Eu trabalho em um hospital que é referência para COVID-19. Conversando com colegas, ouço sempre a mesma reclamação: muitos pacientes estão sendo encaminhados para cá como COVID-19 – sem ter COVID-19.
Parece ter virado rotina no pronto-socorro. Em muitos desses casos (se não a maioria), basta uma rápida avaliação clínica para descobrir que seus sintomas respiratórios têm outras causas: insuficiência cardíaca descompensada, crise de asma, pneumonia lobar etc.
Uma senhora idosa com Alzheimer avançado engasgou ao comer e evoluiu com hipóxia: veio como COVID. Uma moça com infecção puerperal grave e sepse, já internada em outro serviço, um dia queixou de dispneia: virou COVID. Uma adolescente com cetoacidose diabética e taquipneia: COVID. Um senhor com dor na garganta um dia depois de intubação orotraqueal para cirurgia eletiva: adivinha?
Os colegas até brincam que COVID virou sobrenome: este paciente tem um “TEP COVID-19”, aquele tem “câncer de pulmão COVID”, este outro tem “pancreatite COVID”…
O que me leva a uma pergunta: durante uma pandemia como esta, ocorrem mais erros diagnósticos que o habitual?
Quando fiz essa pergunta aos meus colegas, eles foram unânimes: “sim, é evidente, estamos vendo isso todos os dias!”
No entanto, ao buscar respostas na literatura, não encontrei nem um estudo científico sequer a esse respeito. (O que não quer dizer que isso não ocorra – só que ninguém estudou isso ainda!)
Mesmo assim, vale a pena refletir: por que uma pandemia como a de COVID-19 aumentaria o risco de erros diagnósticos?
É o que vamos tentar responder a seguir.
Viés de disponibilidade
Na minha opinião, este é o principal predisponente ao aumento do risco de erros diagnósticos em uma pandemia.
O viés da disponibilidade é o que nos faz julgar que qualquer explicação para um fenômeno é mais provável quanto mais fácil de lembrar – o que nem sempre é verdade!
Veja bem: diante de um paciente com dor de garganta e febre, podemos, sim, lembrar com facilidade de amigdalite, se esta é vista com muita frequência. Nesse caso, tudo bem: amigdalite é fácil de lembrar porque é uma causa muito comum (ou seja, muito provável) desse sintoma.
Mas também podemos lembrar com facilidade de alguma doença que não seja tão provável, mas que nos marcou por qualquer outro motivo!
Imagine, por exemplo, que há uma semana você atendeu outro paciente com dor de garganta e febre que acabou morrendo de forma dramática na sua mão, e que depois se descobriu ter uma síndrome de Lemierre, ou uma angina de Ludwig que evoluiu para mediastinite. O impacto afetivo dessa história triste vai fazer você lembrar facilmente de Lemierre toda vez que atender alguém com dor de garganta – mesmo que seja algo muito pouco provável.
Doenças também podem ficar “marcadas” (disponíveis) na sua memória se você fez um diagnóstico brilhante daquela doença estranha em que ninguém pensou, ou se fez uma pesquisa sobre essa condição rara, ou se tem um caso daquela patologia incomum em alguma pessoa próxima.
Todos esses fatores fazem essas doenças serem fáceis de lembrar, o que pode nos fazer concluir (erradamente) que são mais prováveis do que realmente são.
Pandemia, disponibilidade e erros diagnósticos
Vamos entender melhor esta situação de pandemia.
Você é um médico que está tenso por ter que atender uma doença que você (e todo mundo) mal conhece.
Você também está receoso pela sua segurança, pois ouviu falar que podem faltar equipamentos de proteção individual a qualquer momento.
Está cansado, pois seu colega ficou doente e você está tendo que fazer horas extras para cobrir a escala de plantão.
Para completar, você está de saco cheio, pois já foi obrigado a assistir inúmeras aulas sobre o tal coronavírus, e ninguém mais fala em outra coisa!
Sua família está de quarentena, as crianças sem aula, os avós presos em casa, sua vida está de cabeça para baixo por causa dessa tal COVID-19.
E não param de chegar pessoas com febre, tosse, coriza, dor de garganta, uma atrás da outra!
Nesse cenário, com a COVID-19 extremamente disponível na sua memória por todos os motivos acima, qual a chance de você atribuir qualquer quadro febril ou respiratório agudo a essa doença?
Altíssima!
Agora, quero deixar bem claro: está errado suspeitar da doença pandêmica em todo paciente com sintomas compatíveis?
Não!
O que está errado é não considerar explicações alternativas – ou seja, fechar o raciocínio diagnóstico num momento muito precoce do processo.
O problema, portanto, é quando o viés de disponibilidade leva ao fechamento prematuro.
Aí é que qualquer coisa vira COVID-19 mesmo!
E é isso que nos faz recear que o saldo final dessa pandemia se revele, ao cabo, muito maior do que o representado pelo número de vítimas da COVID-19, pois será acrescido das vítimas da negligência com qualquer outra doença que não seja COVID-19.
Quer um exemplo? Continuamos em uma epidemia de dengue! Mas os pacientes que chegam com febre à UPA agora não são mais suspeitos de dengue, e sim de COVID-19. COVID está mais disponível. Portanto, pegar dengue agora é correr um risco danado de erro diagnóstico!
Outras causas de erro diagnóstico
Além do viés de disponibilidade, existem outros fatores que, na nossa opinião, também podem colaborar para aumento do risco de erros diagnósticos durante uma pandemia.
Veja abaixo:
Pressão do sistema
Não podemos esquecer todas as circunstâncias externas ao médico.
O gestor pressiona para “resolver” rápido os casos suspeitos. A família pressiona para saber logo se os sintomas do ente querido são COVID ou não. O noticiário só fala do novo coronavírus. Os cartazes na parede alertam para a doença que veio da China.
Nesse contexto, mesmo que o médico esteja convicto que aquela dispneia é só outra crise de asma num paciente que vem toda semana à UBS por broncoespasmo, como não incluir COVID-19 no diagnóstico diferencial?
Ainda mais se o paciente, assustado, faz a pergunta: “Doutor, não pode ser coronavírus?”
Aversão a risco
Médicos não gostam de correr riscos. Todos já ouviram falar do colega que foi agredido e daquele outro que foi processado. E ninguém quer ser o próximo!
Imagine agora um paciente com história de “coração fraco” que chega com piora da dispneia há poucos dias, com congestão pulmonar evidente ao exame físico. O médico conclui que a dispneia deste paciente é causada, muito provavelmente, por uma insuficiência cardíaca descompensada.
Mas a esposa do paciente conta que um vizinho “estava gripado” e ela está preocupada que isso possa ser COVID-19…
Neste momento, o médico precisa optar entre:
1) explicar que a dispneia provavelmente é de origem cardíaca e que neste momento não há necessidade de colher exames para COVID-19;
2) encaminhar o paciente para o serviço de referência para “descartar” COVID-19, “por via das dúvidas”.
Qual dessas opções é a que melhor resolve o problema do médico?
Se você respondeu que é a segunda, acertou.
A opção 2 isenta o médico da responsabilidade de decidir que os exames para COVID-19 não são necessários, e transfere a outro serviço esse trabalho (e as queixas da esposa). Se alguém tomar um processo, não vai ser ele!
Mas isso ocorre às custas da sobrecarga do sistema, pois gera um volume de encaminhamentos que poderiam ser evitados.
E o pior: acarreta negligência com a doença que o paciente realmente tem, pois, enquanto ele aguarda para decidir se precisa ou não colher swab, sua insuficiência cardíaca continua sem tratamento.
Redução dos atendimentos
Em inúmeros serviços de saúde, consultas e procedimentos eletivos foram adiados, suspensos ou simplesmente cancelados.
Pacientes têm medo de sair de casa para ir a uma consulta de rotina nesta pandemia.
Com isso, vários atendimentos que poderiam produzir a detecção precoce de doenças graves não acontecem, predispondo a atrasos diagnósticos potencialmente graves.
Um exemplo: a Sociedade Brasileira de Patologia estima que houve redução de 50% no número de biópsias feitas nos meses de pandemia. Com isso, provavelmente 50 mil diagnósticos de câncer deixaram de ser feitos no país!
História e exame físico inadequados
Um último fator – não menos importante – propiciando maior risco de erros diagnósticos na pandemia é o descuido com um dos três pilares do diagnóstico correto: a coleta de dados.
Ponha-se na posição do médico na linha de frente. Atendendo inúmeros casos suspeitos de COVID-19, forçado a usar equipamentos de proteção desajeitados, com medo de transmitir esse vírus, levá-lo para casa ou adoecer, sempre à beira de um burnout, é bem provável que você acabe (consciente ou inconscientemente) limitando a conversa e o contato físico com os pacientes a um mínimo.
Junte-se a isso o fato que muitos pacientes suspeitos são idosos, podendo estar confusos ou rebaixados (às vezes, até intubados), e chegam ao serviço de referência sozinhos (seus familiares não podem acompanhá-los na ambulância) e sem conseguir comunicar sua história adequadamente.
Resultado: histórias clínicas pobres e exames físicos incompletos.
E o risco de erros diagnósticos só vai aumentando…
Conclusões
Embora não tenhamos dados para afirmar categoricamente que estejam ocorrendo mais erros diagnósticos nesta pandemia de COVID-19, é bem possível que essa seja uma realidade, se levarmos em conta os fatores acima e a impressão de muitos colegas.
O que podemos fazer diante disso?
Precisamos ter cuidado redobrado com nosso processo de raciocínio, para não deixar que o diagnóstico mais disponível e mais óbvio seja nossa única hipótese.
Fazer uma história e um exame físico minimamente adequados e sempre formular um pequeno diagnóstico diferencial são medidas simples que podem ajudar a salvar vidas e diminuir a sobrecarga do sistema neste momento de calamidade!
A COVID-19, infelizmente, já está fazendo muitas vítimas.
Não podemos deixar que outras tantas pessoas sejam vitimadas pela negligência com todas as demais doenças que continuam existindo!
Autor: Leandro Arthur Diehl
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DOI: 10.29327/823500-91