Autópsias sempre foram uma grande ferramenta para aprender sobre o funcionamento do corpo humano e as doenças – e ainda são importantes, embora hoje se façam bem menos.
Mas hoje vamos falar de uma autópsia diferente: a da sua cabeça!
Calma! Não vamos precisar abrir seu crânio para isso.
Na verdade, vamos falar da autópsia dos seus processos de raciocínio: uma autópsia cognitiva!
Mas, desde já, fique alerta: este post é só para quem tem “cabeça aberta” e gosta de aprender com as dificuldades e com os seus erros.
Você faz parte desse grupo?…
Então, continue lendo!
Erros diagnósticos
Erros diagnósticos são comuns: estima-se que 1 em cada 7 diagnósticos está errado, e o raciocínio do médico é a maior fonte de erros (em dois terços dos casos).
Embora gostemos de acreditar que todas (ou quase todas) as nossas decisões são tomadas de forma racional, a verdade não é bem assim.
Você deve se lembrar do Sistema 1, do Sistema 2 e dos vieses de raciocínio, não é mesmo? (Se não lembra, clique nos links para conhecer esses conceitos importantes!)
Vieses são tendências inatas do pensamento que “puxam” nosso raciocínio sempre na mesma direção. Existem mais de 100 desses vieses descritos na literatura.
Infelizmente, nem sempre nos damos conta dos vieses, pois nosso pensamento é um processo invisível e difícil de examinar diretamente.
Por isso, médicos que cometem algum erro podem não entender como ou por que erraram.
É aqui que entra a “autópsia cognitiva”, um processo que pode ajudar a identificar e a entender as causas de um erro.
Veja o exemplo abaixo de uma senhora que quase perdeu a vida por um erro diagnóstico, e em seguida os nossos comentários sobre as causas desse erro e a autópsia cognitiva:
Caso clínico: Uma dor no ombro
Uma mulher de 68 anos procurou a emergência queixando-se de dor no ombro.
Ela acreditava que podia ter “distendido” o ombro enquanto cortava grama, mais cedo naquele dia. Segundo ela, o cortador de grama ficou preso em alguma coisa e ela teve que puxar o aparelho com força para livrá-lo, desenvolvendo dor logo em seguida.
No setor de triagem, observou-se que ela tinha dor à movimentação do ombro e que seus sinais vitais estavam todos normais.
Foi triada como um caso de baixa prioridade e mandada ao consultório de atendimentos de rotina, onde ficou aguardando o médico.
Este conversou com ela e detectou uma discreta limitação da movimentação do ombro, sem nenhuma outra alteração ao exame físico.
Uma radiografia mostrou apenas alterações degenerativas da articulação do ombro.
O médico orientou o uso de uma tipoia e prescreveu repouso e anti-inflamatórios por alguns dias, para o que ele diagnosticou como “osteartrose”.
Poucas horas depois, a paciente retornou ao mesmo hospital, após um mal-estar súbito associado a náuseas e vômitos.
Desta vez ela estava pálida, hipotensa e diaforética.
O eletrocardiograma da entrada revelou um infarto agudo do miocárdio (IAM) da parede inferior.
Felizmente, ela recebeu tratamento adequado e evoluiu bem, mas, assim que foi possível, cobrou uma explicação.
Por que seu IAM foi “perdido” na primeira avaliação?
O que deu errado neste caso?
Na análise da história, podemos identificar alguns vieses que podem ter contribuído para o diagnóstico perdido de IAM na primeira avaliação:
- Efeito moldura: a maneira como as informações são apresentadas tem impacto na maneira como elas são interpretadas. No caso, a paciente apresentou a queixa de dor no ombro já acompanhada de uma possível explicação (lesão muscular no ombro devido ao esforço com o cortador de grama). Embora esta explicação fosse baseada apenas na opinião pessoal da paciente, ela pode ter influenciado no raciocínio dos profissionais que a atenderam.
Daniel Kahneman, de quem já falamos aqui neste blog, já alertava para uma falácia comum: confundir correlação com causa. A mente humana tem uma grande tendência natural para a causalidade, ou seja, para construir uma história que “faça sentido” usando os dados que possuímos. Essas histórias acabam sendo convincentes, mesmo que estejam erradas!
- “Geografia é destino”: o local onde o paciente é avaliado tem impacto no processo de avaliação. A triagem do hospital interpretou o caso de dor no ombro como sendo de menor gravidade, então atribuiu baixa prioridade (“ficha verde”) e encaminhou nossa paciente para o local onde eram atendidos casos “mais simples”. Ali ela foi atendida por um médico que, tendo em vista a prioridade e o local, já estava predisposto a encontrar um caso de baixa complexidade ou de menor gravidade – e foi exatamente isso que ele viu.
- “Search satisficing”: quando encontramos uma primeira explicação ou diagnóstico, tendemos a ficar “satisfeitos” – e paramos de procurar. Neste caso, o médico da emergência viu uma senhora com dor no ombro, encontrou uma limitação de movimentação nessa articulação e contentou-se com a explicação de “osteoartrose”, sem procurar por outras entidades ou doenças adicionais. (O que, em última instância, acaba levando ao viés mais comum de todos: o fechamento prematuro.)
- Viés de confirmação: damos mais valor aos dados que confirmam nossa hipótese inicial do que a dados que falam contra nossa impressão. Aqui, o médico viu alterações inespecíficas (provavelmente crônicas) no raio-x do ombro e usou este dado para confirmar a hipótese inicial de dor osteomuscular – ignorando o fato de que esta paciente tinha uma dor aguda, relacionada a esforço e severa o suficiente para fazê-la procurar o pronto-socorro, dados estes que deveriam ter alertado para outras possibilidades!
Em conclusão, a única boa explicação para o diagnóstico perdido de IAM foi que algo deve ter desviado o raciocínio e a atenção do primeiro médico para o ombro, e não para o coração – provavelmente, uma combinação dos vieses indicados acima!
Reações do médico ao erro diagnóstico
Quando cometemos um erro diagnóstico (especialmente se ele levar a um dano significativo ao paciente), a primeira reação costuma ser de surpresa e choque, além de preocupação com o bem-estar do paciente.
Depois disso, podemos entrar numa cascata de culpa, autocrítica, medo e insegurança, que podem terminar levando ao desespero em alguns casos. Este é o chamado “efeito da segunda vítima”.
Apesar de serem reações humanas comuns e compreensíveis, essas respostas emocionais não são as mais saudáveis, ainda mais se considerarmos que todo ser humano pode cometer erros a qualquer momento.
Erros diagnósticos e autópsia cognitiva
Por isso, que tal usar esses erros para aprender? Isso talvez possa ser até uma parte da “cura” do médico: aprender com um erro para que outros pacientes sejam beneficiados!
Uma das maneiras é fazendo uma autópsia cognitiva, um tipo de “análise de causa raiz” (root cause analysis) aplicada ao erro diagnóstico e ao processo de raciocínio clínico.
A idéia é registrar, da maneira mais objetiva possível, todos os fatos e impressões relacionados ao evento do erro diagnóstico.
Depois, esse registro é minuciosamente analisado em busca dos vieses cognitivos e afetivos que possam ter ocorrido e contribuído para o erro.
Esse tipo de análise também pode ser feito em casos sem erros (ou erros sem dano), em quase-erros e em casos difíceis, onde houve reações afetivas intensas ou conflitos de relação; tudo isso para aprender e melhorar nossa conduta.
A principal vantagem deste exercício é que ele pode trazer feedback realista e significativo para o médico, fornecendo assim valiosos insights sobre seu processo de raciocínio.
Com isso, espera-se que ocorra um aprendizado profundo e verdadeiro, que pode mudar seu processo cognitivo e prevenir novos erros.
Autópsia cognitiva: como fazer
O passo a passo para fazer uma autópsia cognitiva efetiva, adaptado do trabalho do nosso amigo Pat Croskerry, está no quadro abaixo:
1. Revise o caso o mais rápido possível, de preferência imediatamente após o evento, quando os detalhes ainda estão “frescos” na memória;
2. Evite discutir o caso com outras pessoas antes de registrar as suas lembranças;
3. Reserve um dia em que você esteja descansado e tenha dormido bem;
4. Encontre um lugar seguro e tranqüilo, livre de interrupções;
5. Comece a relembrar o que aconteceu no caso, desde o início do dia ou do plantão;
6. Deixe sua mente fazer livres associações sobre o evento;
7. Tente lembrar inclusive de ideias ou sentimentos que lhe ocorreram na ocasião;
8. Preste muita atenção às condições do ambiente ao seu redor no momento do ocorrido;
9. Anote tudo que você lembrar, mesmo o que parecer trivial ou irrelevante;
10. Só depois disso, converse com outras pessoas e registre comentários e observações delas;
11. Em seguida, analise os fatos e impressões registrados;
12. Identifique os vieses (cognitivos ou afetivos) que estiveram envolvidos no evento, e qual o impacto de cada um para o erro;
13. Imagine estratégias para evitar que esse tipo de erro volte a ocorrer no futuro;
14. Compartilhe lições aprendidas com as outras pessoas, para aprendizado e aperfeiçoamento mútuo.
(Traduzido e adaptado de Croskerry, 2005.)
Uma oportunidade para aprender e ensinar
Outra oportunidade valiosa é discutir as lições aprendidas com seus erros com seus colegas médicos e estudantes, para que todos aprendam com o fato.
São as chamadas reuniões “Morbidity & Mortality” (M&M), muito usadas em hospitais americanos. Essas sessões foram criadas originalmente com o objetivo de “disponibilizar um fórum para médicos confessarem seus erros e assim ajudarem seus colegas a não cometer erros semelhantes.”
Mas atenção: essas reuniões não devem ser um palco para atitudes negativas, como: acusar, julgar ou negar.
A ideia é discutir os processos de pensamento que levaram o erro, e não apontar culpados.
Afinal, todos erram! (A diferença é que alguns médicos não admitem ou não falam sobre isso.)
Para isso, humildade, maturidade e a vontade sincera de aprender e melhorar são indispensáveis.
E aí? Vamos tentar?…
Você sabia?…
O jornalista Paulo Francis morreu em 1997, aos 66 anos, de um infarto fulminante. Ele estava sentindo muita dor no ombro, há alguns dias – que o médico dele atribuiu a uma bursite!
Clique aqui para ler a história completa
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PARA SABER MAIS:
Croskerry P. Diagnostic failure: a cognitive and affective approach. In: Henriksen K, Battles JB, Marks ES et al. Advances in Patient Safety: From Research to Implementation. Rockville: Agency for Healthcare Research and Quality, 2005.
Pat Croskerry. Cognitive autopsy: 2 cases of diagnostic failure. [vídeo] Univadis, 2018.
Autores:
Leandro Arthur Diehl, Fabrizio Almeida Prado, Pedro Alejandro Gordan
Você pode referenciar o artigo acima usando o Digital Object Identifier (Identificador de Objeto Digital) – DOI.
DOI: 10.29327/823500-68