Você sabe que médicos são curiosos ao ponto de testarem coisas em si próprios, não é mesmo?

Foi isso mesmo que fez o Dr. William Casarella, um renomado radiologista de Atlanta, nos Estados Unidos. Ele realizava exames de imagem em inúmeras pessoas e resolveu fazer alguns exames em si mesmo. Afinal, o tomógrafo era dele – minha máquina, minhas regras!

Realizou uma colonoscopia virtual por tomografia para screening de câncer de intestino, como parte de um check-up anual.

O resultado foi péssimo. (Ou bom, depende de como você enxerga…)

Não havia lesões no intestino, mas ele encontrou uma lesão renal, uma massa de 2cm no fígado e vários nódulos nos pulmões.

Por isso foi submetido a um tratamento cirúrgico, que foi bem-sucedido.

Legal, não é?…

Quer saber o final desta história? Continue lendo!

 

Março Azul e o câncer colorretal

O câncer colorretal é uma das neoplasias mais comuns no Brasil e o terceiro câncer mais comum em adultos nos Estados Unidos. Por isso figura aqui em outra campanha de um mês colorido: o Março Azul.

Também é grave: é a segunda maior causa de morte por câncer!

Por isso, várias sociedades recomendam a realização de exames de triagem para o câncer colorretal como rotina, mesmo em pessoas assintomáticas. É o famoso “screening”.

 

Neste post, você vai aprender um pouco sobre screening, inclusive sobre um aspecto que pode incomodar muitos médicos e pacientes: decidir em quem o rastreamento deve ou não ser feito.

No final, veja 5 mitos e verdades sobre o câncer colorretal – e uma surpresa no final da história do dr. Casarella!

Tomando decisões

 

O raciocínio clínico, de certa forma, é a habilidade de tomar decisões inteligentes e sábias, que trazem segurança e minimizam a incerteza, proporcionando assim um cuidado de valor.

Isso é de suma importância quando estamos falando de screening. Também conhecido como triagem ou rastreamento, o screening é a realização de exames de rotina em pacientes assintomáticos, com o objetivo de descobrir e tratar alguma doença o mais precocemente possível, o que potencialmente aumenta as chances de cura.

Então, é sempre bom fazer screening?

Depende!

Se não for usado adequadamente, o screening pode levar a falsos-positivos, excesso de estresse nos pacientes e até a danos por intervenções desnecessárias.

No caso do câncer colorretal, há algumas opções de exames para screening, que vão desde a simples pesquisa de sangue oculto nas fezes até opções mais invasivas, como a colonoscopia e a retossigmoidoscopia. Outra opção é a colonoscopia virtual, feita por tomografia, menos invasiva e sem necessidade de anestésicos.

Como decidir se um screening é necessário?

Precisamos fazer um cálculo de risco-benefício. Esse é um cálculo que não é apenas matemático (pois não temos evidência e dados para tudo), mas uma estimativa probabilística que também leva em conta fatores como a disponibilidade e as características dos exames, os valores e preferências pessoais dos pacientes e também os riscos que estes estão dispostos a correr.

Usando o exemplo do câncer colorretal, o screening é mais provavelmente benéfico naqueles pacientes que apresentam maior risco da doença. Nesses casos, o benefício de detectar precocemente o câncer provavelmente supera os riscos associados à realização dos exames.

Um fato interessante é que a maioria dos casos de câncer colorretal evolui de lesões benignas, os pólipos adenomatosos. Por isso, exames que possam detectar e remover pólipos adenomatosos, na sua fase inicial, ajudam a prevenir o desenvolvimento do câncer colorretal.

 

Quem tem maior risco de câncer colorretal?

Para avaliar o risco de desenvolver câncer colorretal, precisamos conhecer os principais fatores de risco para essa doença, que são os seguintes:

  • Idade igual ou superior a 50 anos;
  • Tabagismo;
  • Obesidade;
  • Dieta com alto consumo de álcool e carne vermelha;
  • Baixo consumo de frutas, legumes e verduras;
  • Sedentarismo;
  • Constipação intestinal, alterações do hábito intestinal repentino e dor ou sangramento ao evacuar;
  • Histórico familiar de câncer colorretal;
  • Condições hereditárias, como a polipose adenomatosa familiar (PAF);
  • Diagnóstico prévio de diabetes tipo 2;
  • História de radiação abdominal ou pélvica para câncer anterior.

 

Quem precisa de screening?

Existem três grupos de estimativa de risco, cada um com recomendações específicas de rastreamento:

 

1) Baixo risco:

Idade superior a 50 anos e sem outros fatores de risco;

 

 

2) Risco moderado: História familiar de câncer do intestino em um ou mais parentes de primeiro grau, ou história pessoal de pólipo, ou antecedente pessoal de câncer do intestino tratado com intenção curativa;

 

 

 

3) Risco alto:

Indivíduos com história familiar de polipose adenomatosa familiar (PAF) ou com doença inflamatória intestinal.

 

 

A maioria das sociedades recomenda screening em todos os pacientes com idade igual ou acima dos 50 anos, mesmo se de baixo risco. A partir dessa idade, ocorre um aumento do risco para pólipos adenomatosos que antecedem o câncer colorretal.

O exame de escolha é a colonoscopia. Se não for detectada nenhuma lesão suspeita, é recomendada a repetição do exame a cada 10 anos.

Nos pacientes de alto risco, deve-se realizar colonoscopia a cada 5 anos a partir dos 40 anos, ou 10 anos abaixo da idade do diagnóstico do câncer colorretal no familiar mais jovem. A colonoscopia deve ser repetida a cada 3 anos se houver pólipos. Se o pólipo não foi completamente ressecado, repetir entre 2 e 6 meses.

 

E a pesquisa de sangue oculto nas fezes?

É uma alternativa recomendada em alguns guidelines para grupos de baixo e moderado risco para o câncer. Segundo o INCA, pode ser feito após os 50 anos de idade, e repetido a cada 1 ou 2 anos. É mais barato e menos invasivo que a colonoscopia.

 

O problema da pesquisa de sangue oculto nas fezes é o risco significativo de falsos positivos (sangramentos provenientes de outros órgãos, como estômago e esôfago; ou reação com alimentos ingeridos pelo paciente, se ele não fez um preparo adequado) e falsos negativos (em pacientes que possuem uma lesão intestinal mas que não apresentaram sangramento no dia da coleta do exame).

O risco de erros é maior com testes antigos, usando guaiaco. Algumas metodologias mais novas, como testes imunoquímicos (que só reagem com sangue proveniente do cólon) e à base de DNA são mais específicos, mas esses exames não são amplamente disponíveis.

Devido a essas limitações, a colonoscopia permanece como exame padrão-ouro, pois é diagnóstica e terapêutica: permite a visualização direta e a biópsia/ressecção de pólipos e neoplasias.

 

Como é feita a colonoscopia?

 

 

O procedimento é feito com um colonoscópio flexível, inserido pelo reto, contendo uma câmera, que permite a visualização de todo o intestino grosso. O exame dura cerca de uma hora e o paciente geralmente recebe sedação e analgesia para maior conforto.

O paciente deve estar imóvel na posição de Sims (decúbito lateral para a esquerda) e com as pernas semiflexionadas no sentido do tórax.

Antes do exame, é necessário um “preparo”, que consiste em uma dieta sem fibras e a utilização de laxativos, para que ocorra eliminação fecal total.

Durante o exame, podem ocorrer efeitos adversos como dor abdominal, tontura e vômitos. Alterações histológicas da mucosa cólica após uso de soluções de fosfato de sódio também podem ocorrer. Sangramento, broncoaspiração e lacerações da mucosa são bem mais raras. A complicação mais grave é a perfuração do cólon.

5 mitos e verdades sobre o câncer colorretal

 

 

 

Alguns mitos podem retardar e dificultar o diagnóstico e o tratamento.

Você está preparado para descobrir os mitos e verdades mais frequentes desse tipo de câncer?

Vamos lá…

1) O câncer colorretal só afeta pessoas com mais de 50 anos.

MITO.

A doença também pode afetar pessoas mais jovens, especialmente se apresentarem muitos fatores de risco (veja acima quais são eles).

 

2) “Pólipo” de intestino é a mesma coisa que câncer colorretal.

MITO.

A maioria dos pólipos é benigna, mas, se não retirados rapidamente, podem evoluir para o câncer de cólon.

 

3) A única forma de diagnóstico é por colonoscopia.

VERDADE.

Apesar de existirem outros exames a colonoscopia é até então o exame “padrão-ouro” para o diagnóstico pois permite observar diretamente as lesões e fazer a coleta de material para biópsia, que é essencial para o diagnóstico.

 

4) Câncer colorretal é doença de homem.

MITO.

O câncer de cólon pode afetar mulheres e homens com índices semelhantes. Atualmente é considerado o segundo câncer mais frequente no sexo feminino.

 

5) Posso reduzir meu risco de desenvolver câncer colorretal.

VERDADE.

Exercícios físicos regulares e uma dieta rica em frutas, verduras, grãos integrais e baixa ingesta de carnes vermelhas, mantendo-se um peso saudável, são importantes aliados na prevenção desse tipo de câncer (e de vários outros).

E o que aconteceu com o Dr. Casarella?

Todo o estresse físico e emocional vivido pelo Dr. William Casarella, na verdade, poderia ter sido evitado: após a cirurgia, descobriu-se que todas as lesões encontradas no exame de imagem eram benignas.

Ele acordou na UTI depois de 5 horas de uma biópsia pulmonar por toracoscopia, com um dreno de tórax, uma sonda vesical, um acesso venoso central na subclávia, um cateter epidural para anestesia, uma arteriotomia para monitorização da PA e um cateter nasal de O2.

Permaneceu com dor intensa no sítio cirúrgico por pelo menos 2 semanas, e depois com dor moderada por mais 5 semanas. Só depois disso ele voltou a trabalhar, mas permaneceu com uma dor em faixa no tórax, decorrente da lesão de nervos intercostais.

Segundo ele mesmo, ao ser “fatiado” em vários pedaços pela tomografia, é muito provável que praticamente todas as pessoas apresentem uma anormalidade ou outra. E o problema é que, para o radiologista, apenas olhando a imagem, é muito difícil ter 100% de certeza se aquelas anormalidades são lesões malignas, metástases, ou simplesmente uma variante anatômica ou uma cicatriz de uma infecção ou trauma antigo.

Faça uma analogia com a pele. Observe bem e verá inúmeras cicatrizes e manchas que ganhamos ao longo da vida. Todas elas são câncer? Não!

Da mesma forma ocorre dentro de nós. Nossos órgãos também carregam manchas de nossas inúmeras aventuras passadas: cicatrizes, lesões e nódulos residuais de doenças antigas.

Não esqueça que os exames de imagem modernos, como a tomografia e a ressonância, são extremamente sensíveis, e podem detectar anormalidades muito pequenas, na casa dos poucos milímetros!

Os nódulos encontrados no Dr. William Casarella são chamados de “incidentalomas”. Nódulos encontrados por acaso, em exames realizados em pessoas assintomáticas, são neoplásicos em apenas 1% dos casos, aproximadamente.

 

Mas então, por que operaram o Dr. Casarella?

Bom, é aí que se encontra o problema desse tipo de rastreamento. A intensidade com a qual o exame foi interpretado (e, talvez, o fato de tratar-se de um colega médico) levou a equipe médica a realizar procedimentos bastante invasivos, com o intuito de “descartar câncer” rapidamente.

Outra opção teria sido apenas acompanhar o paciente, repetindo o exame de imagem periodicamente, para observar se as lesões iriam crescer ou não.

Essa é uma dificuldade muito comum para nós, médicos: uma vez que encontramos algo, sentimos o impulso de agir, de fazer algo, de tentar “resolver logo” – especialmente se houver algum viés afetivo interferindo na tomada de decisões, como no caso de um médico atendendo colegas ou familiares queridos.

Dr. William Casarella

Nas palavras do próprio Dr. Casarella, que escreveu sobre a sua experiência para compartilhar as lições aprendidas com esse episódio:

“Nós, radiologistas, muitas vezes não nos damos conta da natureza extremamente invasiva das ressecções de nódulos pulmonares. Não é a mesma coisa que biopsiar uma mama ou remover um pólipo por colonoscopia. Só quem já sofreu uma toracotomia sabe o que é isso.”

“Apesar de todos os nossos esforços, ainda não conseguimos ser muito específicos na avaliação de nódulos pulmonares pequenos e não calcificados. A presença dessas lesões no exame de imagem cria uma vontade quase irresistível de fazer um diagnóstico definitivo com uma biópsia, evitando assim a ansiedade de 2 anos de seguimento com tomografias seriadas. As taxas relativamente altas de falsos positivos acabam tendo um resultado negativo.”

“A tomografia de alta resolução é uma ferramenta fantástica. Mas, neste momento, ainda é muito sensível sem ser específica o suficiente.”

“Nós, radiologistas, precisamos entender as consequências para o paciente [do screening]. Não é errado sugerir que mais pesquisa é necessária, e que nós ainda precisamos provar que a procura por lesões ocultas vai aumentar a duração e a qualidade de vida das pessoas.”

Mas isso não quer dizer que os exames de rastreamento devem ser abandonados. De maneira alguma!

Como já dissemos, o câncer colorretal é um dos mais prevalentes na nossa população e frequentemente leva à morte, se não for diagnosticado e tratado precocemente.

O screening feito de forma correta diminui mortes por câncer colorretal (embora essa redução de risco de morte talvez não seja tão grande quanto muitas pessoas imaginam).

A mensagem aqui é que o screening deve ser realizado nas pessoas certas, avaliando sempre a relação entre seus potenciais benefícios e seus potenciais riscos.

Além disso, temos que estar atentos para o fato de que nossas ferramentas ainda são imperfeitas! Todo médico precisa conhecer as limitações dos exames disponíveis, especialmente a possibilidade de falsos positivos e falsos negativos.

Na próxima semana, vamos discutir um pouco mais sobre screening, falsos positivos e sobre um conceito importante mas do qual muitos médicos nunca ouviram falar: overdiagnosis.

Fique ligado!

 

PARA SABER MAIS:

Ma H et al. Pathology and genetics of hereditary colorectal cancerPathology, 2018.

O’Keefe L, Sullivan M, McPhail A. Screening for colorectal cancer at the worksiteWorkplace Health & Safety, 2018.

Casarella W. A patient’s viewpoint on a current controversyRadiology, 2002.

Autores:

  • Fabrizio Almeida Prado
  • Isabella Patruceli de Azevedo
  • Leandro Arthur Diehl,  

Você pode referenciar o artigo acima usando o Digital Object Identifier (Identificador de Objeto Digital) – DOI.

DOI: 10.29327/823500-56