A história que vou contar é totalmente verdadeira e pode acontecer com qualquer estudante de Medicina desavisado e explorado, na sua ingenuidade, por médicos irresponsáveis e inescrupulosos.
Explico melhor. Todos sabem que cursos de Medicina, desde sempre, carecem dos chamados “cenários de práticas”, onde estudantes podem aprender, supervisionados por profissionais qualificados.
É também sabido que estudantes de Medicina, na ânsia de aprender, procuram “estágios”, nem sempre supervisionados, onde podem realizar procedimentos que jamais fariam na sua faculdade, por falta de condições ou por excesso de zelo de seus docentes, que não deixariam um estudante realizar qualquer procedimento sem treinamento prévio e sem supervisão estrita. Esses “estágios” constituem o chamado currículo paralelo.
Quem nunca acompanhou a visita de um grande médico, em hospital ou clínica privada? Quem nunca estagiou no hospital do tio médico, podendo realizar suturas, partos, intubações orotraqueais, examinar pacientes, até dar consultas?
A construção do currículo paralelo, muitas vezes, acaba sendo quase obrigatória, por deficiências das inúmeras faculdades criadas com motivação política e sem condições mínimas.
Mas vamos à nossa história. Eram os “roaring sixties“ de Woodstock, Beatles, sexo e rock’n’roll. O país se debatia numa ditadura feroz, o autoritarismo grassava nas universidades (especialmente nas Federais) e as greves se sucediam, como sempre, nas escolas públicas.
Alexandre (vamos chamá-lo assim), desesperado por ter a grande greve lhe “comido” um terço do curso de Medicina, foi trabalhar como estagiário num grande hospital de Curitiba – na época, Cidade Sorriso. A prova para admissão ao estágio era só formalidade. O que valia era a “peixada” com os colegas mais velhos, ou a indicação por algum “cupincha” médico.
Era um domingo à tarde. Lá estava o Xandrão entre inúmeros colegas de plantão, dentre eles o “chefe de plantão” e seu imediato, um sextanista, torcedor fanático do Coritiba, que, aliás, jogava esta tarde em mais um Atletiba imperdível, radinho colado no ouvido, sintonizado na PRB2.
Chega uma paciente de 16 anos, agitada e falando palavras desconexas, trazida por colegas de um time de basquete do interior que disputava uma olimpíada estudantil na capital. Relatam os colegas que ela estava bem e de repente caiu e começou a “variar”. O chefe de plantão, sem ver a paciente, manda chamar o psiquiatra de plantão. Este chegou dentro de duas horas, tempo razoável para uma urgência psiquiátrica, exalando whisky barato – e também não examinou a paciente! Chamou o estagiário:
– Xandrão! Você já fez punção lombar?
– Não, mas vi umas três ou quatro.
– Então venha aqui, peça o material de punção que você vai puncionar esta menina. Pode deixar que eu seguro ela na posição para você.
Xandrão, num misto de medo e excítação, foi lá, material preparado, assepsia feita, campos colocados. Localizou o espaço intervertebral direitinho, e, apesar do grande tremor, fez uma anestesia local bem feita. O psiquiatra, entre comentários futebolísticos e palavrões, explicou:
– Agora você pega a agulha grande, passa a pele, vai sentir uma primeira resistência – é o ligamento! Depois você vai empurrando a agulha até sentir ela passar uma estrutura parecendo uma bola de borracha. Vai fazer “trec“. Aí você tira o mandril e deixa pingar o liquido no frasco do laboratório.
E lá foi o Xandrão. Fez tudo certo e depois do “trec” veio um líquor de cor rósea e meio depressa demais. Logo encheu o frasco. O médico comentou:
– É Xandrão! Já na primeira punção tinha que fazer um acidente! Mas isso não é nada. Mande o líquor para o laboratório, preencha a papelada e interne a moça, que eu já prescrevi um “coquetel” para ela dormir. E não me encha mais o saco com telefonemas, que hoje é domingo e tá tendo um churrascão lá em casa!
Ordens dadas e cumpridas, Xandrão sentiu uma ponta de orgulho, respirou fundo, mas ficou meio assim com o acidente de punção… Mas, para um terceiranista de Medicina, até que foi um procedimento e tanto!
O dia terminou, o Coritiba ganhou de novo e tudo bem.
No dia seguinte, Xandrão ouve as três palavras mais temidas em Medicina:
– Lembra aquela paciente?… Aquela que você puncionou ontem? Morreu!
As palavras foram ditas por um colega com maldade e prazer mórbido, nenhum consolo ou alívio. Mas, como? Uma doença psiquiátrica conduzida por um especialista renomado… Nesse momento Xandrão caiu em si: “matei a Yumi!” (Assim ela se chamava, tinha só 16 anos.)
“Mas, como? Que doença ela tinha?” (O psiquiatra, ao que se sabe, deu um diagnóstico de nome complicado e preencheu o atestado de óbito, sem problemas.) “Mas, como? Quem falou com a família? Foi erro médico? Vai dar processo? Mas, como?…”
Xandrão ficou péssimo. Imaginava a família recebendo a notícia, o namorado, os irmãos, os avós, a mãe, o pai! E, por dentro, uma voz: “matei a Yumi!”
Yumi morreu por herniação das amígdalas.
E Xandrão ficou a se perguntar: “por que não fiz um fundo de olho antes? Por que não medi a pressão liquórica? Por que não fui ver o resultado do líquor?” (Estava xantocrômico após a centrifugação.) “Matei a Yumi!”
O psiquiatra ainda comentou no cafezinho dos médicos:
– Que doença fulminante que matou a japonesinha! Deve ter sido uma meningite…
E não se tocou mais no assunto.
Só o Xandrão ficou com aquilo: “matei a Yumi! Mas, como?…”
Ninguém foi capaz de avaliar o seu tormento, a sua culpa.
“Matei a Yumi!” Até onde se sabe, essa voz martela na sua cabeça até hoje!
Olhando para trás, é possível imaginar o que ocorreu. Mas a verdade é que, em busca de um currículo paralelo, Alexandre foi envolvido em um erro médico que nem era seu. Um erro médico que lhe foi passado por procuração.
“Mas, como?…”
PARA SABER MAIS:
Quer entender melhor o que houve com a Yumi? Leia nosso post anterior sobre a hemorragia subaracnoide!
Se quiser, veja também o vídeo abaixo, do New England Journal of Medicine (legendado), sobre a punção lombar para análise do líquor!