso dessa forma, e essas seriam minhas impressões neste momento.

Dr. Salmito Campos: Muito bom, professor, obrigado. Alguém gostaria de acrescentar alguma outra abordagem ou alguma outra investigação?

Dra. Almerinda Ribeiro Alves: Tem algumas coisas no caso que incomodam.

Primeiro, é a gravidade da hipoalbuminemia. Nessa faixa há um risco importante, pela própria síndrome nefrótica, de um fenômeno tromboembólico.

Uma coisa interessante que o Márcio abordou é que, para inchar ao ponto de ter edema generalizado, só tem uma possibilidade: o rim está retendo líquido.

Chamo atenção agora para qualquer médico, não o nefrologista, que já é sua área. Para entender um edema generalizado, apesar de a causa mais comum não ser a renal, a gente tem que observar e investigar. Imagino que esse cavalheiro que estamos discutindo tenha procurado auxílio médico nesses quatro meses, até porque o edema é um abuso em termos de apresentação. E lembrar que, às vezes, a última coisa que se pede para um edema generalizado é um exame de urina e função renal.

De volta ao caso, estamos vendo o componente “proliferativo” pela hematúria com característica de dismorfismo. 

Outra coisa incomodando é não conseguirmos definir se é uma doença renal aguda ou crônica. Se for aguda, eventualmente estamos diante de uma doença glomerular com uma hematúria dismórfica, com uma grande proteinúria e perda rápida de função renal. 

Vamos olhar para essa doença, buscar descobrir se é normocomplementêmica ou hipocomplementêmica.

Se for normocomplementêmica, é difícil fazer uma relação pelo quadro clínico entre doenças glomerulares não proliferativas. Embora possa acontecer eventualmente uma glomerulopatia membranosa (GM) ter uma microhematúria que não é tão micro assim. Para a faixa etária, seria adequado, mas para a raça, não seria aquilo que a gente esperaria. 

Uma glomeruloesclerose focal e segmentar (GESF) nessa faixa etária pode ter microhematúria? Pode, mas também a apresentação, nessa faixa etária, com essa hipoalbuminemia, não é o comum.

Pediria também um ANCA (anticorpo anticitoplasma neutrofílico), mas estranharia porque não é o hábito esse tipo de apresentação etiológica para uma hipoalbuminemia desse grau e uma proteinúria dessa gravidade.

ANCA está grudado em vasculites paucimunes de microcirculação. Mas ANCA por acaso aparece em várias outras situações glomerulares em particular que vão de lúpus, nefropatia por IgA, doença infecciosa; logo, não nos ajudaria e estranharia se o Prof. Luís Moura, depois da biópsia, me desse o diagnóstico de paucimune ou de nefropatia por IgA.

O que eu não consigo relacionar é a convulsão que ele teve, um quadro neurológico já distante seis anos.

Prof. Pedro Gordan: Eu já fiquei muito invocado foi com o quadro neurológico. Porque não é comum um camarada de 61 anos começar aos 55 anos com síndrome convulsiva.

Eu gostaria de discutir um diagnóstico sistêmico nesse paciente. AIDS, apesar de todo o tempo decorrido, é uma possibilidade remota que temos que levantar. A outra hipótese a considerar – sempre que tiver um quadro convulsivo e um quadro renal junto – é de uma vasculite sistêmica.

Uma terceira hipótese, em um paciente com 60 anos, embora temporalmente difícil de colocar, é um quadro neoplásico

Ainda outra possibilidade é um quadro infeccioso, que é o mais comum no nosso país, mas que fica difícil de encaixar: um quadro de cisticercose ou alguma outra coisa, apontando para uma doença de imunodeprimido e que agora se manifestou melhor. 

Continuo achando que esse paciente tem uma síndrome nefrótica, com insuficiência renal, possivelmente aguda, e que eu tendo a acreditar que seja o que eu chamaria de síndrome nefrótica “suja”.

E tem que lembrar também que esse paciente é da raça negra e que poderia estar manifestando uma GESF (glomeruloesclerose segmentar e focal) grave.

A investigação é o padrão: é o protocolo ou o “carimbo”, como já mencionado.

Dr. Salmito Campos: Vamos apresentar alguns outros exames. O ANCA, que foi mencionado, não tinha disponível.

Dr. Petrus David: Os valores do complemento, C3 e C4, estavam dentro da normalidade. 

FAN e anti-DNA negativos; ENA com anti-RNP, SM, RO e LA negativos; fator reumatoide negativo.

Sorologias para hepatite B, C, HIV e sífilis negativas.

Hemoglobina glicada de 5,7%, enzimas hepáticas também normais.

Colesterol total: 233 mg/dL, HDL: 59 mg/dL, LDL: 151 mg/dL e triglicérides: 116 mg/dL.

Ferritina: 593, Transferrina: 105, Ferro: 52.

Eletroforese de proteínas não mostrou pico monoclonal.

ANCA: exame não estava disponível.

Ultrassom de rins e vias urinárias com rins de tamanho normal, 2 cistos corticais simples à esquerda; parênquima renal com espessura preservada e ecogenicidade difusamente aumentada, notadamente à direita, com o rim direito de 10,3cm e o rim esquerdo de 10cm.
Sem sinais de dilatação do sistema coletor nem de cálculo, moderada quantidade de líquido livre na cavidade abdominal e uma bexiga com repleção parcial e conteúdo anecóico.

Como impressão diagnóstica: sinais de nefropatia parenquimatosa bilateral com sinais de cisto renal simples à esquerda.

Solicitamos também fundo de olho. Ambos os olhos com nervo óptico corado e bem delimitado, escavação de 0,5, vasos e máculas sem alterações, vítreo limpo, retina colada, ausência de hemorragias ou lesões.

RESUMO DO CASO:

Temos um homem de 61 anos, com quadro de edema há quatro meses, redução recente do volume urinário, apresentando nos exames azotemia sem função renal prévia conhecida, com uma  proteinúria nefrótica e leucocitúria com complemento normal, sorologias, FAN, anti DNA e ENA negativos. 

Tinha uma anemia normocítica e normocrômica, fundo de olho normal, eletroforese de proteína sem pico monoclonal e um ultrassom com rins de tamanho normal e ecogenicidade difusamente aumentada.

NOVOS COMENTÁRIOS SOBRE O CASO

Dr. Salmito Campos: Bem, agora com esses novos exames alguns pontos foram esclarecidos. Vocês levantariam alguma hipótese principal para conduzir o caso agora?

Prof. Márcio Dantas: A gente empacou aqui nas hipóteses; continuam as mesmas, pois não deu para encaixar nenhum quadro. Na verdade, excluiu ou, pelo menos, deixou pouco provável uma série de doenças.

Dr. Salmito Campos: Considerando o quadro clínico e essa creatinina aumentada, essa proteinúria… Alguém tomaria alguma conduta mais “agressiva” em relação a essa disfunção? Por exemplo, alguém iria pensar em imunossupressão da paciente, ou não? Esperaria a investigação primeiro?

Prof. Márcio Dantas: Não pulsaria nessas condições de jeito nenhum. A biópsia pode ou não dar o diagnóstico etiológico, mas ela pode mostrar a situação do rim, mostrar uma nefropatia avançada com mais de 75% de fibrose intersticial… o que que nós vamos tratar? Então, a biopsia é fundamental.

Dr. Petrus Davi: O problema foi que ele chegou na sexta-feira de tarde e aí já não tinha mais como a biopsiar até a segunda-feira. Ele ia ficar esses três dias ali nessa situação…

Profa. Almerinda Ribeiro Alves: Isso é outra coisa, Petrus, que em todos os lugares que eu conheço há uma dificuldade imensa de fazer esse diagnóstico na sexta-feira. E a gente fica na angústia do: eu vou tratar aquilo que eu acho que é, mas que eu não tenho certeza? Eu indicaria a biópsia.

Tanto Pedro quanto Márcio concordam também que tem indicação de biópsia e que a gente não deveria tratar antes, até porque é um paciente idoso, e não temos certeza de qual é o diagnóstico, primeiro, se é agudo ou crônico.

Embora a gente esteja trabalhando com a ideia de que possa ser uma perda rápida de função renal, e mesmo que seja uma rapidamente progressiva, não nos autoriza a fazer a imunossupressão porque nem toda rapidamente progressiva é uma crescêntica celular, ou nem toda rapidamente progressiva é uma necrosante focal e segmentar com necrose fibrinóide.

E falta também um biomarcador para pensar na possibilidade de imunossuprimir antes da biópsia, que seria a presença ou ausência do ANCA.

Eu não orientaria a imunossupressão, embora conheça muita gente que a faria.

Dr. Salmito Campos: Essa é uma dúvida bem prática mesmo. Até quanto tempo a senhora fica tranquila em esperar essa biópsia para indicar a imunossupressão? 

Profa. Almerinda Ribeiro Alves: Se eu soubesse responder, eu ganharia na loteria.

O que nos interessa para esta indicação é saber se há crescentes, se tem necrosante focal, necrose fibrinoide. Se tiver necrose fibronóide ainda, precisar esperar a imunofluorescência, mas por enquanto, se houver crescente fibrosa… a gente vai pensar no custo-benefício.

Agora, se na microscopia ótica houver mais de 60% de crescente, tudo celular, não dá para esperar. Pode ser que eu me arrisque a imunossuprimir, por exemplo, uma membranoproliferativa associada a endocardite bacteriana; mas ele não tem febre, e é normocomplementêmica. Eu acho que eu só trataria se fosse com ANCA positivo e não tivesse essa proteinúria.

Dr. Salmito Campos: Então vamos lá, a gente vai apresentar um pouco da nossa prática aqui. Isso aconteceu mesmo, o paciente chegou na sexta-feira com esse quadro clínico dessa forma. Pensando nos diagnósticos que vocês comentaram, a gente entendeu que poderia se tratar de uma rapidamente progressiva, e foi baseado nessa linha que a gente conduziu o caso.

Dra. Cecilia Chambi: Foi feita pulsoterapia para esse paciente. Trouxemos então um respaldo científico, um artigo de revisão (Moroni & Ponticelli, 2014), em que os autores relembram um pouco da clínica da rapidamente progressiva, já que, como a doutora Almerinda falou, nem todas irão evoluir para crescêntica. 

Eles falam de uma hematúria glomerular, cilindros hemáticos e proteinúria variável, mas sempre levando para uma disfunção renal, uma lesão renal aguda. Lembrando que a glomerulonefrite rapidamente progressiva (GNRP) tem três grandes divisões didáticas:

  • associada a anti-membrana basal glomerular (anti-MBG),
  • por imunocomplexos, entre doenças primárias e secundárias do rim, e
  • ANCA associado a vasculite de pequenos vasos.

Esse artigo fala que todas as etiologias e todas as formas de patogenia vão levar a uma mesma forma de lesão renal, e que o prognóstico dela depende muito do tempo de diagnóstico e da precocidade do tratamento.

A recomendação do artigo é que, diante da suspeita de uma rapidamente progressiva, deve-se realizar tratamento com corticoide numa dose alta e citotóxico associado.

CONTINUAÇÃO DO CASO CLÍNICO:

Dr. Petrus Davi: Após um dia da pulsoterapia (feita nos dias 30/01, 31/01 e 01/02), o paciente evoluiu com febre, sem foco infeccioso identificado a princípio, ainda em hemodiálise.

Foi realizada coleta de culturas e, depois da terceira diálise, evoluiu com broncoespasmo e dessaturação.

No dia 04/02, ele acabou evoluindo com insuficiência respiratória e foi intubado durante a sessão de diálise.

Conferindo o resultado das culturas, começaram a crescer cocos Gram-positivos tanto no cateter como na hemocultura periférica.

Nesse contexto da piora respiratória e necessidade de intubação, foi solicitada uma tomografia de tórax e coleta de PCR para COVID-19 (que veio positivo), quando ele foi transferido então para a UTI.

As culturas diferenciaram Staphylococcus aureus sensível a oxacilina.

DISCUSSÃO ADICIONAL

Dr. Salmito Campos: Considerando esse perfil da hemocultura, vocês de cara pediriam algum exame, ou seguiriam tratando mesmo como uma infecção por corrente sanguínea? Vocês fariam alguma outra investigação? Pensando nesse resultado de bactéria?

Dra. Cecilia Chambi: Certo, então falaremos como a gente procedeu diante dessa estafilococcia. Trouxemos esta revisão do JAMA (Holland, Arnold & Fowler Jr.,  2014) que avalia nove estudos com 4.050 pacientes que tiveram bacteremia por Staphylococcus aureus, onde alguns fizeram ecocardiograma transesofágico e outros, transtorácico.

O transesofágico teve maior associação e alta taxa de diagnóstico de endocardite. Porém, há pacientes com menor risco em que é possível solicitar um transtorácico com uma segurança maior, por exemplo:

  • pacientes que não têm dispositivo intracardíaco,
  • que não estão em hemodiálise,
  • que tiveram cultura negativa nos últimos quatro dias após a detecção, e
  • na ausência de algum outro foco secundário.

Dr. Petrus Davi: O artigo sugere, então, que toda infecção por Staphylococcus aureusprecisa de ecocardiograma e, dependendo do risco, sugere qual o tipo de eco a se solicitar.

No dia seguinte, a UTI solicitou o eco transtorácico, que veio sugestivo de endocardite. Como ele era um paciente que estava no contexto de diálise, foi solicitado um ecotransesofágico no dia seguinte, que mostrou uma massa hiperecogênica de 1,2×1,8cm no folheto mitral posterior.

E aí a gente ficou se perguntando: de onde veio esse foco?…

Dra. Cecilia Chambi: Realmente, o paciente não tinha lesões de pele, e a gente não conseguia achar o foco. Pensamos na cavidade oral, pois ele tinha uma dentição muito ruim.

E, de fato, a cavidade oral está sendo esquecida na avaliação médica (McCormack et al, 2015).

Nesta revisão escocesa, uma análise retrospectiva de 10 anos, de 1998-2007, eles isolaram o Staphylococcus aureus na cavidade oral e perioral. Foram isolados vários tipos de estafilococos: 18% eram aureus, 90% meticilino-sensíveis e 10% resistentes a meticilina (MRSA).

O artigo sugere que a cavidade oral sempre deve ser considerada como fonte de estafilococo e infecção cruzada, onde a gente realmente não consegue achar outra porta de entrada.

dentição ruim - endocardite - o retorno da velha senhora - ensaio - patologia renal - raciocínio clínico

Dr. Petrus Davi: A gente pensou se a porta de entrada poderia ter sido o cateter. Porém ele tinha hemocultura com crescimento bacteriano após oito horas em ambas as amostras, sem ter aquele tempo de diferença observado sempre que toda infecção de corrente sanguínea relacionada ao cateter é considerada.

Prof. Pedro Gordan: Eu acho que a biópsia, depois do achado na válvula, talvez não fosse mais necessária, se a gente considerar que tem endocardite bacteriana como a doença principal.

Isso que é uma coisa que fica a ser discutida com os colegas, mas uma endocardite bacteriana não fica com 1,2cm numa válvula em três semanas. Leva mais tempo.

Então, é possível que ele venha com endocardite bacteriana subaguda há muito tempo. Desde o início das convulsões, será?…

Prof. Márcio Dantas: Eu acho que a biópsia teria de ter a mesma finalidade que vocês mencionaram, um diagnóstico que vai ajudar o paciente, basicamente é isso. Eu penso que salvar o rim nesse momento não é o mais importante, importante é salvar o paciente. Se a gente vai expor o paciente a mais um procedimento invasivo que é a biópsia de baixa complexidade, mas é mais um procedimento invasivo que talvez não traga benefício, eu sacrificaria esse rim e deixaria o paciente seguir com o tratamento da endocardite.

CONTINUAÇÃO DO CASO:

Dr. Petrus Davi: Ele evoluiu com melhora, foi extubado e transferido para enfermaria depois. A gente conseguiu coletar a proteinúria de 24h só agora, porque antes ele ficou oligúrico. O resultado mostrou proteinúria de 11g/24h. Paciente já em melhor estado geral, estava há três dias na enfermaria, estável, não estava mais precisando dialisar. Ele havia feito a última diálise no dia 16/02 e nós optamos por realizar então a biópsia renal, que transcorreu sem intercorrências.

Dra. Cecilia Chambi: Em relação à biopsia em um paciente crítico, não achamos muito material. No ambiente da terapia intensiva, achamos um artigo francês (Philipponnet et al, 2013).

O artigo fala de cinco unidades de terapia intensiva em que foram biopsiados 56 pacientes, no período de 2000-2011. Cinquenta e cinco foram percutâneas e uma chegou a ser feita pela via transjugular. Dos 56 pacientes, 26 vieram necrose tubular aguda, glomeronefrite em 14 pacientes, vasculite em 11 pacientes (que mudou completamente o rumo da terapia), 6 pacientes com NIA (nefrite intersticial aguda) e um paciente com doença de depósito.

O grande problema é que a gente não sabe como escolher esses pacientes para realizar a biópsia em terapia intensiva. Dos 56 pacientes, 7 tiveram um sangramento grave, um foi a óbito.

Dr. Petrus Davi: E aqui temos a tão esperada biópsia:

ensaio - patologia renal - raciocínio clínico
Proliferação celular endocapilar global às custas de células próprias e numerosos neutrófilos (PAS – 400x)
ensaio - patologia renal - raciocínio clínico
Mesângio dissociado por células (aspecto em “casa de abelha”) (Prata de Jones – 400x)
ensaio - patologia renal - raciocínio clínico
Depósitos globais de C3, em mesângio e alças capilares, com aspecto granular grosseiro (Imunofluorescência Direta – 400x)
ensaio - patologia renal - raciocínio clínico
Aspecto morfológico ultraestrutural com artefatos técnicos decorrentes do processamento histológico anterior (material recuperado do bloco de inclusão em parafina). Identificados depósitos eletrondensos mesangiais e subendoteliais. (Microscopia eletrônica - 6.000x)

UMA BREVE REVISÃO DE GLOMERULONEFRITE PÓS-INFECCIOSA

Dra. Cecilia Chambi: O Streptococcus B haemolyticus do grupo A é o principal representante, visto geralmente na faixa pediátrica. O que a gente viu nesse caso foi uma glomerulonefrite associada a infecção, o termo mais recentemente utilizado, que se apresenta durante o curso da doença ou durante o processo infeccioso.

Depois de 1900, a GN pós-infecciosa começou a diminuir pela melhora das condições socioeconômicas e reduziu-se a transmissão da doença, prevenindo também epidemias. Nas últimas duas décadas, vêm aumentando os casos de Staphylococcus aureus resistente a meticilina, mudando completamente a epidemiologia.

A glomerulonefrite associada a infecção atualmente é mais prevalente, porém difícil saber a incidência. Há um maior número de pacientes idosos e com múltiplas comorbidades em que a piora da doença de base pode se sobrepor à piora renal, como ocorre na hipertensão e na síndrome cardiorrenal. Eles precisam também de um tempo maior de internação.

Outro motivo pelo qual também houve aumento da glomerulonefrite a associada a infecção é o maior uso de acesso venoso central, assim como implante de dispositivos cardíacos e aumento do número de usuários de drogas endovenosas.

No quadro abaixo, estão resumidas as principais diferenças entre a GN pós-estreptocócica e a associada a infecção por Staphylococcus aureus.

Glomerulonefrite associada a infecção - GN pós-infecciosa ou associada a Staphylococcus aureus - raciocínio clínico

Entre os diagnósticos diferenciais, temos a infecção estreptocócica, glomerulonefrite por IgA, vasculite por IgA, vasculite ANCA associada, glomerulopatia por C3 e crioglobulinemia.

Dr. Salmito Campos: Basicamente, quase todos os diferenciais foram comentados aqui por vocês.

Dr. Petrus Davi: Essa endocardite nos surpreendeu porque no começo, como foi bem comentado, o diagnóstico não estava nem um pouco claro pelo quadro clínico.

Mas depois da biópsia, do crescimento rápido do estafilococo com oito horas e do exame de imagem (com uma massa de tamanho considerável na válvula mitral), encaixou-se melhor nesse contexto de que provavelmente ele já tinha essa endocardite.

Um quadro subagudo oligossintomático. No ecocardiograma, tinha um componente de disfunção mitral que talvez estivesse contribuindo para aquele sintoma de dispneia, fora a sobrecarga volêmica, causando também disfunção renal. Nesse contexto, ficou como uma glomerulonefrite associada a infecção, com o padrão principalmente de IgA, secundário a infecção por Staphylococcus aureus.

Ele teve esse eco sugestivo da endocardite no dia 09/02. No mesmo dia ele conseguiu ser extubado. A última diálise foi no dia 16/02, permanecendo sem necessidade de diálise desde então. Recebeu alta da UTI no dia 19/02 e submetido a biópsia no dia 25/02. Ele estava recebendo, até esse momento, 1mg/kg de prednisona. Reduzimos para 40mg ao dia com a retirada gradual mais breve possível.

Devido a esse componente de insuficiência mitral importante e os sintomas de dispneia, foi optado por cirurgia de troca de válvula por uma prótese biológica.

O paciente conseguiu ir de alta no dia 09/04 com programação de seguimento ambulatorial. Tinha uma creatinina na saída de 1,63mg/dL com a taxa de filtração (estimada pelo CKD-EPI) de 52ml/min/1,73m², ficando bem.

MENSAGENS FINAIS:

  • Glomerulonefrite associada à infecção em adultos pode se manifestar de forma insidiosa, sem um quadro inflamatório exuberante, por vezes pela piora da doença de base (hipertensão, diabetes…), podendo gerar proteinúria de nível nefrótico. Nosso paciente não apresentava febre no início do quadro, referia uma piora do cansaço (possível descompensação de uma insuficiência cardíaca valvar, que posteriormente descobrimos ser por endocardite de valva mitral) e já apresentava piora de escórias nitrogenadas associada a uma proteinúria nefrótica de 18g.
  • A glomerulonefrite rapidamente progressiva é um dos poucos casos de emergência para biópsia renal e, portanto, esta deve ser feita o quanto antes. Ela nos traz a informação importante da ausência ou presença de crescentes no glomérulo que, se presentes, indicam maior gravidade da doença e necessidade de intervenção. A análise da biópsia do caso não só revelou a ausência de crescentes como também nos mostrou um quadro de lesão glomerular aguda, com depósitos granulares à imunofluorescência, padrão e perfil sugestivos de associação a acometimento de natureza infecciosa.
  • Sempre faça um rastreio infeccioso inicial antes de indicar a imunossupressão! Ela nem sempre é necessária. Dias após a pulsoterapia, o paciente foi diagnosticado com COVID-19; apresentou febre, motivando a coleta de hemoculturas, quando foi evidenciado o Staphylococcus aureus. Acreditamos que existia uma endocardite infecciosa não diagnosticada, antes da internação. É difícil fazer uma correlação direta entre a pulsoterapia e o crescimento da bactéria na corrente sanguínea, pois até então não havia sido colhida hemocultura, podendo já estar positiva. No entanto, provocar a imunossupressão no contexto de uma infecção ativa é deletério. O paciente precisava de antibioticoterapia e a imunossupressão poderia ser postergada.
  • Nem toda perda aparentemente acelerada de função renal se enquadra em rapidamente progressiva. É necessário pontuar bem a história clínica (agudo x crônico). Isso é um desafio constante na avaliação de disfunção renal: estabelecer a etiologia da doença. Saber a creatinina de base é um ponto inicial, mas não tínhamos essa informação. A ultrassonografia de rins e vias urinárias pode ajudar e mostrou rins de tamanho normal (se reduzidos bilateralmente, poderia sugerir acometimento crônico, alteração genética, variação da normalidade), ecogenicidade aumentada [por infiltração inflamatória (componente agudo)? por perda de glomérulos (componente crônico)]?. Quando ainda existe a dúvida, como foi no nosso caso, devemos conduzir a investigação como um acometimento agudo e possivelmente reversível, até que se prove o contrário.
  • A avaliação morfológica deve correlacionar-se à história clínica e, quando não são compatíveis, é preciso rever o quadro para evitar erros diagnósticos/terapêuticos. A suspeita inicial era de uma glomerulonefrite crescêntica. Como a biópsia não evidenciou o esperado, foi necessária a discussão entre equipes. Assim, foi decidido suspender a corticoterapia e investir no tratamento da endocardite infecciosa, e o paciente recebeu alta com melhora da creatinina, livre de diálise.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

  1. Moroni G, Ponticelli C. Rapidly progressive crescentic glomerulonephritis: Early treatment is a must. Autoimmun Rev. 2014;13(7):723-9. 
  2. Holland TL, Arnold C, Fowler VG Jr. Clinical management of Staphylococcus aureus bacteremia: a review. JAMA. 2014;312(13):1330-41.
  3. McCormack MG, Smith AJ, Akram AN, Jackson M, Robertson D, Edwards G. Staphylococcus aureus and the oral cavity: an overlooked source of carriage and infection? Am J Infect Control. 2015;43(1):35-7.
  4. Philipponnet C, Guérin C, Canet E, Robert R, Mariat C, Dijoud F, Azoulay E, Souweine B, Heng AE. Kidney biopsy in the critically ill patient, results of a multicentre retrospective case series. Minerva Anestesiol. 2013;79(1):53-61.
  5. Dürrenmatt F. A Visita da Velha Senhora. 1956.