Diagnóstico de cefaleia - Raciocínio Clínico

Numa sexta-feira de manhã, Ana foi ao mercado fazer compras quando subitamente sentiu uma forte dor de cabeça e náuseas. Não conseguiu continuar as compras e foi para casa. Algumas horas depois, procurou o pronto-atendimento, mas estava lotado e a enfermeira da triagem avaliou-a.

Ela tinha 48 anos e um histórico de enxaqueca e hipertensão arterial bem controlada. Fora a dor, ela estava bem e, como a enfermeira não encontrou sinais de gravidade, orientou que retomasse o tratamento para migrânea (ergotamina / cafeína / dipirona).

No outro dia, persistindo com sintomas intensos, voltou ao pronto-socorro. Dessa vez, foi atendida pelo médico, para quem contou que teve início súbito de dor intensa, difusa, associada a náuseas – “talvez a pior dor de cabeça que já tive”.

O médico concordou com o diagnóstico de enxaqueca e explicou que ela não tinha melhorado porque ainda não houvera tempo para as medicações fazerem efeito. Prescreveu Tilatil EV e clorpromazina oral, com melhora significativa. Foi agendado retorno médico em 3 dias caso não houvesse melhora.

No retorno, ela comentou que os sintomas haviam regredido, mas ainda tinha dor aos esforços (como durante as evacuações) ou ao inclinar-se. O exame físico, incluindo o fundo de olho, estava normal. O médico ficou preocupado com a apresentação inicial e pensou em hemorragia subaracnóide (HSA), porém o curso parecia benigno, mesmo com a persistência da cefaleia, e ficou em dúvida. Sendo impossível excluir HSA, solicitou uma tomografia (TC) de crânio. Mais tarde, recebeu o laudo: a TC estava normal.

Mesmo assim, o doutor continuou em dúvida e preocupado. Ligou para Ana na manhã seguinte. Ela tinha acabado de acordar, muito gentil, agradeceu a preocupação e disse que se sentia bem melhor… de repente o telefone ficou mudo. Ele ligou de novo. Ocupado… Chamou o SAMU e torceu pelo melhor.

Encontraram-na caída, responsiva somente a estímulos dolorosos. Uma angioressonância demonstrou aneurisma de circulação posterior, que foi clipado no mesmo dia.

Felizmente a evolução foi boa, com recuperação neurológica completa. 

 

Diagnóstico de cefaleia (e de HSA)

As cefaleias correspondem a 4% das consultas ambulatoriais e 2% dos atendimentos de pronto-socorro. Menos de 1% dessa população terá HSA. Além disso, cerca de 3 a 4% apresentarão alguma outra condição que ameace a vida, visão, membros ou cérebro se não tratada (veja abaixo algumas condições que você não deve perder!).

No diagnóstico de cefaleia, a tarefa mais importante do clínico é distinguir os 95% dos pacientes com cefaleias benignas daqueles 5% com doenças graves que precisarão de tratamento de emergência.

Mesmo na nossa era de acesso rápido a exames sofisticados de neuroimagem, o diagnóstico de HSA não-traumática ainda é perdido (misdiagnosed) em 20–30% dos casos.

Por que isso ocorre?
Anote bem as 3 principais razões para deixar passar uma HSA, que são as seguintes:

1Não considerar o diagnóstico;

2Não considerar as limitações da tomografia (TC)

3Não realizar ou não interpretar corretamente uma punção lombar

Vamos comentar um pouco mais sobre cada uma dessas razões abaixo:

Não considerar o diagnóstico

Veja alguns pensamentos errados que podem atrapalhar o diagnóstico de cefaleia e HSA:

Ficar “preso” na cefaleia tensional e na enxaqueca. OK, essas são as causas mais comuns de cefaleia. Mas até mesmo os pacientes que são sabidamente portadores dessas cefaleias benignas podem eventualmente desenvolver outro tipo de cefaleia! Por isso, é importante avaliar se a cefaleia atual é idêntica aos episódios anteriores, ou se o paciente está apresentando uma cefaleia nova e diferente. Veja algumas perguntas que podem ajudar:

  • O início, intensidade, duração e qualidade da dor são os mesmos?
  • Os sintomas associados são os mesmos?
  • Qual a frequência e quais os fatores desencadeantes da cefaleia no passado?
  • Houve alguma investigação da cefaleia?
  • A dor atual está tendo a mesma resposta ao tratamento que as demais?

Acreditar que só é HSA se houver um sintoma grave, como início agudo e dor intensa, déficits neurológicos (paralisia de nervo craniano) ou meningismo.

Como a maioria das doenças, as apresentações clínicas de HSA podem variar entre manifestações leves e manifestações extremamente graves. É bom lembrar que pacientes em bom estado geral, com exame neurológico normal, correspondem a 30-40% dos casos de HSA! Esperar por um sintoma clássico, em qualquer doença, é permitir erros diagnósticos. Além disso, os pacientes com acometimento leve são aqueles que mais se beneficiam do pronto diagnóstico e tratamento correto.

Acreditar que os sintomas de HSA sempre iniciam após esforço intenso. Cerca de 50% dos pacientes com HSA tem início dos sintomas com atividades leves, ou mesmo em repouso (podem ser inclusive acordados do sono).

Acreditar que a dor da HSA é sempre súbita e a pior da vida. Muitos pacientes com HSA não classificam a dor como 10/10, ou “a pior de todas“. Em muitos, o início é gradual e não súbito (thunderclap). No entanto, quase todos descreverão a cefaleia como diferente da habitual, em relação à intensidade ou ao caráter.

Acreditar que a melhora da cefaleia com analgésicos é suficiente para excluir algo grave.

Alguns outros cuidados na anamnese e exame físico para não ser “enganado”:

  • Às vezes os pacientes usam os termos “enxaqueca” e “sinusite” para dizer que estão com dor de cabeça (ou eles mesmos já se atribuem esses diagnósticos). Não “compre” o diagnóstico do paciente! Avalie com mais detalhes e raciocine por você mesmo.
  • O exame físico na HSA é muitas vezes normal. Somente 10–15% terão paralisia do 3º par craniano (oculomotor). Cerca de 85% dos aneurismas estão na circulação anterior, onde eles têm pouco risco de afetar nervos cranianos. Meningismo e hemorragia ocular também só ocorrem numa minoria de pacientes.

2Não considerar as limitações da tomografia

Pacientes com sintomas mais leves têm sangramentos menores, portanto com maiores probabilidades de apresentar uma tomografia (TC) normal. Além disso, a sensibilidade da TC vai caindo conforme o tempo passa!

Nas primeiras 12 horas do início da cefaleia, a sensibilidade da TC é próxima de 98%.

Três dias após o início, a sensibilidade é de 85%.

Após uma semana, a sensibilidade já cai para apenas 50%.

Diagnóstico de cefaleia - Tomografia

3Não realizar ou não interpretar corretamente uma punção lombar

Na HSA, o líquido cefalorraquidiano (LCR) pode se apresentar com sanguexantocromia ou pressão de abertura elevada na punção lombar.

Sangue no LCR pode ser por HSA verdadeira ou por trauma de punção. A xantocromia é o melhor método para diferenciar as duas condições, e sua presença indica HSA. No entanto, amostras que tenham mais de 10.000 hemácias/µL, ou que tenham ficado muitas horas paradas, aguardando análise, podem exibir xantocromia na ausência de HSA.

pressão de abertura elevada está presente em 2/3 dos pacientes com HSA. Se mal interpretada, pode sugerir diagnósticos alternativos, como hipertensão intracraniana idiopática ou trombose venosa cerebral.

Diagnóstico de cefaleia - xantocromia

Xantocromia (à esquerda)


Uma lista de causas de cefaleia que você não pode esquecer

(Diagnósticos “Cannot miss“)

Hemorragia subaracnoide (HSA)

Meningite e encefalite

Arterite temporal

Glaucoma agudo de ângulo fechado

Emergência hipertensiva

Intoxicação por monóxido de carbono (CO)

Pseudotumor cerebri

Trombose venosa cerebral ou de seio dural

AVE isquêmico ou hemorrágico

Lesões expansivas: tumor, abscesso 

Dissecção arterial craniocervical

Hematomas intracranianos: parenquimatoso, subdural, epidural

Uma regrinha que não te deixará mandar para casa ninguém com HSA

Já ouviu falar na Regra de Ottawa para hemorragia subaracnoide (HSA)?

Essa regra para diagnóstico de cefaleia é de uso exclusivo para pacientes com cefaleia não-traumática, de início súbito, com pico de dor dentro de até 1 hora do início, sem déficits neurológicos.

A investigação com exames de imagem é necessária quando o paciente apresenta um ou mais dos seguintes critérios:

– Idade ≥40 anos;
– Dor ou rigidez no pescoço;
– Perda de consciência; 
– Início durante esforço; 
– Pico súbito da dor (em trovoada); 
– Limitação à flexão do pescoço ao exame. 

Na ausência de TODOS esses critérios, NÃO é necessário proceder à investigação com TC.

sensibilidade destes critérios é de 100% (ou seja, você não vai mesmo mandar para casa ninguém com HSA!), mas eles não são muito específicos (ou seja, muitas pessoas com positividade nestes critérios não terão de fato HSA).

A tomografia (TC) de crânio realizada dentro das primeiras 6 horas do início da dor pode excluir HSA com segurança (exceto em pacientes com anemia grave).

Pacientes de alto risco para HSA pela regra de Ottawa, mas com TC normal após 6 horas do início da dor devem ser submetidos à punção lombar para análise do líquor (LCR).

 

Comentários finais 

No caso em questão, pode ter ocorrido um fenômeno chamado ancoragem, um viés cognitivo que faz com que nos agarremos demais à primeira impressão diagnóstica (neste caso, a enxaqueca que a própria paciente informou ter) e torna difícil nos afastarmos dela, mesmo que surjam novos dados sugerindo outras alternativas.

Na avaliação do diagnóstico de cefaleia da nossa paciente, poderia ter sido utilizada a regra de Otawa, pois ela tinha uma cefaleia não-traumática, de início súbito, com pico de dor em uma hora, sem déficits neurológicos. Usando a regra, ela teria pelo menos um critério: a idade ≥40 anos, o que já indica alto risco. Sendo assim, ela já teria indicação de avaliação por TC logo no primeiro dia.

Infelizmente, a TC só foi feita no 4º dia após o início da dor, quando a sensibilidade do exame para detectar HSA já é bem menor. Nesta situação, o correto seria analisar o LCR. Pode parecer agressivo realizar uma punção lombar em uma paciente com ótimo estado geral e com melhora da cefaleia após analgesia simples, mas não se deixe enganar: se há suspeita de HSA, é necessário!


PARA SABER MAIS:

Edlow JA. The worst headache. PSNet – Patient Safety Network, 2004.

Perry JJ et al. Clinical decision rules to rule out subarachnoid hemorrhage for acute headache. JAMA, 2013.

Perry JJ et al. Validation of the Ottawa Subarachnoid Hemorrhage Rule in patients with acute headache. CMAJ, 2017.


Reprinted with permission from AHRQ Patient Safety Network: Edlow JA. The worst headache. AHRQ WebM&M [serial online]. July 2004. Available at: https://psnet.ahrq.gov/webmm/case/69/the-worst-headache.


Autores:

  • Fabrizio Almeida Prado
  • Leandro Arthur Diehl
  • Pedro Alejandro Gordan

Você pode referenciar o artigo acima usando o Digital Object Identifier (Identificador de Objeto Digital) – DOI.

DOI: 10.29327/823500-30