Hoje vou compartilhar com vocês uma história que eu ouvi muitas e muitas vezes, na época que eu ainda fazia consultório de Endocrinologia.
Uma mulher jovem, na casa dos seus trinta e poucos anos, vendendo saúde, assintomática, resolve ir ao seu clínico geral (ou ginecologista, ou cardiologista) para um “check-up”.
Apesar de tudo parecer bem, o médico pede vários exames. Glicemia, colesterol, função renal, TSH, o preventivo de colo de útero – e um ultrassom de tireoide.
No ultrassom, aparece um pequeno nódulo tireoidiano. Minúsculo: 3mm no maior diâmetro.
“Não deve ser nada grave, mas vamos precisar de um outro exame para ter certeza. Um tipo de biópsia.”
A citologia mostra que é um pequeno câncer papilífero de tireoide.
Ou seja: mesmo sem nenhum sintoma, nenhuma alteração à palpação e nenhum fator de risco para câncer de tireoide, a paciente conseguiu descobrir um tumor “no comecinho”.
No fim das contas, foi uma sorte danada ter feito esse ultrassom de tireoide, não foi?
Pior que não… não exatamente!
Explico melhor no texto abaixo, onde vamos discutir um pouco sobre câncer de tireoide, exames de rastreamento e overdiagnosis.
Câncer de tireoide
O câncer de tireoide é uma das neoplasias malignas mais comuns no sexo feminino.
Uma coisa muito interessante sobre o câncer de tireoide é que essa doença nem sempre foi tão comum.
Na verdade, a incidência de câncer de tireoide triplicou nos últimos 20 a 30 anos nos Estados Unidos.
Foi o câncer cuja incidência mais cresceu nas últimas décadas! Passou do oitavo para o quinto lugar entre as neoplasias malignas mais comuns no sexo feminino, em poucos anos.
E uma coisa mais interessante ainda é que, apesar dessa explosão de diagnósticos, a mortalidade por câncer de tireoide – ou seja, o número de pessoas que morrem todos os anos por causa desse tipo específico de câncer – continua sendo exatamente a mesma de há 3 décadas.
Não é esquisito?…
E esse não é um fenômeno limitado apenas aos Estados Unidos.
A história é ainda mais esquisita na Coreia do Sul.
Todo mundo sabe que os sul-coreanos adoram tecnologia. Além de fabricar muitos televisores e celulares, a Coreia do Sul é um dos países com maior número de aparelhos de tomografia e ressonância magnética por habitante. E usa bastante esses aparelhos!
Em 1999, o governo da Coreia do Sul passou a incentivar programas de rastreamento populacional de diversos tipos de câncer – inclusive de câncer de tireoide, usando ultrassonografias de rotina.
O resultado: a incidência de câncer de tireoide na Coreia do Sul aumentou 15 vezes em uma década!
O câncer de tireoide passou a ser o tipo de câncer mais comum entre sul-coreanos.
E a mortalidade por câncer de tireoide na Coreia do Sul? Deve ter diminuído, não é? Pegando o câncer no comecinho…
Pois é. A mortalidade por câncer de tireoide na Coreia continuou exatamente a mesma de há 15 ou 20 anos atrás.
A mesmíssima. Idêntica!
OVERDIAGNOSIS ( sobrediagnóstico )
O aumento dramático na incidência de uma doença, enquanto ao mesmo tempo a mortalidade permanece inalterada, é uma combinação patognomônica de overdiagnosis.
Embora muita gente nunca tenha ouvido falar de overdiagnosis, este termo tem sido usado na literatura médica desde, pelo menos, 1955.
Define-se overdiagnosis (ou, em português, “sobrediagnóstico“) como a realização de diagnósticos excessivos e desnecessários. É quando rotulamos pessoas como pacientes, sem que isso resulte em quaisquer benefícios concretos para elas – e às vezes, até, incorrendo em riscos.
Ocorre quando diagnosticamos como doenças alguns problemas ou anormalidades que, na verdade, não vão causar mal nenhum ao paciente. Também é overdiagnosis a inclusão de experiências comuns da vida das pessoas em definições superampliadas de doenças.
E, ao tentar investigar mais a fundo ou tratar essas alterações que erroneamente interpretamos como doenças, expomos nosso paciente aos riscos de mais exames (muitos deles invasivos) ou de efeitos adversos de tratamentos (sem um benefício claro).
O overdiagnosis talvez seja uma das maiores epidemias da Medicina moderna – embora ainda muito pouco reconhecida.
Overtesting, overdiagnosis e overtreatment
O overdiagnosis tem tudo a ver com outro fenômeno comum na Medicina atual: o overtesting.
Overtesting é a solicitação de exames em excesso. É quando pedimos mais exames que o necessário para aquele paciente ou aquela situação específica.
Todos sabem que, quanto mais exames são feitos, maior a probabilidade de encontrar alguma anormalidade.
Dizem que, se você fizer 20 exames em alguém, pelo menos um dos exames vai dar um resultado anormal – mesmo que o indivíduo em questão seja completamente saudável!
Quanto mais sensível o exame, maior a chance de encontrar alguma alteração. Exames de imagem modernos, como a tomografia computadorizada ou a ressonância magnética (mas também o ultrassom de tireoide) podem encontrar alterações tão pequenas quanto 1 ou 2 mm de diâmetro.
O problema é que a imensa maioria dessas microanormalidades é uma cicatriz de algum processo antigo ou uma variação anatômica sem importância clínica nenhuma!
Guarde bem o seguinte fato:
Nem todo achado de exame é doença!
O que infelizmente acontece (muito) é que esses minúsculos achados de exame (geralmente sem importância) são interpretados como doença, ou como suspeita de alguma doença grave.
Aí o paciente quase sempre acaba sendo submetido a mais testes, para “investigar melhor”.
Por isso é que o overtesting colabora para o overdiagnosis, que, por sua vez, pode implicar em mais overtesting, e por aí vai.
Não esqueça que muitos desses testes adicionais – biópsias, por exemplo – são invasivos e se associam a risco de complicações (veja a infeliz história do Dr. William Casarella). Sem falar do custo dos exames adicionais e do estresse vivido pelo paciente. Tudo isso, para investigar um achado que provavelmente não iria causar dano. Ou seja: sem benefício algum ao paciente!
Outro risco aqui é o overtreatment. Overtreatment é a indicação de tratamentos em excesso, muito mais do que os que teriam potencial comprovado de benefício naquele paciente ou situação.
Uma belíssima iniciativa que tenta combater o overtesting e o overtreatment em Medicina é a Choosing Wisely.
Se você ainda não conhece a Choosing Wisely, vale a pena ver do que se trata: acesse aqui o site da Choosing Wisely Brasil.
Mas por que tanto câncer de tireoide?
O aumento exponencial do número de casos de câncer de tireoide nas últimas décadas ocorreu às custas da maior detecção de carcinomas papilíferos pequenos, com menos de 1cm de diâmetro, também conhecidos como “microcarcinomas”.
Esses microcarcinomas não são palpáveis, portanto só são detectados em exames de imagem.
E este é o “x” da questão: o uso de exames de imagem explodiu nos últimos 20 a 30 anos.
Pessoas de meia-idade que vão ao cardiologista têm uma chance enorme de ganharem uma tomografia de coronárias ou uma ultrassonografia de carótidas, por exemplo.
Submetidos a esses exames altamente sensíveis, cerca de 20% a 70% (metade!) dos adultos da população geral vão ter pelo menos um nódulo tireoidiano detectável. A imensa maioria desses nódulos (>95%) não é doença.
Mas não é bom detectar câncer cedo?
Depende: pode ser bom, se for um câncer que vai fazer mal para o paciente!
No caso da tireoide, não é bem assim. A maioria dos microcarcinomas de tireoide nunca vai causar qualquer prejuízo ao paciente.
Para entender isso, precisamos chamar a atenção para um fato curioso: nem todo câncer se comporta como câncer.
Um patologista de Boston já havia chamado a atenção para esse fato em 1947, ao comentar como os critérios diagnósticos para câncer poderiam variar de um patologista para outro:
A pegadinha é que nem todo câncer diagnosticado pelo patologista (ao microscópio) vai ter um comportamento agressivo e fatal (na vida real).
Microcarcinomas papilíferos de tireoide são um belo exemplo desse fato.
Um estudo realizado no Japão acompanhou centenas e centenas de pacientes com microcarcinomas de tireoide por vários anos, sem tratamento algum, para ver o que acontecia. Resultado: em 10 anos, menos de 10% desses tumores cresceram, e menos de 2% apresentaram metástases à distância. Quando os tumores cresciam ou davam metástases, aí então o paciente era tratado. E os resultados foram ótimos. Nenhum paciente morreu de câncer de tireoide.
Estudos clássicos da década de 70 já mostravam que pelo menos 20% dos pacientes que faleciam por qualquer motivo e eram encaminhados para autópsia apresentavam focos de câncer papilífero na tireoide – desde que o patologista procurasse bastante.
Na verdade, os pacientes podem estar tendo muito mais prejuízo do que benefícios ao detectar incidentalmente um pequeno câncer diferenciado de tireoide.
O tratamento padrão do câncer de tireoide é cirúrgico (tireoidectomia total ou subtotal), seguido muitas vezes de radioiodoterapia.
Esses tratamentos têm um risco não desprezível de complicações perioperatórias e quase sempre cursam com hipotireoidismo, requerendo a necessidade de acompanhamento e reposição de hormônio tireoidiano por toda a vida, com todos os custos e o estresse emocional para o paciente.
De 15.000 sul-coreanos tratados de câncer de tireoide no começo dos anos 2000, 11% evoluíram com hipoparatireoidismo e 2% com paralisia de corda vocal.
Tudo isso para tentar detectar e tratar uma “doença” que, se ignorada, não iria representar nenhuma ameaça à qualidade ou à duração da vida em 90% ou mais dos pacientes afetados!
Será que precisaríamos operar todos esses pacientes com microcarcinoma?
Indo mais longe: se nem temos tanta certeza da necessidade de tratar esses microcarcinomas, será que precisamos diagnosticá-los?…
Conclusões
Overdiagnosis é um dos problemas mais sérios da Medicina moderna, tendo em vista seus custos financeiros imensos e o alto risco de prejuízos ao paciente por diagnóstico e tratamento excessivo sem benefícios comprovados.
Para prevenir e minimizar o overdiagnosis, precisamos de mais conhecimento.
Precisamos saber melhor a história natural das doenças.
Precisamos entender quais achados de exames podem ser apenas acompanhados sem que isso resulte em qualquer dano ao paciente.
Precisamos entender quais são os fatores que incentivam o overdiagnosis e como combatê-los.
Precisamos de ferramentas diagnósticas melhores, com maior especificidade, que identifiquem apenas alterações que realmente causem danos ao paciente – ou, então, precisamos aprender a interpretar melhor nossos exames imperfeitos.
Precisamos envolver mais os pacientes nas decisões sobre estratégias de rastreamento e detecção precoce de doenças.
Precisamos ter mais segurança que nossas definições de doenças vão se basear, de fato, em quais grupos de pessoas provavelmente terão benefícios clínicos decorrentes de tratamento.
Talvez um bom começo fosse pensar duas vezes antes de solicitar exames altamente sensíveis em pessoas assintomáticas sem fatores de risco.
Assim ajudaríamos a interromper essa cascata tão comum hoje: overtesting, que resulta em overdiagnosis, que resulta em overtreatment.
Ultrassom de tireoide, por exemplo, não é para ser usado como exame de rotina!
A Endocrine Society recomenda que a ultrassonografia só seja realizada se houver anormalidades à palpação da tireoide, ou, eventualmente, na investigação da causa de um hipertireoidismo (mas não do hipotireoidismo).
O American College of Radiology, inclusive, não recomenda que se peça ultrassom de tireoide em pacientes de baixo risco que encontraram nódulos tireoidianos em exames de imagem feitos por outros motivos, a não ser que os nódulos sejam grandes ou tenham aspecto suspeito.
Se não respeitarmos essas indicações e sairmos por aí pedindo ultrassom de tireoide pra todo mundo (como aconteceu na Coreia do Sul), provavelmente estaremos fazendo mais mal do que bem à população que atendemos.
E estaremos infringindo um dos primeiros preceitos hipocráticos:: “primum non nocere” (antes de tudo, não faça o mal).
Pense bem: seu paciente precisa mesmo desse exame?
Para saber mais:
Brodersen J et al. Overdiagnosis: what it is and what it isn’t. BMJ Evidence-Based Medicine, 2018.
Ahn HS et al. Korea’s thyroid-cancer “epidemic” – screening and overdiagnosis. New England Journal of Medicine, 2014.
Welch HG. Overdiagnosed: making people sick in the pursuit of health. Boston: Beacon Press, 2011.
Autor: Leandro Arthur Diehl
Você pode referenciar o artigo acima usando o Digital Object Identifier (Identificador de Objeto Digital) – DOI.
DOI: 10.29327/823500-57
Olá! Gostaria de parabenizá-lo pelo texto. Quanta lucidez sua escrita traduz! Tenho insistido frequentemente nesse mesmo posicionamento e alimento sinceras esperanças de que a geração atual e as próximas consigam transformar a realidade de tantos “over”, enquanto o raciocínio clínico e a humanização da nossa profissão nos escapa.
Muito obrigado pelas suas palavras tão gentis, Renata! Compartilho das suas esperanças. Um forte abraço,