Muitos de nós, ao pensar em médicos trabalhando, imaginamos profissionais capazes de encontrar explicações corretas sobre todo tipo de problemas de saúde. E mais que isso: acreditamos que médicos costumam fazer isso sempre de forma confiante e segura. Incerteza? Isso nem nos passa pela cabeça!

incerteza-na-medicina-3-raciocinio-clinico-medico-contente

É compreensível pensar assim. Afinal, se você cair doente, você precisa do conforto psicológico que vem de acreditar que o profissional que vai cuidar de você não tem quaisquer dúvidas, inseguranças ou incertezas.

Só tem um probleminha: isso não é verdade!

Na imensa maioria das vezes, o trabalho do médico, e especialmente o processo diagnóstico, ocorre em um contexto repleto de incerteza.

Ou seja: na vida real, raramente o médico consegue atingir um entendimento completo e definitivo sobre o “verdadeiro” diagnóstico de um paciente.

Muito mais comum é a formulação de uma explicação razoável para os sintomas de um paciente, assim que o médico sente-se confortável com as informações que colheu e o raciocínio que desempenhou. É o chamado “diagnóstico provisório”, ou “diagnóstico de trabalho”. Em geral, esta impressão diagnóstica inicial é segura o suficiente para permitir uma tomada de decisão (diagnóstica ou terapêutica), mas também é inerentemente transitória: pode ser revista e atualizada a qualquer momento, se surgirem novas evidências que apontem numa direção diferente.

INCERTEZA NA MEDICINA: ONIPRESENTE - E INVISÍVEL!

Existem vários fatores que contribuem para que a Medicina seja um ambiente recheado de incerteza, como, por exemplo:

  • limitações humanas do médico para identificar, selecionar e interpretar informações;
  • limitações de linguagem e comunicação do paciente para descrever seus sintomas;
  • limitações da sensibilidade e especificidade do exame físico e exames complementares.

(Clique aqui caso queira ler mais sobre os fatores contribuintes para a incerteza na Medicina!)

Portanto, se um médico disser a você que ele tem certeza do diagnóstico, é bem possível que ele esteja errado – ou tenha confiança demais nas suas impressões.

Está mais próximo da verdade o médico que reconhece que algum grau de incerteza sempre permanecerá ali ao seu lado.

Inclusive, essa é uma das definições do raciocínio clínico:

"O EXERCÍCIO DE FAZER JULGAMENTOS SOB INCERTEZA DURANTE O CUIDADO DO PACIENTE."

Se prestarmos atenção, vamos ver sinais da onipresença da incerteza em todo canto da Medicina: na linguagem de médicos experientes (“é provável que você tenha a doença X”), no velho hábito (salutar!) de fazer listas de diagnósticos diferenciais para todo mundo, ou na discordância entre guidelines diferentes sobre a mesma doença.

Mesmo assim, nem os pacientes, nem o público em geral – e, muitas vezes, nem os próprios médicos – reconhecem a importância da incerteza na profissão médica.

Alguns médicos, inclusive, preferem ignorar a incerteza subjacente ao seu trabalho. Isso tem a ver com traços de personalidade. Há pessoas que ficam extremamente ansiosas quando confrontadas com a incerteza, a ambigüidade ou a complexidade. Médicos com estes traços de personalidade tendem a cometer mais erros, pedir mais exames e ter mais problemas psicológicos, como burnout. Médicos mais velhos e mais experientes, por outro lado, tendem a tolerar melhor a incerteza.

(E você, quer saber qual é o seu grau de tolerância com a incerteza? Então faça o teste neste link e descubra!)

INCERTEZA COMO SENTIMENTO DO MÉDICO

Alguns autores definem a incerteza diagnóstica como “a sensação subjetiva da incapacidade de dar uma explicação acurada para o problema de saúde de um paciente.”

Conscientizar a sociedade e os próprios médicos sobre a incerteza inerente à profissão médica seria um ótimo ponto de partida para uma relação mais franca e honesta entre médicos e seus pacientes.

Reconhecer a onipresença da incerteza também seria um poderoso estímulo à busca e à implementação de estratégias para nos ajudar a errar menos.

"Pacientes, médicos e a sociedade em geral precisam ter um melhor entendimento sobre as limitações da Medicina."

Mas como fazer as pessoas reconhecerem e abraçarem a incerteza?

Embora essa seja uma tarefa complexa, o primeiro passo é simples.

Precisamos falar sobre ela!

ACURÁCIA DIAGNÓSTICA E CERTEZA DO DIAGNÓSTICO

Um modelo simples e elegante para promover e facilitar conversas sobre a incerteza é o proposto por Santhosh e colaboradores, em um artigo recentemente publicado na revista Diagnosis.

Eles propõem um modelo de tabela 2×2 que considera a acurácia diagnóstica (se o diagnóstico está correto ou não) separadamente da certeza do diagnóstico (se o médico está seguro ou não do diagnóstico).

incerteza-na-medicina-3-raciocinio-clinico-quadrantes

Quadrante 1

É o “gol de placa”, quando o médico faz o diagnóstico correto e com certeza. Aumentar a freqüência de diagnósticos neste quadrante seria um ideal a ser buscado pela educação médica;

QUADRANTE 2

É quando o médico está “cautelosamente otimista”, ou seja, fez o diagnóstico correto mas com graus variáveis de incerteza. Freqüentemente médicos se encontram neste quadrante. O paciente não é prejudicado (pois o diagnóstico está correto), mas o médico pode pedir mais testes que o necessário;

QUADRANTE 3

Aqui é que mora a overconfidence (“excesso de confiança”), quando o médico tem certeza de um diagnóstico, mas este diagnóstico está errado. É neste quadrante que os pacientes correm mais riscos de danos sérios!

QUADRANTE 4

Este é o “mistério diagnóstico”, quando o médico não consegue chegar ao diagnóstico correto e tem consciência disso (reconhece a incerteza). Como consequência, o profissional geralmente acaba buscando mais dados.

A idéia desta tabela é que seja incluída em discussões de casos clínicos entre médicos, professores e estudantes, através da pergunta:

"EM QUAL QUADRANTE NÓS ESTAMOS AGORA?"

Desta forma, ao chamar atenção especificamente para a incerteza subjacente ao processo diagnóstico, podem ser desencadeadas conversas interessantes sobre este tópico, que freqüentemente é ignorado ou não verbalizado.

COMO RECONHECER A INCERTEZA PODE AJUDAR O MÉDICO?

Em um caso complexo com significativo grau de incerteza, essa pergunta pode, por exemplo, levar a uma discussão sobre se solicitar mais algum teste diagnóstico pode ajudar a mudar a posição da equipe médica de um quadrante para outro.

Se o teste der positivo, isso vai realmente aumentar a probabilidade daquela hipótese diagnóstica (ou seja, vai aumentar a acurácia diagnóstica), ou vai apenas deixar a equipe mais confiante na sua hipótese (ou seja, aumentar a certeza do diagnóstico)?

Essa discussão explícita sobre a incerteza pode ajudar não só a melhorar as habilidades de tomada de decisão clínica, mas também a promover uma cultura onde o impacto potencial de testes diagnósticos adicionais no cuidado dos pacientes seja amplamente discutido.

Experimente usar esta tabela nas suas próximas discussões de casos!

Isso pode ajudar você a reconhecer a incerteza, essa companheira constante de todo médico.

Afinal, há mais de um século, já dizia Sir William Osler, um dos maiores médicos e filósofos da Medicina de todos os tempos:

incerteza-na-medicina-3-raciocinio-clinico-william-osler

GOSTOU?...

Este post faz parte de uma série de 3 artigos sobre a incerteza na Medicina.

Aproveite para ler os outros dois!

PARA SABER MAIS:

Neves FF & Pazin-Filho A. Raciocínio clínico na sala de urgência. Medicina, Ribeirão Preto, 2008.

Hatch S. Uncertainty in medicine. BMJ, 2017.

Santhosh L, Chou CL, Connor DM. Diagnostic uncertainty: from education to communication. Diagnosis, 2019.

Autor: Fabrizio Almeida Prado

Você pode referenciar o artigo acima usando o Digital Object Identifier (Identificador de Objeto Digital) – DOI.

DOI: 10.29327/823500-59