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Cenário: um hospital de Londrina/PR, anos 1970.

L.A.D., 4 anos, filho do meio de um casal trabalhador da classe média baixa, é trazido ao Hospital pela mãe que percebeu que o menino, habitualmente levado, estava cansado e com as “pontas dos dedos azuis” (sic).

História da Moléstia Atual: A criança estava perfeitamente normal até há 3 dias, quando, numa visita de rotina ao pediatra, foi declarado normal, com desenvolvimento psicomotor adequado, vacinação em dia e peso e altura compatíveis com a idade.

O caso foi trazido para uma discussão clínica na sala dos médicos pelo pediatra de plantão, pois este notou cianose perioral e de extremidades e uma leve dispneia.

No entanto, o exame clínico não revelou nenhuma outra anormalidade. Os sinais vitais estavam normais, as extremidades estavam quentes e a ausculta cardíaca e pulmonar eram absolutamente normais. Um eletrocardiograma e uma radiografia de tórax em PA também eram inocentes.

Revimos todo o exame físico cuidadosa e detalhadamente, e de fato não havia nada mais além da cianose, a não ser uma leve taquicardia de 110bpm.

O menino estava normotenso, afebril e discretamente dispneico.

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Cianose de extremidades.

Uma criança com cianose - e agora?

Com os dados disponíveis, montamos o nosso resumo do caso:

"Um menino de 4 anos, saudável, com cianose e dispneia há 3 dias."

qual foi o raciocínio diante desta cianose?

Cianose: se não tem cardiopatia ao exame físico, não tem dificuldade respiratória, e tem eletrocardiograma e radiografia normais, então não deve ser nada no coração nem no pulmão!

Deve ser alguma coisa que está no sangue”, pensamos.

Primeira coisa que veio à mente: tomou corante – mas qual? Não havia história de ingestão de qualquer corante.

O menino estava ficando mais cianótico e a dispnéia se agravava.

Pensamos em intoxicação, mas a anamnese continuava negativa.

No desespero, telefonamos para uma tia (que estava em casa) e solicitamos que ela trouxesse todos os medicamentos que tinha na casa.

Após uma hora e meia, a tia chegou, esbaforida, com uma sacolinha na mão.

Tinha AAS infantil, Rinossoro, Neosaldina e uma cartela de Imosec – nada diferente do que todos temos em casa, e nada que explicasse a cianose.

Porém, meio constrangida, a tia enfiou a mão na bolsa e tirou uns comprimidos brancos tirados de um envelope da Secretaria de Saúde e disse: “achei na mesa de cabeceira do tio Fulano que está de visita lá em casa, ele toma este remédio para ‘alergia’ na pele”.

Quando o menino viu os comprimidos, falou: “olha as balinhas do tio!”

E aí tudo fez sentido: ENVELOPE DA SECRETARIA DE SAÚDE + COMPRIMIDOS BRANCOS + “ALERGIA NA PELE” = HANSENÍASE!

O remédio do tio devia ser DAPSONA.

E o diagnóstico do menino foi: METEMOGLOBINEMIA.

 

Qual foi a lógica por trás deste raciocínio clínico?

Um envelope da Secretaria da Saúde foi interpretado como medicamento de dispensação pública.

Naquele tempo (anos 70), só se distribuíam medicamentos para tuberculose ou para hanseníase (como a dapsona).

Como o tio do menino referia problema de pele, o diagnóstico de hanseníase se impôs.

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Cartela de comprimidos de dapsona.

O que é metemeglobinemia?

metemoglobinemia (ou meta-hemoglobinemia) caracteriza-se pelo acúmulo de uma forma aberrante de hemoglobina (a meta-hemoglobina).

Essa molécula anormal de hemoglobina surge por oxidação do ferro do grupo heme do normal (ferroso) para a forma férrica. Dessa maneira, a meta-hemoglobina adquire coloração marrom-acastanhada (causando cianose) e tem menor capacidade de transporte de oxigênio (causando dispneia).

Essa condição é geralmente desencadeada por medicamentos, entre eles a dapsonaanestésicos locais e antimaláricos.

Deve-se suspeitar de metemoglobinemia em pacientes sem doenças cardiopulmonares que se apresentem com cianose e PaO2 normal.

Outra dica importante é uma dissociação (gap) entre a saturação de O2 no oxímetro de pulso (que não reconhece a metemoglobina) – tipicamente em torno de 85% – e a saturação da hemoglobina na gasometria arterial – geralmente normal: 98-100%.

Então, não esqueça dessa dica:

Desconfie de metemoglobinemia se a oximetria de pulso for menor que a saturação de O2 na gasometria arterial!

No nosso paciente, colhemos uma amostra de sangue para dosar metemoglobina (que resultou aumentada).

No sangue arterial, a PaO2 era 99mmHg, com saturação de hemoglobina de 98% (normais).

Vocês vão perguntar: e a oximetria? Não tinha! Nos anos 70, oxímetros de pulso ainda não tinham sido inventados!

COMO tratar?

O tratamento da metemoglobinemia é feito com azul de metileno, 1mg/kg de peso, endovenoso, diluído em solução fisiológica 0,9% 250mL.

In vivo, o azul de metileno  é reduzido pela NADPH–metemoglobina-redutase para leucoazul de metileno. Esta molécula age como doador de elétrons para a metemoglobina, aumentando a capacidade dos eritrócitos de reduzirem a metemoglobina para hemoglobina novamente.

Conclusão

Ao ver o soro azul, a mãe entrou em desespero:

Estes médicos estão loucos! Agora é que o menino vai ficar azul mesmo!“

Mas, no fim da infusão, a cianose já tinha se resolvido.

O menino já estava coradinho, vermelhinho como sempre foi, e comendo um saco de inocentes jujubas trazidas pelo médico.

PARA SABER MAIS:

Burke P, Jahangir K, Kolber MR. Dapsone-induced methemoglobinemia:  Case of the blue lady. Canadian Family Physician. 2013;59:958-61.

Autores:

  • Fabrizio Almeida Prado
  • Leandro Arthur Diehl
  • Pedro Alejandro Gordan

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DOI: 10.29327/823500-10