A Medicina e a ciência têm resposta para tudo?
Estudando Medicina ou atuando como médico, você certamente já deve ter se dado conta que não!
Para muitas perguntas, ainda não há resposta definitiva; para outras, as respostas existentes nem sempre são preto no branco, “sim” ou “não”.
Imagine que você precisa determinar o prognóstico de um paciente de 75 anos com câncer de próstata, ou de uma mulher de 45 anos com câncer de mama, ou de um jovem vítima de TCE com lesão axonal difusa, em coma na UTI.
É possível dar um prognóstico com certeza sobre a sobrevida ou a recuperação desses indivíduos específicos? Ou apenas fornecemos aos pacientes dados extrapolados de pesquisas com grupos de pessoas semelhantes, de onde tiramos taxas médias de sobrevida ou risco médio de morte em um intervalo de tempo?
Considere outra situação: as recomendações para o tratamento da hipertensão arterial. Você sabia que, se comparados, os guidelines (diretrizes) de associações diferentes sobre uma mesma condição apresentam muitas divergências entre si? Então, qual seguir, e por quê?
Neste segundo post da série sobre incerteza na Medicina, você aprenderá como analisar casos onde há dúvida e como mudar a percepção das incertezas. Esperamos que você deixe de perceber a incerteza como algo ruim, para passar a vê-la como algo universalmente presente – e, muitas vezes, uma fonte de oportunidades.
Quer aprender como ter mais autoconfiança, mais coragem e uma mente mais aberta nas dificuldades?
Então continue conosco!
UMA GESTANTE E UM DILEMA MÉDICO
Fátima tem 35 anos, é portadora de diabetes tipo 1 há 20 anos e está na sua segunda gestação (apesar de seus seus médicos terem recomendado a ela que evitasse engravidar novamente).
Na 26ª semana de gestação, foi internada com edema progressivo e piora da acuidade visual. Ela tinha hemorragias em fundo de olho, proteinúria e uma creatinina de 1,2mg/dL, bem elevada para uma gestante, que indicaram piora importante da retinopatia e da nefropatia diabética. Observou-se também elevação níveis de ureia para 86mg/dL, o que na gestação já pode ser indicativo de necessidade de diálise. Apesar de hipertensa, apresentava bons níveis pressóricos e o bebê estava bem.
A equipe da obstetrícia ficou angustiada pela possível necessidade de adiantar o parto, tendo em vista a piora significativa das complicações crônicas do diabetes, a possibilidade da terapia dialítica e o risco de pré-eclâmpsia ou outras intercorrências, que podiam piorar o prognóstico fetal.
A INCERTEZA E SEU PAPEL NA MEDICINA
Como agir nesse caso? Será que antecipar o parto impedirá a progressão da doença ocular e renal da mãe? Esperar mais um pouco poderia aumentar a viabilidade do feto, mas será prudente esperar?
Como dissemos na primeira parte desta série sobre incerteza, diante dela os médicos podem ter diversas reações e sentimentos:
- insegurança
- medo
- frustração
- paralisação nas decisões
- agir com precipitação
- impotência
- angústia
Na Medicina moderna, além dos desafios que a própria doença traz consigo, podemos ainda acrescentar:
- a evolução das tecnologias de diagnóstico e evoluções no tratamento, que tem caminhado mais rápido que a produção de pesquisas e evidências;
- a medicina baseada em evidências, que conta com as dificuldades próprias de levantar dados e chegar a conclusões;
- a decisão partilhada com os pacientes, onde não basta ter respostas, mas é preciso encontrar as melhores soluções levando em conta as necessidades e preferências de cada indivíduo doente.
Se as dúvidas e incertezas são por nós percebidas como uma ameaça, será difícil lidar com elas de maneira tranquila e consciente. Nesse caso, nós e os pacientes poderemos ser vítimas de erros, com exames e condutas desnecessárias, além de uma carga elevada de stress e sofrimento.
Vejamos então algumas facetas da incerteza na Medicina, junto com maneiras de abrandar seu impacto.
Leia com atenção, pois depois vamos analisar o caso da Fátima usando essas informações!
QUAIS SÃO AS FACETAS DA INCERTEZA NA MEDICINA?
A incerteza na Medicina tem pelo menos três facetas diferentes, que são:
- a ambiguidade;
- a probabilidade;
- e a complexidade.
QUANDO EXPERIMENTAMOS A INCERTEZA NA MEDICINA?
COMO LIDAR COM A INCERTEZA?
Para lidar com a incerteza na Medicina, vale a pena seguir este passo-a-passo:
1. IDENTIFICAR SUA ORIGEM:
Uma ou mais das quatro situações acima geralmente está na origem da incerteza.
Se a origem tem a ver com falta de informação, podemos situar o problema em um dos três elementos da figura abaixo:
Por outro lado, a origem da incerteza também pode estar no sistema de saúde: disponibilidade ou ausência de recursos, características dos exames, qualidade dos serviços.
2. DIMINUIR OU RESOLVER SEU IMPACTO:
Após achar a origem para a incerteza que nos incomoda e impede de tomar uma decisão com maior segurança em um problema específico, precisamos remediá-la com ações dirigidas.
- Técnica: Pedir opinião ou consulta formal de um colega, pesquisar, consultar internet, usar ferramentas de apoio ao diagnóstico.
- Conceitual: Solicitar avaliação formal de outro colega, fazer cursos, reforçar treinamento.
- Pessoal: Conversar melhor com paciente (ou familiares/cuidador), pedir auxílio de outros profissionais (serviço social, psicologia).
- Sistema: Identificar falhas, atrasos, erros. Conversar com radiologista, patologista.
3. ENFRENTÁ-LA COM ATITUDES POSITIVAS:
Este ponto tem muita importância: é aqui que vamos rever nossa percepção diante das incertezas, deixando de vê-las como algo puramente maléfico e negativo, e passando a percebê-las de uma maneira mais realista e positiva.
Podemos reagir às incertezas nos aspectos cognitivo, emocional e comportamental.
Veja abaixo as reações em cada um desses aspectos, e compare as reações positivas com as negativas.
Se conseguir, identifique quais dessas reações você costuma ter com mais frequência, diante da incerteza!
Veja que diferença há entre o ponto de vista negativo e o positivo!
Não é necessário ficarmos surpresos ou chateados por haver dúvidas e indeterminações. Elas sempre vão existir! As incertezas devem ser reconhecidas e abraçadas, pois são inerentes à prática médica.
DE VOLTA AO CASO DA NOSSA GESTANTE
Podemos levantar, neste ponto, várias questões, algumas das quais você já deve ter imaginado:
- Qual o risco de complicação fetal (morte ou sequela) caso a gestação seja levada adiante, ou caso o parto seja antecipado?
- O prognóstico de um bebê prematuro nessas condições é semelhante ou pior que o de um bebê de uma mãe sadia?
- A função renal da mãe continuará a piorar?
- O tratamento hemodialítico pode ajudar a gestação a ser levada adiante, a fim do bebê ter melhores chances?
- Esse tratamento pode causar algum malefício ao bebê?
Veja que todas as três facetas da incerteza podem ser encontradas aqui:
- A ambiguidade, pois é difícil definir como alcançar o bem da mãe e do bebê simultaneamente. Também não é possível diferenciar bem as mútuas relações entre todos os problemas e o nível em que cada um pode afetar ou piorar o outro;
- A probabilidade, pois não há uma boa previsão dos riscos para o bebê em qualquer das situações, seja de parto ou de observação clínica. Podemos comparar os riscos e fazer uma escolha, mas sem poder garantir nada;
- A complexidade, pois são muitos problemas (muitas variáveis) ao mesmo tempo, tornando difícil um julgamento e uma decisão acertada.
Seguindo nosso passo a passo, identificamos a origem da incerteza e a estratégia para diminuí-la:
- Técnica: dúvidas sobre prognóstico do bebê nascer com 26 semanas e da gestação ser levada adiante com hemodiálise: pode ser resolvida buscando esses dados e comparando-os.
- Conceitual: para saber se é possível levar a teoria à prática, os especialistas envolvidos no caso devem conversar para expor seu conhecimento e competência.
- Pessoal: Até agora não dissemos quão desejada foi essa gravidez (o que não quer dizer que, não sendo, a vida do bebê possa ser desprezada) e não perguntamos a opinião da mãe. A participação da paciente é fundamental no entendimento e aceitação dos riscos, desconfortos e procedimentos.
- Sistema: Caso o parto seja realizado, há UTI neonatal e quais suas taxas de mortalidade, sucesso, etc.? O serviço de diálise é acessível? É possível atender às necessidades especiais da gestante?
FINAL DA HISTÓRIA
As diversas especialidades conversaram entre si e puderam chegar a um consenso.
Hemodiálise para gestantes é algo relativamente seguro, e a equipe de nefrologia tinha recursos para oferecer um tratamento adequado. Iniciar hemodiálise após a concepção tem um melhor prognóstico que a concepção já em terapia dialítica.
A UTI neonatal era de boa qualidade, com profissionais capacitados. As perspectivas caso o parto fosse antecipado não eram excelentes devido à prematuridade, mas com uma idade gestacional de 26 semanas a sobrevida gira em torno de 75% com 50% de morbidade grave, embora seja difícil encontrar uma estatística exata para pacientes com comorbidades, podendo ser pior nesses casos.
Fátima participou do processo de decisão, sendo informada dos riscos e da incerteza. Ela compreendeu e aceitou a proposta do tratamento dialítico como tentativa de melhorar as chances do filho. Desse modo, optou-se por iniciar hemodiálise, o que ainda demorou alguns dias, conforme a função renal piorava.
A gestação foi levada até 32 semanas, quando se realizou a cesárea por suspeita de pré-eclâmpsia.
O bebê ficou alguns dias na UTI neonatal e se recuperou bem.
Após o parto, Fátima teve melhora e conseguiu ficar fora da hemodiálise por seis meses.
CONCLUSÕES
Muitas vezes, quando não têm uma resposta clara ou quando têm medo do resultado, os médicos culpam os pacientes. Isso poderia acontecer no caso de Fátima, que poderia ter sido acusada de ser imprudente ao engravidar pela segunda vez.
No entanto, aceitar as vicissitudes, os riscos e imprevistos da vida dá mais liberdade e confiança a todos os envolvidos.
Se você está agindo de acordo com a razão, seguindo as etapas do raciocínio clínico ou do tratamento, mesmo no meio das incertezas é possível ter mais calma e fé no que você está fazendo, e esperar os resultados sem tanto sofrimento.
Ao invés de negar nossa incapacidade de prever, criamos coragem para continuar ao lado da paciente e ser honestos com ela. Melhoramos nossa capacidade de decisão, observamos melhor as possibilidades e tomamos um curso de ação consciente, ao invés de nos esquivar ou tomar ações intempestivas.
Não é verdade que somos treinados e cobrados para ter sempre uma resposta? Temos que saber tudo; a dúvida é malvista. Veja as provas da faculdade ou da residência: cheias de questões de múltipla escolha, que têm apenas uma resposta correta. Mas os pacientes não nos procuram com cinco alternativas!
Por isso tudo, talvez as três palavras mais difíceis (e mais libertadoras) de serem pronunciadas na Medicina sejam:
"EU NÃO SEI!"
Um dos primeiros aprendizados que deveríamos ter é esse: não temos resposta para tudo.
Saber disso ajudaria a crescermos em humildade, comunicação e vontade de buscar conhecimento.
ADVERTÊNCIA:
Este caso é livremente inspirado em experiências da vida profissional do autor, mas de modo nenhum reflete pacientes ou fatos específicos. Todos os acontecimentos, situações e personagens deste caso são fictícios.
PARA SABER MAIS:
Han PKJ, Klein WMP, Arora NK. Varieties of uncertainty in health care: a conceptual taxonomy. Medical Decision Making, 2011.
Hillen M et al. Tolerance of uncertainty: conceptual analysis, integrative model, and implications for healthcare. Social Science & Medicine, 2017.
Autor: Fabrizio Almeida Prado
Você pode referenciar o artigo acima usando o Digital Object Identifier (Identificador de Objeto Digital) – DOI.
DOI: 10.29327/823500-38