Um carpinteiro de 64 anos procurou atendimento num hospital universitário, distante mais de 700km da sua casa, em busca de um diagnóstico. Ele relatou que há um ano e meio vinha tendo muita fadiga, perda de apetite e fraqueza. Nesse período, perdeu mais ou menos 24kg. Há 2 meses, parou de trabalhar devido à astenia intensa. Também relatava dores difusas, principalmente lombares, e náuseas eventuais.
O paciente já havia sido internado 7 vezes em 3 cidades diferentes durante esse período. Em todas as vezes foi avaliado, medicado e liberado sem um diagnóstico específico. O último médico que o atendeu ficou preocupado com a possibilidade de uma neoplasia oculta e recomendou que ele procurasse um centro médico maior.
Ao chegar ao hospital universitário, o paciente referiu ter tratado paracoccidioidomicose em lábio inferior há 4 anos. Negava etilismo, tabagismo ou uso de drogas ou medicamentos.
Ao exame, encontrava-se em regular estado geral, orientado, emagrecido (peso atual 46kg; o habitual era 70kg) e prostrado. A pressão arterial era de 104/62mmHg e a frequência cardíaca, 104bpm. Tinha uma lesão cicatricial em lábio inferior. Mostrou cicatrizes de ferimentos recentes, que notou terem ficado mais escuras. Ao sentar-se, reclamou de “tontura”; nesse momento, a PA caiu para 82/58mmHg e o pulso aumentou para 118bpm. Não tinha linfonodos aumentados. A ausculta cardiopulmonar era inocente e o abdome era escavado, flácido e sem visceromegalias.
Os exames de entrada mostraram anemia normocrômica normocítica (hemoglobina 10g/dL), função renal normal, sódio 130mEq/L, potássio 5,4mEq/L, sorologias não reagentes e radiografia de tórax normal.
Comentário
Não há como fugir desta verdade: uma história clínica bem feita é o primeiro passo na direção do diagnóstico correto. O Dr. Wilson Sanvito já afirmou que “a anamnese é o exame mais sofisticado da Medicina”.
Existem centenas de causas possíveis para perda de peso involuntária em adultos. Neoplasias, doenças do trato gastrointestinal e distúrbios psiquiátricos ou psicossociais são as mais comuns.
Aqui, no entanto, uma conversa e um exame físico minuciosos revelaram dados importantes: hipotensão e taquicardia posturais, hiperpigmentação de cicatrizes, hiponatremia e hipercalemia discreta num paciente com função renal normal – e paracoccidioidomicose.
Esse conjunto ativou um script de doença na memória dos médicos do hospital universitário, que foram pesquisar mais alguns dados para avaliar se sua hipótese estava correta.
Continuação do caso
Quando interrogado especificamente, o paciente contou que tinha percebido escurecimento difuso da pele há cerca de 6 meses, apesar de estar tomando menos sol. Também relatou uma “fissura” por sal e alimentos salgados.
O exame da cavidade oral mostrou uma linha de hiperpigmentação acastanhada na mucosa jugal, na altura das coroas dentárias.
Foi coletado sangue para dosagem de cortisol e iniciada hidrocortisona IV.
Três dias depois, saiu a dosagem de cortisol, que foi indetectável, confirmando insuficiência adrenal. A tomografia revelou calcificações adrenais, compatíveis com paracoccidioidomicose.
Insuficiência adrenal
A insuficiência adrenal (doença de Addison) pode apresentar sintomas iniciais bastante inespecíficos, tais como astenia intensa, fadiga, humor deprimido, anorexia e perda de peso, cursando com grande atraso diagnóstico. Muitos pacientes provavelmente são tratados para transtorno do humor ou fibromialgia. Sintomas digestivos (obstipação ou diarreia, náuseas e vômitos, dor abdominal) também são observados na maioria dos casos, e podem levar a um diagnóstico incorreto de doença gástrica ou intestinal.
O diagnóstico é mais fácil quando o paciente entra em franca crise adrenal, desenvolvendo hipotensão importante ou choque, hipoglicemia espontânea ou distúrbios hidroeletrolíticos evidentes (hiponatremia e hipercalemia graves). Nestes casos, inclusive, o diagnóstico deve ser rápido, pois a falta do tratamento adequado se associa a alta mortalidade!
Na fase crônica, no entanto, o diagnóstico exige um alto índice de suspeita diagnóstica. Em outras palavras, o diagnóstico só é feito se o médico, por algum motivo, lembrar da possibilidade de Addison.
Neste caso, por exemplo, é interessante notar como um paciente com quadro relativamente típico de insuficiência adrenal primária não foi diagnosticado mesmo após 7 internações. Provavelmente, os médicos que o atenderam não lembraram da possibilidade de Addison. Só no hospital universitário, onde ele encontrou médicos que já haviam visto insuficiência adrenal anteriormente, é que as pistas para identificar a doença foram reconhecidas.
Que pistas são essas?
É isso que queremos compartilhar com você!
Quando suspeitar de insuficiência adrenal:
Na presença de hiponatremia + hipercalemia com função renal normal. Para alguns autores, qualquer paciente com hipercalemia inexplicada, na ausência de insuficiência renal ou de interferências laboratoriais (pseudo-hipercalemia), deve ser considerado portador de insuficiência adrenal, até prova em contrário. Além disso, hiponatremia com osmolaridade urinária ou sódio urinário inadequadamente elevados nem sempre é secreção inapropriada de ADH (SIADH). Insuficiência adrenal deve ser considerada, especialmente em jovens, se houver hipercalemia associada, ou na ausência de causas óbvias de SIADH.
Hiperpigmentação difusa de pele ou mucosas é um achado característico da doença de Addison (insuficiência adrenal primária). O aspecto é de um paciente com um “bronzeado” difuso, que pode atingir inclusive áreas não expostas ao sol. A hiperpigmentação é maior em áreas de atrito, como em superfícies extensoras de joelhos e tornozelos, em pregas palmares ou plantares e em cicatrizes recentes. As mucosas também são afetadas: oral (gengivas, região jugal), vaginal ou perianal.
A hipotensão arterial é uma das manifestações mais comuns. Pode ser sustentada ou postural (observada apenas com a mudança de decúbito para a posição sentada ou em pé). Muitas vezes, a hipotensão só surge quando o paciente é exposto a uma situação de estresse (cirurgia, trauma, infecção), que acaba descompensando uma insuficiência adrenal crônica.
Anemia normocrômica normocítica é observada em cerca de 40% dos casos. Também pode haver leucopenia com predomínio de neutropenia (linfocitose relativa). Eosinofilia é outro achado importante; insuficiência adrenal é a anormalidade endócrina mais comumente associada a elevação dos eosinófilos.
Hipoglicemia em paciente não diabético pode ser sinal de insuficiência adrenal. A hipoglicemia é mais comum na insuficiência adrenal central (por doença hipofisária ou hipotalâmica) do que na insuficiência adrenal primária.
Uma situação particular é o paciente crítico, grave, em UTI: nesses casos, a combinação de hipoglicemia + eosinofilia (incomuns em pacientes graves) deve levantar a suspeita de insuficiência adrenal.
Em mulheres, é comum a perda de pilificação axilar e pubiana, pois esses pelos são mantidos por androgênios adrenais no sexo feminino (no sexo masculino, são mantidos por androgênios testiculares).
A “fissura por sal” é um sintoma típico da deficiência de mineralocorticoides, embora não seja tão comum (presente em 20% dos casos).
Finalmente, deve-se sempre valorizar os antecedentes do paciente. Várias condições associam-se a risco elevado de insuficiência adrenal. As principais são:
– outras doenças autoimunes – hipotireoidismo por tireoidite de Hashimoto, vitiligo, anemia perniciosa ou doença celíaca – já que a maioria dos casos de Addison em países desenvolvidos é autoimune;
– infecções como a tuberculose e a paracoccidioidomicose, que figuram entre as principais causas de insuficiência adrenal primária em nosso meio, além de outras micoses profundas (histoplasmose, candidíase, criptococos), aids e citomegalovirose;
– distúrbios da coagulação (uso de anticoagulantes, sepse, CIVD, síndrome dos anticorpos antifosfolípides, meningococcemia) podem causar hemorragia adrenal;
– medicações que interferem no metabolismo do cortisol, como o cetoconazol, rifampicina, fenitoína, barbitúricos;
– câncer metastático, principalmente neoplasias de pulmão, mama, cólon e linfoma, que podem acometer e destruir adrenais;
– usuários crônicos de corticoides podem desenvolver sintomas de insuficiência adrenal, se interromperem bruscamente o uso da medicação.
Neste paciente, a história de paracoccidioidomicose prévia ajudou, pois sabe-se que essa micose gosta de acometer as adrenais, levando a Addison em 15% dos casos, e, mesmo tendo sido tratada anteriormente, pode recorrer, por reativação ou reinfecção.
Conclusões
Fique atento: insuficiência adrenal pode ter uma apresentação vaga e inespecífica, e mesmo assim ser fatal! Em casos graves ou com forte suspeita clínica, deve-se iniciar a reposição de corticoides antes mesmo da confirmação laboratorial. O tratamento é simples, disponível e efetivo, e salva vidas se iniciado no momento certo! Por isso, mantenha um alto nível de suspeita e saiba reconhecer os sinais da doença.
Após a introdução de corticoide, nosso paciente evoluiu com melhora clínica importante, já nas primeiras 24 horas. Melhorou da astenia e da anorexia, começou a recuperar peso e foi de alta em poucos dias. Duas semanas depois, retornou ao ambulatório, contente da vida e já querendo voltar a trabalhar. Inclusive, agradecido, fez questão de tirar uma foto com toda a equipe médica, antes de voltar para casa. Missão cumprida!
PARA SABER MAIS:
Diehl LA, Porto JNCM. Endocrinologia: principais temas para provas de residência médica. Medcel, 2018.
Waise A, Young RJ. Pitfalls in the management of acute adrenocortical insufficiency: discussion paper. Journal of the Royal Society of Medicine, 1989.
Hospenthal DR. Paracoccidioidomycosis clinical presentation. Medscape, 2015.
ADVERTÊNCIA: Este caso é inspirado em experiências da vida médica do autor, mas de nenhum modo reflete fatos ou pacientes específicos. Todos os acontecimentos, situações e personagens deste caso são fictícios.
Autores:
- Fabrizio Almeida Prado
- Leandro Arthur Diehl
- Pedro Alejandro Gordan
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DOI: 10.29327/823500-27