Raciocínio clínico - apendicite aguda

Uma mulher de 35 anos, previamente hígida, procurou o pronto-socorro com queixa de vômitos e dor abdominal periumbilical há 6 horas. A dor era tipo aperto, constante, de intensidade moderada. Ela estava afebril, com PA 110/70 e FC 85 bpm. O abdome estava flácido, depressível, sem defesa ou dor à descompressão. Recebeu o diagnóstico de gastrenterite e foi liberada com sintomáticos. Foi orientada a retornar no caso de persistência ou piora dos sintomas e surgimento de febre.

Após 2 dias, procurou o médico na Unidade Básica de Saúde devido a persistência de dor abdominal, apesar de os vômitos terem cessado. Continuava afebril e com sinais vitais normais. O abdome estava difusamente doloroso, com alguma localização ao redor do umbigo. O exame pélvico estava normal. O médico solicitou um ultrassom endovaginal, que foi agendado para a semana seguinte. Ela foi liberada para casa, com prescrição de ibuprofeno e Buscopan para dor.

No dia seguinte, retornou ao pronto-socorro com dor persistente. Foi atendida pelo mesmo médico da primeira vez, e este pediu a um colega que a reavaliasse. Este outro médico realizou um exame pélvico e solicitou uma tomografia de abdome e pelve, que revelou um apêndice perfurado.

A paciente foi tratada com antibioticoterapia EV e apendicectomia e acabou se recuperando bem. 

Uma das queixas mais comuns em pronto-socorro, senão a mais comum, é a dor abdominal, cuja causa cirúrgica mais frequente é a apendicite aguda. No post de hoje, falaremos de dificuldades no diagnóstico de apendicite, com dicas sobre manifestações atípicas e exames complementares.

 


 

Dificuldades no diagnóstico de apendicite aguda

Somente 3% de todos os pacientes com dor abdominal terão apendicite aguda. Logo, é mais provável que um paciente qualquer com dor abdominal no pronto-socorro não tenha apendicite, mas mesmo assim a avaliação cuidadosa dessa possibilidade deve ser rotina em todo paciente com dor abdominal;

Apresentação clínica: o quadro clínico típico de dor inicialmente periumbilical que depois migra para fossa ilíaca direita, associada a anorexia e vômitos (a “figura de livro”) está presente em apenas 50–60% dos pacientes com apendicite aguda;

Esses pacientes costumam ser atendidos em serviços de emergência, que são sabidamente ambientes propensos a erros diagnósticos pelo excesso de trabalho e distrações (médicos de pronto-socorro são interrompidos em média a cada 5-6 minutos).

A literatura mostra que a frequência de erro diagnóstico na apendicite aguda varia de 20 a 40%. A situação é mais complicada nas mulheres, pois pode haver confusão com patologias pélvicas/ovarianas que também causam dor em fossa ilíaca.

Erros e atrasos diagnósticos estão associados a complicações como a perfuração do apêndice, que aumenta o risco de infecção da ferida operatória, formação de abcesso, sepse, deiscência, pneumonia e íleo prolongado. Em mulheres, há um risco 5x maior de infertilidade.

 Manifestações típicas:

  • Dor abdominal migratória (começa na região epigástrica ou periumbilical, mais difusa, e depois migra e se localiza em fossa ilíaca direita);
  • Leucocitose e PCR elevados (em 70 a 90% dos casos);
  • Dor em fossa ilíaca direita, defesa à palpação e dor à descompressão brusca. 

Mas não espere um paciente ter essa apresentação típica, para só então suspeitar de apendicite aguda! Variantes e quadros incompletos/atípicos são comuns.

Já atendi muitos pacientes com dor abdominal e apendicite, e vários completamente atípicos. Os mais marcantes, confirmados cirurgicamente, foram:

– Apendicite como apresentação inicial de doença de Crohn em um adolescente;

– Uma moça com diarreia, que só após um período de reposição volêmica apresentou localização da dor;

– Dor somente à palpação profunda em fossa ilíaca direita, com piúria e urgência urinária;

– Dor abdominal incaracterística e diarreia, sem outros sintomas, em um médico, que acabou só fazendo o diagnóstico de apendicite ao realizar uma colonoscopia!

 

Manifestações atípicas (mas frequentes):

Muitas vezes, sintomas clássicos estão ausentes ou são menos intensos (ausência da dor migratória ou de defesa à palpação, por exemplo), ou surgem outros sintomas que podem confundir o diagnóstico (como polaciúria e dor em flanco).

Um terço dos pacientes apresenta sintomas urinários. Pode haver leucocitúria devido a irritação de ureter ou bexiga pelo apêndice inflamado. Tenha cuidado ao interpretar sintomas urinários e também exames de urina – principalmente em mulheres jovens, nas quais cistite é comum! Em homens, como é mais rara a infecção urinária, a presença de polaciúria ou leucocitúria acaba fazendo o médico lembrar de apendicite mais rapidamente.

Muito das variações da sintomatologia se devem à posição do apêndice: em cerca de 35% dos indivíduos, o apêndice está distante mais de 5cm da sua localização clássica no ponto de McBurney.

Portanto, é um erro assumir que a falta de manifestações clássicas ou a presença de achados atípicos exclua apendicite aguda ou outra séria doença subjacente.

Embora frequentemente atípica, a história e o exame físico podem ser úteis em avaliar um caso suspeito. Por exemplo, a presença de vômitos antes do início da dor torna apendicite pouco provável. Da mesma maneira, a ausência de dor em fossa ilíaca direita, defesa ou febre também diminuem a probabilidade da doença.

Mas lembre-se: tornar pouco provável não é excluir! Na dúvida, observe o paciente por algumas horas ou marque um retorno rápido para reavaliação.

 


 

Qual é o diagnóstico diferencial da apendicite aguda?

Doença inflamatória pélvica

Endometriose

Cisto ou torção de ovário

Litíase / cólica renal

Diverticulite

Colecistite

Gastroenterocolites

Pancreatite aguda

Adenite mesentérica

Infecções do trato urinário

 


 

Exame físico e exames complementares: quais os mais úteis?

É importante conhecer as características dos exames para não cometermos uma supersimplificação incorreta (e comum), que é considerar a positividade de um exame como sinônimo da presença de doença, e um exame negativo como sinônimo da ausência de doença:

– Sinal do obturador: dor à rotação da coxa direita fletida – corresponde a uma apendicite de localização pélvica;

– Sinal do psoas: dor à flexão de coxa direita contra resistência – corresponde a uma apendicite retrocecal;

– Sinal de Rovsing: dor em fossa ilíaca direita após compressão da fossa ilíaca esquerda.

Estes são sinais clínicos acessórios, pouco frequentes (com baixa sensibilidade), portanto a sua ausência não exclui apendicite aguda.

 

Com relação aos exames complementares:

– PCR elevada + leucocitose: é uma combinação útil mas não é, obviamente, muito específica. Seu valor está na sua alta sensibilidade. O valor preditivo negativo da ausência desses achados é perto de 90%, ou seja: na ausência dessa combinação, a probabilidade de apendicite aguda diminui bastante;

– Ultrassonografia: tem menor acurácia, sensibilidade e especificidade que a tomografia, mas pode ser usada, a depender das condições de trabalho e experiência local;

– Tomografia (TC) de abdome: a sua utilização contribuiu para diminuir a incidência de laparotomias “brancas”, ou seja, em que o cirurgião suspeita de apendicite aguda mas esta não se confirma. A acurácia diagnóstica da TC é entre 80-95%.

Assim, a TC de abdome pode aumentar a acurácia diagnóstica para avaliação de apendicite aguda. Porém, se o quadro é muito típico e a suspeita clinica já for bastante alta, a avaliação cirúrgica não deve ser atrasada!

Por outro lado, o uso disseminado de TC em pacientes com quadros atípicos, de baixo risco para apendicite, pode produzir um número significativo de resultados falso-positivos, levando a apendicectomias desnecessárias.

Nos extremos de probabilidade, quando o diagnóstico clínico de apendicite é muito provável (quadro muito típico) ou quando é facilmente excluído (quadro pouco sugestivo), a TC poderia ser dispensada. Nesses casos, o tempo, custo e radiação associados à TC acabam suplantando seus benefícios.

O diagnóstico de apendicite aguda, por exemplo, em um homem jovem com dor clássica em fossa ilíaca direita e outros e sinais e sintomas típicos (febre, dor à descompressão brusca) já é tão provável com base nos dados clínicos que não há necessidade de TC para confirmar.

Já em mulheres, onde patologias ovarianas podem mimetizar apendicite, e também em homens em que o diagnóstico for mais incerto, é uma boa ideia realizar TC. Ou seja: a TC é melhor indicada em pacientes onde a probabilidade de apendicite é intermediária (nem muito alta nem muito baixa).

Em alguns casos, um período de observação ambulatorial ou hospitalar é recomendável, a despeito de um resultado de TC negativo para apendicite. Orientações claras e boa comunicação com o paciente são caminhos para minimizar o erro.

 

Já ouviu falar dos critérios de Alvarado? Eles ajudam a estimar a probabilidade de apendicite aguda num paciente com dor abdominal. Para saber mais, leia até o final.

 


 

Comentários sobre o caso inicial

No caso apresentado, a suspeita inicial foi de gastrenterite aguda. Esta patologia comum pode causar cólicas, dor abdominal intermitente ou dor muscular devido aos vômitos, mas não costuma apresentar dor importante e contínua. A presença de dor persistente deveria ter levado o médico a suspeitar de alguma doença abdominal com maior potencial de gravidade, incluindo a apendicite aguda, mesmo com a presença de vômitos. Evite dar o diagnóstico de gastrenterite, a menos que haja sinais e sintomas claros: dor abdominal tipo cólica, diarreia e vômitos importantes, ou febre baixa.

A melhor abordagem para avaliar um paciente no pronto-socorro com dor abdominal é suspeitar de apendicite (ou outra condição mais grave) já na fase inicial, mesmo que o diagnóstico ainda não seja possível, e instruir o paciente de acordo.

Se não houver desconforto abdominal nem justificativa imediata para TC de abdome ou observação hospitalar no primeiro atendimento, você pode dar um diagnóstico inicial de dor abdominal inespecífica, sem problemas, mas explique claramente para o paciente quais são os sinais e sintomas de alarme que devem fazê-lo retornar imediatamente para reavaliação. Se, então, o paciente retornar com apendicite aguda, não considere a primeira consulta como uma falha ou erro, mas como um sucesso; houve boa comunicação e o paciente retornou com segurança conforme orientado.

Voltando ao caso inicial: na segunda ida ao pronto-socorro, o mesmo médico voltou a atender a paciente. Para não ficar “preso” demais à sua impressão diagnóstica inicial (gastroenterite), ele foi prudente e solicitou a avaliação de um colega. Essa é uma ótima estratégia! Percepções e raciocínios diagnósticos prévios, nossos ou de outros, podem ser levados adiante e não serem mais questionados. Este é um erro cognitivo chamado ancoragem, fonte comum de erros no PS e de modo geral na medicina. E quanto mais vezes uma impressão diagnóstica é repetida, mais ela se torna inquestionável: é o que se chama “momento” diagnóstico.

No pronto-socorro, avaliações prévias de socorristas, enfermeiros e outros médicos devem ser sempre reavaliadas, para não ajudarmos a propagar um erro. As transições de cuidado (trocas de plantão, transferências de paciente) são pontos de risco para erros, permitindo a introdução de informações falsas ou incorretas que alteram o raciocínio diagnóstico.

Outra estratégia para evitar erros e melhorar as habilidades diagnósticas é repensar o caso – metacognição. Pergunte-se a si mesmo: dado o mesmo conjunto de fatos e circunstâncias, há uma explicação alternativa mais correta? Há outras possibilidades que podem ser consideradas? Há algum dado discordante? Todas as questões foram abordadas? Aplicar essa avaliação ampla pode prevenir erros.

A tomada de decisão diagnóstica é um exercício probabilístico que nunca será perfeito. Reconhecer o potencial de um viés cognitivo associado a uma impressão diagnóstica prévia é uma maneira sábia e formidável de evitar erros. Médicos são treinados para serem clínicos solitários e totalmente responsáveis, mas na vida real recebem a tarefa de trabalhar em grupo sem o devido treinamento. Ter acesso à experiência de um colega é um auxílio crítico em qualquer estágio do treinamento ou da vida.

 


Critérios de Alvarado
Os critérios de Alvarado são um escore validado para estimar a probabilidade de apendicite aguda em pacientes com dor abdominal, usando apenas achados clínicos e do hemograma.

 

A melhor interpretação do escore parece ser como segue:

Valores entre 1 – 4 pontos: probabilidade de apendicite <5% – paciente pode ser liberado com orientações de retornar se piora;

Valores ≥5 pontos: não confirmam apendicite mas aumentam a probabilidade de haver alguma patologia abdominal mais séria (não é específico para apendicite). Isso não significa que o paciente deverá ser operado mas que a atenção deverá ser maior, incluindo realização de exames de imagem como ultrassom ou TC.

Autores:

  • Fabrizio Almeida Prado
  • Leandro Arthur Diehl
  • Pedro Alejandro Gordan

Você pode referenciar o artigo acima usando o Digital Object Identifier (Identificador de Objeto Digital) – DOI.

DOI: 10.29327/823500-25