Dia desses, uma paciente no ambulatório me trouxe uma lista gigantesca de exames de laboratório que um outro profissional havia pedido.

A lista era impressionante: incluía dosagens de todas as vitaminas conhecidos pela Medicina, quase toda a tabela periódica de minerais (do alumínio ao zinco, sem esquecer selênio e vanádio) – no cabelo e no sangue – e inúmeros hormônios e pró-hormônios, a imensa maioria dos quais eu nunca havia solicitado em mais de 20 anos de prática como endocrinologista. Dezenas e mais dezenas de exames! Ela havia gasto mais que o salário mensal dela para pagar por todos esses testes. E queria saber o que eu achava disso.

Eu não sei interpretar exames sem primeiro conhecer a clínica e a epidemiologia do paciente. Por isso, revisei os dados da paciente em questão: era uma mulher de quarenta e poucos anos com sobrepeso que tinha sido encaminhada para avaliar um quadro dispéptico, mas que estava em boas condições gerais de saúde. Uma lombalgia ocasional. Exame físico inocente.

– Você já voltou nesse médico depois de fazer todos esses exames? O que ele te disse? – perguntei.

– Voltei, e ele me disse que eu tinha níveis muito baixos desse hormônio aqui ó, e eu tinha que tratar porque era muito sério. Saí de lá bem assustada!

O hormônio em questão, que ela me mostrava no impresso do exame – todo rabiscado e circulado a caneta – era a pregnenolona.

Resumo da ópera: o colega prescreveu reposição de pregnenolona e outros minerais, que ela tinha que comprar no consultório dele. Isso custaria mais uns dois ou três meses do salário da paciente. E ela queria saber se tinha mesmo que gastar tudo isso.

Lembrei da falácia do atirador do Texas.  

A FALÁCIA DO ATIRADOR DO TEXAS

o atirador do texas - texas sharpshooter fallacy - raciocínio clínico

Imagine um atirador que quer convencer seus vizinhos que ele é bom de tiro. O único problema é que ele não consegue acertar o alvo. E agora? Ele tem uma ideia genial. Ao invés de pintar o alvo e depois tentar acertá-lo, ele faz o contrário. Primeiro, dá vários tiros na parede do seu celeiro, sem ninguém ver. Depois, ele anda até a parede e pinta um alvo ao redor do lugar onde os tiros acertaram. Os vizinhos só veem o resultado, e ficam convencidos de que ele é mesmo um grande atirador!

Falácias são erros no raciocínio lógico que nos levam a conclusões inadequadas.

A falácia do atirador do Texas (“Texas sharpshooter fallacy”) foi primeiro descrita pelo epidemiologista Seymour Grufferman. Diz respeito a situações em que, diante de uma grande quantidade de dados, escolhemos a dedo quais dados vamos considerar relevantes para confirmar uma ideia que já tínhamos (e ignoramos todos os outros), ou encontramos algum padrão em um grupo de dados que pode não ser verdadeiro.

É uma maneira de afirmar uma falsa causa, ou uma falsa explicação para algum fenômeno.

o atirador do texas e a epidemiologia

O atirador do Texas aparece muito no campo da epidemiologia. Um exemplo: são descritos vários casos de um tipo de câncer em uma determinada cidade ou região, e aquela região tem alguma característica específica – as pessoas ali bebem muito um certo tipo de chá. É fácil pular para a conclusão de que beber aquele chá causa aquele tipo de câncer. (E isso dá uma bela manchete!)

Mas essa conclusão apressada pode ser enganosa. Nem toda associação entre dois fatores (mesmo que estatisticamente significativa) é necessariamente uma relação de causa e efeito. Pode ser só coincidência. Pode ser só efeito do acaso. O atirador primeiro atirou no celeiro (viu o consumo de chá naquela cidade) e depois pintou o alvo ao redor dos buracos de bala (atribuiu causalidade).

Mas não é bem assim! Para estabelecer relação causal, é preciso conduzir estudos mais robustos, de preferência prospectivos, com grande número de sujeitos, e excluindo muitas outras possibilidades.

o atirador do texas e o diagnóstico

A falácia do atirador do Texas também ocorre no processo diagnóstico em Medicina –infelizmente, muito!

Você atende uma pessoa com várias queixas vagas e com exame físico inespecífico. O que você faz? Pede um monte de exames, claro!

Só que, quanto mais exames você pede, maior a probabilidade de pelo menos um dele vir alterado. Afinal, a definição do valor de referência de muitos exames é puramente estatística: 95% das pessoas têm dosagem deste mineral dentro desta faixa de valores – o que equivale a dizer que 5% dos indivíduos na população geral estão fora dessa faixa.

O paciente volta com um pacotão de exames e – bingo! O molibdênio está muito baixo. Então, só pode ser isso! Pintamos o alvo ao redor do molibdênio baixo. Repomos o molibdênio. E o paciente continua do mesmo jeito. Era uma falsa associação, só efeito do acaso.

Não é à toa que a prática de pedir exames demais, sem fazer uma avaliação e um raciocínio clínico adequado, é comparada a dar tiros com uma espingarda de chumbinho (“shotgun approach”): se o número de projéteis (testes) for suficientemente grande, um deles vai acertar em alguma coisa – não porque somos bons atiradores, mas por pura obra do acaso.

o atirador do texas e a medicina ortomolecular

pedido de exames - ortomolecular - atirador do texas - raciocínio clínico
Um exemplo típico de pedido de exames de um ortomolecular

Às vezes, o atirador do Texas leva os médicos a conclusões erradas por ingenuidade: confiamos demais no resultado do exame (e muito pouco na nossa avaliação clínica e no nosso raciocínio diagnóstico), sem checar as limitações do teste ou a real relevância clínica desse achado.

Outras vezes, é intencional – e nem sempre com boas intenções. A tal “medicina ortomolecular” é cheia de exemplos assim. Quem primeiro cunhou a ideia da medicina ortomolecular foi um gênio científico: Linus Pauling, vencedor do Prêmio Nobel de Química (1954) e da Paz (1962). Ele propunha que a reposição de doses colossais (“megadoses”) de algumas vitaminas poderiam prevenir o câncer e várias outras doenças. Tomava 18g de vitamina C por dia. Ironicamente, morreu de câncer. E a imensa maioria das suas proposições na área da Medicina – apesar de interessantes – não se provaram verdadeiras quando estudos adequados foram feitos para testá-las.

Hoje, vários profissionais da saúde usam as ideias de Pauling (comprovadamente falsas) para ganhar dinheiro às custas de pacientes crédulos. Têm consultórios bonitos e um papo convincente. Dosam milhões de coisas em gente saudável. Obviamente, ao pedir dezenas de exames, alguns deles dão alterados. Assustam os pacientes com isso. Dizem que “a Medicina tradicional” conspira contra eles. E vendem remédios (que custam caro) – sem evidências de qualquer benefício concreto.

Muitos pacientes gostam, claro (senão não haveria mercado). É muito mais cômodo atribuir seus problemas à falta de cromo – e simplesmente tomar várias cápsulas de cromo por dia – do que mudar seus hábitos de vida: parar de beber, comer direito, fazer exercício.

Minha paciente do ambulatório foi mais uma que caiu na armadilha.

CONCLUSÕES

Voltando à nossa paciente do ambulatório: levei tudo isso em conta e falei a ela duas coisas.

Primeiro: ela não devia ter feito tantos exames. Ela não tinha fatores de risco que justificassem dosar 90% das coisas que ela dosou. Um exame complementar deve ser uma ferramenta para testar uma hipótese: se avaliamos alguém e achamos que possa ter uma síndrome disabsortiva, está bem justificado dosar elementos que podem estar baixos no seu sangue devido à disabsorção.

Mas pedir exames a esmo, sem justificativas clínicas baseadas na avaliação individual – as tais “baterias de exames” – é má prática. Desperdiça recursos importantes ($) e aumenta o risco de encontrar exames que estão alterados por simples obra do acaso. Abre caminho para o atirador do Texas pintar um alvo ao redor de onde uma bala acertou o celeiro por simples acidente. (Em um post anterior, já comentamos sobre a inutilidade de pedir exames de rotina em pessoas saudáveis sem fatores de risco.)

Segundo: pregnenolona baixa não quer dizer que ela esteja doente. A pregnenolona é uma substância produzida a partir do colesterol como uma etapa intermediária da síntese de vários hormônios esteroides (progesterona, testosterona, cortisol etc). Pode estar elevada em algumas doenças das adrenais (como a hiperplasia adrenal congênita). Mas níveis baixos desse hormônio não significam muita coisa. Provavelmente, não significam nada. Não há evidências científicas claras de que a falta de pregnenolona cause algum prejuízo, ou que repor pregnenolona traga algum benefício. É um achado de exame, não é uma doença. (Pena que muitos pacientes – e profissionais – têm dificuldades em entender essa diferença!)

Aconselhei-a a usar o dinheiro dela para qualquer outra coisa que traga benefício mais concreto do que repor pregnenolona. Por exemplo: entrar numa academia. Perder um pouco de peso seria bom para aliviar a lombalgia. Comer direito poderia ajudar com a dispepsia.

Também aconselhei-a a nunca mais voltar no ortomolecular. Os tiros erráticos do atirador do Texas às vezes só causam desperdício e desconforto, mas outras vezes podem causar erros diagnósticos com repercussões sérias. (Veja nosso post anterior sobre overdiagnosis.)

E para você, colega médico ou estudante que chegou até aqui, um último conselho: só peça um exame se for com um bom motivo.

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PARA SABER MAIS:

Fallacy Files. The Texas Sharpshooter Fallacy.

Confira este vídeo bacana do Programa STARS/Choosing Wisely Brasil sobre o atirador do Texas: clique aqui para acessar no Instagram

Your Logical Fallacy Is…