Você já ouviu falar em “esmeraldite”?

Essa expressão é muito usada por médicos para indicar um fenômeno interessante envolvendo médicos e seus familiares.

Tá no Dicionário Aurélio:

Esmeraldite. [de esmeralda (1) por alusão à pedra do anel de grau do médico, + ite]. Med. Gir. Dificuldade, muitas vezes inesperada, que sobrevém no curso de tratamento de paciente médico ou parente de médico, frequentemente em caso tido como de resolução tranquila.

Em outras palavras: tudo parece ser diferente, mais difícil e mais complicado quando o seu paciente é médico ou parente de médico.

Pode perguntar a todos os médicos que você conhece: cada um deles vai ter uma história para contar de quando atendeu um colega que tinha uma apresentação muito estranha de uma doença, ou que evoluiu de forma muito diferente do esperado – geralmente, para pior.

Um médico amigo meu começou a ter uma dor abdominal difusa e chata que durou 1 ou 2 semanas, seguida de um pouco de diarreia. Foi a um colega gastro que fez uma colonoscopia e – surpresa! – era uma apendicite. “Tinha que ser médico”, comentou o gastroenterologista.

A mãe de um colega médico tinha uma coriza crônica numa narina só. “Deve ser rinite”, o filho dizia. Apesar do corticoide nasal, não melhorava. Quando foi ao otorrino, descobriu que era um tumor raríssimo. “Também, mãe de médico!”, comentou o otorrinolaringologista.

ESMERALDITE: CASTIGO DIVINO?

Por que será que isso acontece?

Será que médicos têm uma biologia diferente dos demais seres humanos? Ou uma resposta imunológica esquisita, por serem expostos a muita gente doente? Será castigo divino?

Provavelmente não!

A explicação para esse fenômeno deve ser outra – e bem mais simples.

Nossa opinião é a de que três fatores contribuem para a esmeraldite:

1) Automedicação;

2) Vieses afetivos;

3) Quebra de protocolos.

Abaixo, comentamos sobre cada um desses fatores – e vamos terminar dando alguns conselhos para prevenir a esmeraldite!

AUTOMEDICAÇÃO

É cultural: muitos médicos acham que sabem tudo – e, ao mesmo tempo, já viram casos graves o suficiente para ter medo de um monte de doenças (mesmo que não confessem). Dessa forma, quando eles (ou um dos seus) desenvolvem um sintoma qualquer, a conclusão imediata é que “não deve ser nada”, e a conduta é a automedicação com algum sintomático.

Se o medicamento ajuda e alivia um pouco o sintoma, pior ainda: aí é que eles não vão procurar atendimento mesmo.

Médicos não gostam de ir ao médico! (E também vivem dando a desculpa de que “não têm tempo” para cuidar de si mesmos.)

E, com isso, vão enrolando até que chegam a um ponto em que não tem outro jeito a não ser procurar um colega – que eles escolhem a dedo (geralmente, o especialista naquela doença que eles “acham” que têm).

E aí, quando finalmente chegam ao médico, já sabe né? Ou o quadro clínico está muito avançado (pelo atraso), ou é diferente do habitual: “atípico” (pela automedicação prévia), ou o diagnóstico acaba sendo equivocado (se ele escolheu o especialista errado, e ambos concordarem com um diagnóstico equivocado).

VIESES AFETIVOS

Outro problema é que, quando finalmente resolve pedir ajuda a um colega, o médico costuma escolher um amigo.

Este é um baita problema para o médico que o atende, pois a relação já existente entre os dois traz consigo sentimentos e reações afetivas que podem dificultar uma avaliação imparcial e objetiva do quadro. São os chamados vieses afetivos.

Claro que é mais confortável para o paciente ser atendido por alguém que ele conhece e em quem confia!

Mas o médico que atende alguém que ele gosta (seja um colega, amigo ou parente) pode acabar tendo sua avaliação afetada por isso – o que pode contribuir para duas reações diferentes:

  • Subestimar a potencial gravidade do quadro e tentar tranquilizar o colega doente, especialmente se houver a mínima suspeita de que possa ser algo sério – já que nenhum dos dois vai gostar de lidar com um prognóstico ruim. Isso inclui deixar de pedir algum exame que seria recomendado, mas que é desconfortável ou incômodo;
  • Preocupar-se demais com a possibilidade de algo sério e preferir “pecar por excesso”, pedindo exames demais ou prescrevendo tratamentos além do que seria realmente recomendado “por segurança” – o que pode trazer riscos de overdiagnosis e overtreatment. (Veja um exemplo disso no nosso Caso Clínico 9 – O médico parente.)

E tem outro complicador quando o médico se consulta com um camarada do tempo de faculdade: não precisa ter medo dele – o que torna mais fácil, e menos doloroso, deixar de seguir a prescrição do colega.

Médicos não gostam de tomar remédios prescritos por outros médicos!

Esses vieses no diagnóstico e as falhas no tratamento são combustível para a esmeraldite: acabam complicando a evolução de qualquer doença.

QUEBRA DE PROTOCOLOS

Este provavelmente é um fator muito importante por trás da esmeraldite.

É comum que os médicos dividam o mundo em duas grandes categorias:

1) os médicos;

2) os pacientes.

Por isso, quando médicos adoecem, pode haver muita dificuldade para aceitar a nova condição de pacientes. Em suas mentes, eles são os que tratam, e não os que são tratados.

Decorre daí que médicos-pacientes não querem se encaixar em nenhum tipo de rotina ou fluxo de atendimento. Eles querem um atendimento diferenciado, “afinal somos colegas!” Querem ser a exceção.

Querem a famigerada “olhadinha nos exames”, ou a perigosa “consulta de corredor”, ou, horror dos horrores, a “opinião no WhatsApp.” (Ai do pediatra que atende filhos de médicos!)

Quando vão ao consultório, não querem ficar na sala de espera. Exigem atendimento fora de hora. Chegam sabendo seu próprio diagnóstico. Já trazem os exames que fizeram “para adiantar as coisas.” Às vezes escondem informações. Às vezes querem ajudar tanto que atrapalham.

Se o médico-paciente é conhecido e influente, pior ainda. Segundo o Dr. Antonio Techy, “quanto mais importante se ache o indivíduo, maior dificuldade ele criará no relacionamento médico-paciente.”

Caso precisem de cirurgia, tem que ser no hospital que eles escolherem, a anestesia tem que ser diferente, e eles querem ter alta antes.

E aí dá tudo errado!

Essa quebra dos protocolos acaba sendo um fator que compromete a segurança do processo. Todo atendimento médico funciona melhor, é mais seguro e tem melhores resultados quando feito do jeito certo, seguindo os padrões e as rotinas a que todo médico está habituado.

Abrir exceções é aumentar as chances de erro – um convite à esmeraldite!

VIÉS DE DISPONIBILIDADE

Este é um fator que não explica por que a esmeraldite acontece, mas ajuda a entender por que ela parece tão comum.

É o modo como a nossa memória funciona!

Temos uma tendência a lembrar com mais facilidade com eventos que nos marcaram emocionalmente de alguma forma – o que faz com que eventos relativamente raros, mas com grande carga de impacto emocional, pareçam mais comuns do que realmente são.

É por isso que lembramos com facilidade daquela história do colega médico que, por pura obra do acaso, desenvolveu uma forma especialmente agressiva de um câncer raro e morreu de forma chocante.

Dessa forma, basta a gente ficar sabendo de uma ou duas histórias como essas – e médicos vivem ouvindo histórias sobre outros médicos o tempo todo – e pronto!

Ficamos com a impressão de que doenças graves e evoluções complicadas em médicos são a norma, e não a exceção.

COMO PREVENIR A ESMERALDITE?

A receita para prevenir a esmeraldite é bastante simples, e exige apenas um pouco de paciência, humildade e bom senso.

O médico que fica doente ou precisa de atendimento tem que entender que, nesse momento, ele é paciente, e não médico – e precisa comportar-se dessa maneira!

Deve tentar não interferir no trabalho do colega, para não prejudicar o atendimento a si próprio ou a um familiar. Além disso, deve seguir a prescrição e tomar cuidados com a sua saúde, da mesma maneira que ele recomendaria a qualquer pessoa na sua mesma condição.

Já o médico que atende um colega precisa seguir a rotina de atendimento normal, não cedendo às pressões para abrir exceções ou prestar favores especiais. Lugar de consulta não é no corredor, mas sim no consultório, seguindo todas as etapas: história clínica, exame físico, exames complementares, raciocínio diagnóstico, plano terapêutico, seguimento – tudo conforme o manual!

CONCLUSÕES

A esmeraldite existe, sim, mas não é um fenômeno sobrenatural ou uma maldição implacável. Na verdade, o que chamamos de esmeraldite é o resultado das distorções que ocorrem na assistência à saúde quando o paciente é um colega médico. Tais distorções podem comprometer a qualidade do cuidado prestado a médicos doentes, e essa pode ser uma das razões pelas quais a expectativa de vida dos médicos é menor do que a da população geral.

A boa notícia é que tais distorções podem ser atenuadas com medidas simples, que devem ser tomadas para garantir que a assistência prestada aos médicos seja pelo menos igual, e nunca pior, àquela dada a todos os demais pacientes.

PARA SABER MAIS:

Techy, Antonio. Esmeraldite. Iátrico número 17, abril-junho 2006, p. 24-25.