quem vê cara não vê pulmão - caso clínico - raciocínio clínico

Um paciente chega ao pronto socorro com dor torácica, no que você pensa? Agora imagine: a mão no peito, diaforese, angústia. Se ele for um idoso, tabagista, com essa dor anginosa típica, pensamos um número pequeno de possibilidades. Com um ECG em mãos, percebemos um supra de ST. A chance de estar sofrendo um IAM é quase 100%, concorda?

Mas, e se estiver faltando algo? A dor ou o ECG não é típico, talvez o paciente não seja típico, como proceder? Certamente ficaríamos intrigados e buscaríamos mais dados, talvez realizar outros exames, reinterpretar a história, acompanhar o paciente por algumas horas. Dúvidas pairariam no ar…

É justamente essa falta de certeza na prática clínica que constantemente nos assombra e, infelizmente, acaba induzindo muitos a erros diagnósticos e de conduta.

Mas esse é também um dos maiores motivos que nos fascinam na medicina! A curiosidade, a investigação, a vontade de solucionar o problema de alguém é encantador, e nos dá o gostinho de ser um detetive.

Por causa disso, é necessário a interpretação correta das pistas: os dados da anamnese, exame físico e diversos exames complementares. E ainda, conforme os sintomas dos pacientes são coletados, precisamos reavaliar nosso raciocínio e refinar as hipóteses: alguns sinais encaixam melhor com outros, possibilidades surgem ou se tornam menos relevantes e assim caminhamos para a determinação de uma doença específica.

Porém, nesse mar de incertezas, temos alguma ilha segura que podemos atracar?

Felizmente sim! A natureza nos presenteou com algumas doenças cujas manifestações são inequívocas (ou quase). São os conhecidos (ou nem tanto) sinais patognomônicos. Seu significado é bem simples:

Sinal Patognomônico: sinal cuja presença é própria de uma única doença, permitindo diagnosticá-la sem dúvida. Contudo, vale salientar que a ausência desse sinal, não exclui a manifestação da doença, pois muitas delas ocorrem sem a presenças deles.

Dessa forma, esses sinais são muito úteis para o fechamento rápido do diagnóstico correto de certas doenças, as quais podem ser tratadas precocemente, evitando complicações perigosas.

Um fato interessante é que os sinais patognomônicos são raros e muito diferentes.  Se por um lado sua baixa frequência pode desmotivar a decorá-los, pois são pouco vistos, por outro, sua raridade incentiva encontrar a doença que o causa.

Vale a pena lembrar, a medicina continua sendo baseada nas incertezas e nas probabilidades, e esses sinais não fogem à regra. Assim, podem aparecer ou não, até mesmo nas doenças em que são exclusivos. Portanto, a ausência dos sinais patognomônicos não exclui a possibilidade de a doença estar presente.

Mesmo assim, sua manifestação muitas vezes é a bala de prata do diagnóstico. 

Venha conferir alguns deles:

1- Manchas de Bitot

Placas normalmente triangulares, esbranquiçadas, com aspecto ressecado, localizado na esclera ocular

nejm.org

Diagnóstico: Deficiência de vitamina A.

Ocorre em comunidades pobres da África subsaariana, sul da Ásia, alguns países de América Latina e China.

Uma simples inspeção ocular permite a identificação das Manchas de Bitot, que são causadas pela queratinização do epitélio da esclera. 

Além desse sintoma, a deficiência de vitamina A pode estar associado a cegueira noturna (nictalopia), xerose (ressecamento) conjuntival, ceratomalácia (amolecimento da córnea) e queda da imunidade, tornando o paciente suscetível a mortes por infecções.

2- Eritema Crônico Migratório

Lesão cutânea semelhante a um alvo (alternando anéis mais claros com anéis mais avermelhados)

Case courtesy of Dr Mark Thurston, Radiopaedia.org. From the case rID: 55288

Diagnóstico: Doença de Lyme (Síndrome de Baggio-Yoshinari, no Brasil).

Essa doença é causada por uma espiroqueta, transmitida por picada do carrapato do Veado. Esse eritema possui tal conformação devido a migração das bactérias pela pele. Assim, a lesão expande-se mantendo um centro endurecido, vesicular ou necrótico, com faixas onde as espiroquetas limitaram sua disseminação. Normalmente, estão localizados em coxa, virilha e axila.

3- Anel de Kayser-Fleischer

Pigmentação acastanhada da córnea periférica

maestrosaude.com.br

Diagnóstico: Doença de Wilson.

É um distúrbio genético que afeta uma proteína de membrana transportadora de cobre, comprometendo sua excreção biliar de cobre, com acúmulo desse metal no organismo e toxicidade subsequente. O anel de Kayser-Fleischer forma-se por deposição de cobre na membrana de Descement (borda externa da córnea), sendo diagnosticada utilizando uma lâmpada de fenda

4- Sinal de Battle​

Hematoma ou equimose em região da apófise mastoide, pós-auricular

medicinehack.com

Diagnóstico: Fratura de base de crânio.

O sinal ocorre por um represamento de sangue na região da apófise mastoide, gerado por uma fratura na base do crânio, em uma relação meramente anatômica do crânio.

5- Exame neurológico sensitivo cruzado

Anestesia termodolorosa e discreta hipoestesia táctil ipsilateral na cabeça, e contralateral no restante do corpo

doi.org/10.1590/S0004-282X1944000400007

Diagnóstico: Síndrome de Wallenberg (Síndrome medular lateral).

A maior causa dessa síndrome é um acidente vascular isquêmico, devido à oclusão da artéria cerebelar posterior inferior (ramo da artéria vertebral), proporcionando sintomatologia complexa. No caso específico do sinal relatado, ocorrem danos no trato espinotalâmico lateral, que ao passar pela decussação das pirâmides, gera a perda de sensibilidade térmica e dolorosa contralateral. O dano no trato espinhal do trigêmeo e do seu núcleo, que não passa transversalmente no bulbo, causa a perda de sensibilidade térmica e dolorosa ipsilateral.

6- Manchas de Koplik

Pontos branco azulados circundado por eritema, de 1mm de diâmetro, na mucosa oral

institutopensi.org.br

Diagnóstico: Sarampo.

As manchas de Koplik ocorrem nos primeiros 2 dias de sintomas, ocorrendo antes do aparecimento do exantema característico da doença, podendo-se sobrepor brevemente. Possuem tal conformação, por conta da dilatação de veias em torno das glândulas submucosas, gerando o eritrema; e a parte esbranquiçada pela destruição das células do epitélio glandular.

7- “Blue Dot Sign"

Pequeno ponto azulado na pele do escroto

meddean.luc.edu

Diagnóstico: Torção Testicular (apêndice ou epidídimo).

Uma mal formação congênita leva a túnica vaginal cobrir não somente o testículo. Assim, ocorre a rotação livre do testículo sobre a túnica vaginal, que leva a torção, obstruindo o retorno venoso inicialmente e posteriormente afeta a pressão arterial local, gerando isquemia testicular. Quando o apêndice testicular torce, sofre descoloração e permite palpação no polo superior do testículo, formando o “Blue Dot Sign”.

8- Nódulos de Lisch

Hamartomas melanóticos hiperpigmentados na íris

Case courtesy of Dr Mark Thurston, Radiopaedia.org. From the case rID: 59408

Diagnóstico: Neurofibromatose.

Doença genética que altera o gene NF1, responsável por um proteína presente na GTPase, comprometendo sua regulação para baixo. Isso permite uma proliferação celular anormal. Uma dessas pode ser o hamartoma na íris, o Nódulo de Lisch, diagnosticado por um oftalmologista na lâmpada de fenda.

9- Sinal de Cruz de Malta

labmedica.com

Diagnóstico: Babesiose.

A Babesiose é causada por um protozoário parasita, transmitido por picada do carrapato do Veado (mesmo da Lyme e Anaplasmose). Possui uma apresentação clínica muito semelhante à Malária. No esfregaço de sangue corado com Giemsa, pode ser encontrado tétrades do parasito nos eritrócitos.

Convém mostrar outros sintomas bem incomuns, que não são considerados Patognomônicos, por não serem exclusivos de uma única doença. Contudo, continuam sendo muito úteis, por restringir o diagnóstico a poucas etiologias consideras mais raras, sendo Sinais muito representativos:

1) Inversão da percepção de frio e calor

Diagnóstico: intoxicação por Ciguatera (toxina encontrada em peixes marinhos de água quente), e envenenamento neurotóxico por moluscos (ostras), ambas produzida por algas.

A toxina liga-se aos canais de Sódio mediados por voltagem, induzindo a abertura deles e o influxo de Sódio para o axônio, despolarizando a membrana e produzindo potenciais de ação. Essa ação nas fibras A-delta e C, as quais carregam informações de temperatura e dor, poderiam estar disfuncionais, levando à sintomatologia referida.

2) Claudicação de Mandíbula

Diagnósticos possíveis: Arterite de células gigantes (arterite temporal), mais comum.

Esse sintoma é definido como dor mandibular à mastigação, por falta de suprimento sanguíneo adequado aos músculos mandibulares e linguais. Embora menos comuns, deve-se pensar de forma geral em patologias que reduzem o fluxo sanguíneo na artéria temporal, como as seguintes:

  • Arterite de Células Gigantes;
  • Amiloidose;
  • Aterosclerose nas carótidas;
  • Dissecção aguda de aorta;
  • Poliarterite nodosa;
  • Vasculite induzida por Crioglobulinemia;
  • Granulomatose com poliangeíte.

3) Dactilite

Dedos em salsicha

novamedicum.com

Diagnósticos: Artrite psoriática, Artrite reumatoide, Artrite reativa, Espondilite anquilosante, Sarcoidose, Tuberculose óssea, Sífilis Congênita, Anemia Falciforme.

As formas de apresentação da dactilite podem variar entre suas diferentes etiologias. Contudo, sua manifestação geral deve-se à tenossinovite, edema de tecido mole adjacente, sinovite articular, edema de medula óssea e erosão óssea.

4) Edemas migratórios cutâneos

mdsaude.com

Diagnósticos possíveis: Larva Migrans Cutânea, Larva currens (Estrongiloidíase), Miíase migratória, Gnatostomíase, Loíase, Dirofilariose.

Essa manifestação cutânea se baseia na migração do verme sob a pele, formando um rastro serpentiforme, sendo facilmente distinguida na inspeção do corpo do paciente por conta da sua movimentação, que pode ser em algumas espécies de até 10cm/h.

5) Macroglossia

abcmed.br

Diagnósticos possíveis: Amiloidose, Esclerose Lateral amiotrófica, Acromegalia, Hipotireoidismo, Linfangioma, Hemangioma, Mucopolissacaridose, Síndrome de Beckwith-Wiedemann, Doença de Pompe, Doença de Madelung.

Como pode ser visto, várias doenças podem se manifestar por meio da Macroglossia, assim, não existe uma única fisiopatologia que explique seu aparecimento. Contudo, de forma geral, ocorre hiperplasia ou hipertrofia dos músculos da língua, ou infiltração de elementos anômalos no tecido normal da língua.

6) Olhos de guaxinim

Case courtesy of Assoc Prof Craig Hacking, Radiopaedia.org. From the case rID: 76634

Diagnósticos possíveis: Amiloidose, Fratura de Base do Crânio, hemorragias subaracnóideas, Neuroblastoma, Neoplasias Hematológicas, Síndrome de Sweet.

O olhos de guaxinim, de forma semelhante ao sinal de Battle, indicam uma equimose na região periorbital. Assim, as doenças descritas acima podem causar danos teciduais, obstrução de vasos ou sangramentos que induzem o represamento de sangue na região, e o consequente aparecimento do sinal.

Você ficou curioso para saber mais sobre sinais diferentes, estranhos e curiosos?

Autor:

Fabrizio Almeida Prado, Alexandre Wilton Bissoli Jr.

Você pode referenciar o artigo acima usando o Digital Object Identifier (Identificador de Objeto Digital) – DOI.

DOI: 10.29327/823500-95