Recebemos 126 respostas para o nosso Caso Clínico Interativo #02, de leitores de todos os cantos do Brasil!

As respostas mais comuns foram:

 

Qual seria o melhor resumo do caso?

 

Qual seria a hipótese mais provável para este caso?

Confira abaixo o diagnóstico final do caso, e os nossos comentários!


Resposta do Caso

Em relação ao Caso Clínico Interativo #02, acreditamos que o melhor resumo do caso, condensando os achados mais relevantes da história clínica em uma ou duas linhas, seria:

[ads_color_box color_background=”#ffb700″ color_text=”#ffffff” radius=”20″]Mulher de meia-idade, previamente hígida, com fraqueza e edema de evolução crônica e progressiva, culminando com congestão pulmonar e elevação de pressão venosa central.[/ads_color_box] Diante desse resumo do caso (e antes de ver os exames complementares), o problema clínico (ou diagnóstico sindrômico) que se impõe naturalmente é o de insuficiência cardíaca.

Entretanto, com a avaliação dos exames complementares iniciais que são rotineiros na avaliação de toda suspeita de insuficiência cardíaca, surgem outros dados que nos ajudam a refinar o problema clínico:

  •  No eletrocardiograma: baixa amplitude elétrica dos complexos QRS;
  •  Na radiografia de tórax: cardiomegalia importante, dando à área cardíaca um aspecto de “coração em moringa”.

Esses achados nos levam à hipótese de derrame pericárdico (a imagem no raio-x é característica!), que torna-se uma explicação bastante razoável para a descompensação cardíaca da paciente.

E, uma vez identificado o derrame pericárdico como problema clínico principal neste caso, podemos passar à próxima etapa, gerando nossa lista de possíveis etiologias. É o famoso (e indispensável) diagnóstico diferencial.

Uma maneira prática de gerar uma lista de diagnósticos diferenciais é o uso de métodos mnemônicos. Com esses métodos, o médico tenta lembrar todas as possíveis explicações para o problema, usando uma lista de categorias de doenças. Veja, por exemplo, o nosso mnemônico ACERTEINAMOSCA:

Depois disso, a investigação prossegue com a coleta de informações adicionais para ajudar a selecionar qual dessas hipóteses é a que melhor se aplica ao caso em questão. Essas informações adicionais podem ser: dados da história (sintomas, história familiar, fatores de risco, exposições ambientais, medicamentos etc.), sinais do exame físico, ou exames complementares.

Continuação do Caso

A paciente realizou um ecocardiograma que revelou um volumoso derrame pericárdico, além de um discreto derrame pleural bilateral. As câmaras cardíacas tinham dimensões e função normal, sem outras alterações.

No quinto dia de internação, ela evoluiu com sinais típicos de tamponamento cardíaco (aumento da turgência jugular, abafamento de bulhas cardíacas, hipotensão arterial e pulso paradoxal). Nesse momento, ela foi submetida a uma pericardiocentese, com a drenagem de 500mL de líquido amarelo citrino. A bacterioscopia, a pesquisa de BAAR e fungos e as culturas foram todas negativas.

A paciente tinha PPD não reagente, e os exames sorológicos para doenças autoimunes também foram negativos.

Optou-se por realizar uma pericardiotomomia e janela pericárdica. A biópsia de pericárdio, obtida nesse procedimento, resultou negativa para doenças granulomatosas ou malignidade.

Finalmente, veio o resultado dos testes de função tireoidiana: TSH 70mU/L e T4 livre indetectável. O diagnóstico final foi de derrame pericárdico e tamponamento cardíaco decorrentes de hipotireoidismo primário.

Foi prescrita levotiroxina 75mcg/dia por 3 dias, depois aumentada para 125mcg/dia.

A paciente evoluiu com melhora clínica importante e recebeu alta para continuar acompanhamento ambulatorial.

A culpada - Caso Clínico Interativo #02 - Raciocínio Clínico

A culpada…


 

Comentários

Uma causa de erro que é comum e potencialmente evitável é um viés chamado base rate neglect (que poderia ser traduzido para algo como “negligenciar a prevalência”). Isso ocorre quando, diante de um quadro que poderia ser explicado por várias doenças com prevalências diferentes (algumas comuns, outras raras), o médico atribui a todas essas doenças uma probabilidade semelhante. No entanto, isso não é verdade: as doenças mais comuns na população geralmente são as mais prováveis – simplesmente porque são muito mais comuns!

Para evitar isso, o médico deve conhecer (e levar em conta) a prevalência das várias doenças na população.

Neste caso, por exemplo, a lista de possíveis causas para o derrame pericárdico inclui doenças bem diferentes, desde lúpus eritematoso sistêmico (LES), câncer e tuberculose (TB) até hipotireoidismo e febre familiar do Mediterrâneo. Um médico desavisado poderia pedir, de cara, exames para investigar todas essas doenças de uma vez só. Mas, de todas estas doenças, a mais comum na população é o hipotireoidismo, que atinge até 2% dos adultos – bem mais freqüente que LES e TB, e, com certeza, muito mais comum que a febre familiar do Mediterrâneo!

(Embora, a bem da verdade, derrame pericárdico não seja uma manifestação tão frequente no hipotireoidismo. As causas mais comuns de derrame pericárdico são: viral, malignidades, colagenoses, trauma/cirurgia e idiopático.)

“As doenças mais comuns geralmente são as mais prováveis!”[/ads_color_box] Outro dado que falava a favor da hipótese de hipotireoidismo neste caso era a concomitância de outros sintomas que não eram tão bem explicados pela insuficiência cardíaca/derrame pericárdico. A dispneia aos esforços e o edema eram típicos de insuficiência cardíaca, mas a fraqueza, astenia, obstipação intestinal e humor deprimido (embora inespecíficos) poderiam ser do hipotireoidismo. Essa suspeita fica ainda mais forte quando estes sintomas ocorrem numa mulher com mais de 40 anos (subgrupo mais acometido por distúrbios da tireóide).

Hipotireoidismo

Interessante ressaltar que, apesar do derrame pericárdico ser a complicação cardiovascular mais frequente do hipotireoidismo, o tamponamento cardíaco é bastante raro! Uma explicação é que o acúmulo de líquido pericárdico ocorre de maneira bastante lenta no hipotireoidismo. Isso possibilita ao saco pericárdico distender-se e acomodar-se, levando a menor comprometimento da contratilidade cardíaca.

Uma das dificuldades no diagnóstico de hipotireoidismo é que o quadro clínico é extremamente variável, podendo haver uma ampla gama de apresentações, desde as muito leves até as muito graves com complicações sérias.

Outro problema é que muitos sinais e sintomas do hipotireoidismo são bastante inespecíficos, ou seja, podem ser causados por um grande número de condições diferentes (veja quadro abaixo).

Por isso, sempre que houver a suspeita de hipotireoidismo, deve-se proceder à investigação laboratorial, com dosagem do TSH e, eventualmente, do T4 livre.

Quadro – Sintomas e sinais do hipotireoidismo e sua frequência.

Adaptado de: Wiersinga WM, 2014.

 

Conclusões

Em resumo, nossa paciente tinha hipotireoidismo primário, mas seus sintomas mais importantes provavelmente tinham mais a ver com uma complicação (derrame pericárdico) do que com o próprio hipotireoidismo. Assim, suas queixas principais – dispnéia progressiva aos esforços e edema periférico – provavelmente foram causados pelo acúmulo lento de líquido na cavidade pericárdica, com repercussão cardiocirculatória (congestão sistêmica, baixo débito cardíaco), culminando com um quadro agudo de tamponamento. Neste caso, os sintomas mais comumente associados ao hipotireoidismo (obtipação, astenia) acabaram ficando em segundo plano.

Este caso, publicado originalmente por Rachid et al. em 2002, é interessante para ilustrar o fato de que o hipotireoidismo pode ser bastante difícil de diagnosticar em alguns casos. Apesar de comum e bem conhecido, o hipotireoidismo tem apresentações bastante variáveis. Por isso, sempre que houver a suspeita, deve-se colher pelo menos o TSH – um exame barato, amplamente disponível e muito acurado para diagnóstico.

Finalmente, fica a dica: conhecer as prevalências das doenças na população pode ajudar a direcionar a investigação para as doenças mais comuns – e mais prováveis! Isso pode, inclusive, poupar recursos, se o médico tiver o bom senso de investigar primeiro as hipóteses mais prováveis, ao invés de pedir exames para todas as suas hipóteses ao mesmo tempo.