Você sabia que existem alguns achados do exame físico que todo médico conhece, mas que não ajudam no diagnóstico?
Explico: os achados do exame físico (sinais), assim como as queixas do paciente (sintomas), podem ser avaliados quanto ao seu impacto na avaliação da probabilidade de uma doença. É isso mesmo: podemos aplicar aos sinais e sintomas as mesmas medidas que são comumente usadas para avaliar a utilidade de exames complementares.
Basta conduzir estudos para medir se os achados do exame físico que consideramos indicar a presença de uma doença têm realmente uma frequência diferente entre pessoas doentes ou saudáveis.
Algumas dessas medidas são a sensibilidade, a especificidade e o valor preditivo (positivo e negativo).
Mas a medida mais útil na prática clínica não é nenhuma dessas!
É a likelihood ratio (traduzida muitas vezes como “razão de verossimilhança“, “razão de probabilidades” ou “taxa de probabilidade“).
O que é essa tal likelihood ratio?
A likelihood ratio (ou LR, para os íntimos) indica a proporção da frequência de um achado (sintoma, sinal ou resultado de exame) ao comparar gente com ou sem a doença em questão.
Uma LR = 1 significa que um achado é igualmente presente em pessoas doentes ou saudáveis. Ou seja, significa que esse achado não serve para nada! Não tem valor diagnóstico. Não muda probabilidade de doença se estiver presente ou ausente.
Em geral, quanto mais longe de 1 for o valor da LR de um achado (para cima ou para baixo), mais ele discrimina entre pessoas doentes ou saudáveis.
Portanto, temos a likelihood ratio positiva (ou LR+), que é a proporção entre a presença do achado entre gente com doença / gente sem doença. Quanto maior a LR+, mais a presença desse achado aumenta a probabilidade de doença na avaliação do seu paciente. Se um achado com LR+ de 10 ou mais estiver presente, este é um indício muito forte da presença de doença!
Por outro lado, também temos a likelihood ratio negativa (ou LR-). Esta é a proporção da ausência do achado em gente com doença / gente sem doença. Quanto mais baixa a LR-, mais a ausência desse achado diminui a probabilidade da doença estar presente! Dessa maneira, se um achado com LR- de 0,1 ou abaixo disso não estiver presente, este é um forte indício da ausência de doença.
Quer saber mais a respeito da likelihood ratio (LR)? Confira este texto superdidático!
como usar a likelihood ratio no exame físico?
Num mundo ideal, só pesquisaríamos ou valorizaríamos os achados do exame físico que tivessem uma ótima LR.
O problema é que, na prática, geralmente não sabemos qual é a LR de um sinal, ou não temos sinais com LR muito boa.
E aí é que mora o perigo: quando damos importância demasiada para achados com LR muito baixa, ou damos pouco valor a achados com LR muito boa. Isso pode enviesar nosso raciocínio e nos levar a tomar decisões erradas.
Neste artigo, usamos dados de pesquisas que estão compilados no ótimo livro “Evidence-based physical diagnosis“, do Dr. Steven McGee. (Usamos a quarta edição – embora agora em 2021 já esteja saindo a quinta.)
Abaixo, selecionamos 10 achados do exame físico que não servem para nada – ou pelo menos, não são tão úteis quanto todos pensam – e que todo mundo conhece e procura ao examinar um paciente!
Antes, uma confissão: sou professor de Semiologia e, sim, eu ensino todos esses achados para todos os alunos. Todos são sinais e manobras tradicionais do exame físico, e ainda acho importante que os alunos as conheçam, todas. Só que também é importante conhecer qual seu real valor na avaliação diagnóstica de um paciente! E por isto esta discussão sobre LR vem complementar o simples ensino da Semiologia tradicional.
(Mais abaixo, nas Conclusões deste artigo, também trago a minha opinião sobre o real valor de cada um destes sinais na prática.)
10 achados do exame físico que não ajudam no diagnóstico
1. EDEMA PARA DETECTAR INSUFICIÊNCIA CARDíACA
Edema de membros inferiores é um achado que pode ter inúmeras causas. Em outras palavras, é muito inespecífico.
Por esse motivo, quando se avalia a LR do achado de edema em membros inferiores para detectar uma síndrome específica, como, por exemplo, insuficiência cardíaca (IC), observamos que essa LR não é significante.
Dessa forma, a presença ou ausência de edema de membros inferiores não ajuda nada na avaliação de probabilidade de IC.
2. SINAL DE ROVSING NA APENDICITE AGUDA
Taí um sinal que é ótimo de ensinar (e cobrar) nos cursos de Semiologia. Tem todo um jeito certo para executar esta manobra. A ideia é pressionar o intestino grosso da esquerda para a direita, de forma a empurrar o gás no seu interior em direção à valva ileocecal, próxima ao apêndice – se este estiver inflamado, isso deve causar dor.
A ideia é bacana, mas na prática não dá muito certo… Quando presente, este sinal até ajuda um pouco: a LR+ é de 2,3, o que significa que sua presença aumenta um pouquinho (em uns 15%) a probabilidade de apendicite. Só que, quando ausente, isso não quer dizer absolutamente nada: a LR- é de 0,8 (ou praticamente 1).
A melhor LR para detecção de apendicite aguda vem de um conjunto de achados, sistematizados no escore de Alvarado. Já falamos dele em outro post, dê uma olhada!
3. SINAL DE MURPHY NA COLECISTITE AGUDA
OK, aqui forçamos um pouco a barra. O sinal de Murphy é o achado do exame físico com melhor LR para colecistite aguda. Mas entrou nesta lista porque, mesmo assim, não é uma evidência tão forte quanto muitos pensam!
Para quem não conhece, o sinal de Murphy é avaliado fazendo pressão abaixo do rebordo costal, na intersecção com a linha hemiclavicular direita. Pedimos para o paciente inspirar fundo e, se ele interromper subitamente a inspiração (teoricamente, quando a vesícula inflamada toca o dedo do examinador), então o sinal é positivo.
Já vimos gente mudar toda a conduta com base apenas neste sinal. Murphy presente, é colecistite. Murphy ausente, deve ser outra coisa.
Só que não é bem assim!
Se o Murphy estiver presente, a LR+ é de 3,2. Ou seja, a probabilidade estimada de colecistite aguda aumenta um pouco: algo entre 15% e 30%.
No entanto, se o Murphy estiver ausente, a LR- é de 0,6: muito ruim! Sua ausência, portanto, diminui muito pouco a probabilidade de colecistite.
4. TESTES PROVOCATIVOS PARA SÍNDROME DO TÚNEL DO CARPO
Paciente com parestesias ou dor do tipo neuropática na mão, o que você faz? Pesquisa os clássicos sinais de Tinel e Phalen, certo?
Só tem um probleminha: esses testes provocativos, que deveriam ajudar a avaliar se o paciente tem síndrome do túnel do carpo, realmente não servem para nada!
O sinal de Phalen tem LR+ de 1,3 e LR- de 0,7. Por sua vez, o sinal de Tinel tem LR+ de 1,4 e LR- insignificante. Muito ruim para que esses testes tenham qualquer utilidade clínica!
5. Sinais de Kernig e Brudzinski para meningite aguda
Ambos os sinais pretendem detectar irritação meníngea.
O sinal de Kernig é quando o paciente, com quadris e joelhos fletidos a 90 graus, resiste à extensão da perna.
Já o sinal de Brudzinski é quando, ao elevar passivamente a cabeça do paciente em decúbito dorsal, este eleva os joelhos.
Muito bacana, mas estes também não são tão achados tão importantes quanto todo mundo imagina.
O sinal de Kernig tem LR+ de 2,5, enquanto o de Brudzinski tem LR+ = 2,2. Isso quer dizer que, se presentes, eles aumentam um pouquinho (cerca de 15%) a probabilidade de meningite aguda.
Mas o pior é se eles estiverem ausentes: a LR- é exatamente 1! Isso quer dizer que a ausência desses achados jamais deve ser usada para embasar uma decisão de dispensar uma punção lombar num paciente com suspeita de meningite!
6. DÉFICIT DE PULSO PARA DETECTAR DISSECÇÃO DE AORTA
Quando dizemos “déficit de pulso“, isso pode significar tanto a ausência de pulso periférico em um membro como também a diferença >20mmHg na pressão arterial sistólica entre os dois braços.
Embora sua presença tenha uma LR+ razoável (4,2, aumentando a probabilidade de dissecção de aorta em quase 30%), a LR- é péssima (0,8).
Portanto, a ausência deste achado não deve servir, de forma alguma, para afastar dissecção de aorta em um caso suspeito!
7. FEBRE: O que é melhor, a história ou o exame físico?
Esta é interessante: o que é mais confiável como indicador da presença de febre? O relato de febre pelo paciente, ou a sensação de uma testa quente à palpação do médico?
É só olhar a LR+ de cada um!
A LR+ da percepção de testa quente pelo profissional de saúde é de 2,8.
Já a LR+ do relato de febre pelo paciente é de 5,3 – bem melhor!
(Mas bom mesmo é medir a temperatura do paciente com um termômetro!)
8. TÓRAX EM BARRIL PARA DETECTAR DPOC
Esta é um clássico! A detecção de um diâmetro anteroposterior aumentado do tórax, dando o aspecto de tórax em formato de barril (ou tonel), é uma dica importante para detectar doença pulmonar obstrutiva crônica (DPOC). Certo?…
Errado!
A LR+ deste achado é de apenas 1,5. E a LR- é tão ruim quanto: 0,6.
Ou seja: este achado definitivamente não ajuda no diagnóstico!
9. ESTERTORES NA AUSCULTA PULMONAR PARA PNEUMONIA
Em pacientes com febre e tosse, o achado de estertores à ausculta pulmonar é considerado geralmente um indicativo importante da presença de pneumonia.
Mas lá vamos nós de novo…
De acordo com as pesquisas, a LR+ da presença de estertores pulmonares tem LR+ de apenas 2,3 para detecção de pneumonia. Aumentam só uns 15% a probabilidade dessa doença!
E a LR-? Só 0,8! E, a esta altura, você já entendeu o que isso significa: que a ausência de estertores não diminui significativamente a probabilidade de pneumonia.
10. MACICEZ À PERCUSSÃO DO ESPAÇO DE TRAUBE PARA ESPLENOMEGALIA
Chegamos ao último dos nossos 10 achados do exame físico que não ajudam no diagnóstico!
O achado de som maciço à percussão do espaço de Traube (um espaço triangular na porção inferior esquerda do tórax) tem LR+ de 2,1 e LR- de 0,8. Ajuda um pouquinho se presente, mas não serve para nada se ausente.
(Em geral, a palpação de um baço aumentado é um sinal muito mais confiável que as manobras de percussão do baço.)
Conclusões
Neste artigo, listamos 10 achados do exame físico que não ajudam no diagnóstico.
Mas temos que contextualizar um pouco melhor a nossa afirmação inicial: muitos desses achados não ajudam em nada se forem avaliados isoladamente.
Para fazer pesquisa, é evidente que cada um desses sinais ou manobras precisa ser avaliado sozinho, e sua frequência comparada entre pessoas com ou sem a doença em questão. Só assim conseguimos medir a LR de cada achado!
Mas, na prática clínica, é diferente! Todos esses achados devem fazer parte de uma avaliação mais ampla e completa, levando em conta as características individuais do paciente (sexo, idade, etnia, fatores de risco), os dados da história (sintomas, cronologia, antecedentes) e os dados do exame físico (completo!), além de eventualmente incluir também os resultados mais relevantes de exames complementares.
Dentro dessa avaliação ampla, às vezes um achado que, isoladamente, não significa muita coisa, pode ser uma pecinha a mais na soma de informações que leva o médico a concluir que este ou aquele diagnóstico é o mais provável.
Por isso, é interessante entender que a simples ausência dos sinais de Kernig e Brudzinski, por exemplo, não é suficiente para afastar com segurança a possibilidade de meningite. Mas nem por isso vamos deixar de continuar procurando esses sinais em pessoas com suspeita dessa doença!
Afinal, tradições precisam ser respeitadas – desde que entendamos qual é seu real valor para o raciocínio clínico diagnóstico.
E você?
Conhece mais algum achado do exame físico que todo mundo procura no paciente, mas que tem uma LR muito ruim?
Compartilhe com a gente na seção de Comentários, aí embaixo!
Bom dia!!
Me chamo Max Kopti Fakoury,
Sou um fã deste blog! Sempre com leituras agradáveis e com grandes aprendizados.
Entendo a proposta desta postagem, mas a parte final é que realmente faz a diferença.
Os achados isolados, sem a contextualização, podem não servir pra nada.
Mas a anamnese e o exame físico são um somatório de dados probabilísticos e que conhecer cada sintoma e/ou sinal ajuda em muito a construir o raciocínio e definir melhor a conduta diagnóstica.
Muitas vezes falamos que alguns exames complementares são examinadores dependentes (USG, ECO), mas não tem nada mais examinador dependente que a própria anamnese e exame físico, sendo que é isso que temos que levar em conta a todos momento, que somos passíveis de falhas. Reconhecer nossas limitações (pessoais, do ambiente e de tempo) diminuem a chance de erros.
Não devemos deixar de ensinar todo e qualquer sinal semiológico, pois este pode ser o único recurso tecnológico disponível em um determinado lugar com algum paciente… além de ensinar como interpretar o achado e seu valor isolado ou em conjunto com outros sinais e sintomas.
Mais uma vez , muitíssimo obrigado por tudo que vocês apresentam por aqui!!
Seguimos juntos.
Oi Max! Muito obrigado pelos seus comentários e pelos seus elogios! Realmente, analisar dados isolados é necessário para conduzir este tipo de pesquisa (e ver se um achado discrimina entre a presença ou ausência de doença), mas não é assim que fazemos na prática clínica, situação em que precisamos juntar várias informações para tentar ter uma visão do todo. Um forte abraço,
Muito boa a iniciativa de trazer o conceito das LR; Todavia, o título do texto fica desproporcional com alguns dados apresentados. Realmente chamar sinal de Homans e pesquisa de RHA achados literalmente inúteis no exame clínico, qualquer sinal com LR+ de 2, nunca deveria ser taxado como “não serve pra nada”. São raros os achados clínicos que tem LR+ tão alta para ajustar a probabilidade pré teste consideravelmente, então desde a queixa inicial até a história e exame físico direcionados a probabilidade vai sendo reajustada de acordo com uma hipótese mais provável e outras menos prováveis. Os exames complementares por sua vez modulam essa probabilidade para que possamos guiar mais confiante em relação a hipótese principal, quando necessários. Portanto, uma LR+ de 2, impacta significativamente a probabilidade desde que seja adicionada ao modelo correto. Portanto, conhecer que sinais são inúteis e que sinais são úteis faz toda diferença na formação de um bom internista (“clínico geral”). Como diria nosso grande mestre, “medicina é a arte da incerteza e a ciência da probabilidade”, e já sabemos que nossa mente não consegue pensar adequadamente no espectro de probabilidades, sempre tentando ajustar o mundo na dicotomia do “sim” ou “não”.
Muito obrigado pelo comentário! Concordo totalmente, inclusive a minha conclusão ao final do texto é muito parecida com a sua. Nenhum achado isolado confirma ou afasta diagnósticos, temos que analisar e integrar o conjunto dos dados de cada paciente para podermos tomar decisões com segurança. Um forte abraço,