Você já ouviu alguma dessas frases?

“Ele foi mandado para casa porque não tem mais o que fazer!”

“O médico deu três meses de vida, agora é só esperar.”

“Ela foi desenganada, já não tem mais jeito.”

Infelizmente é comum ouvir esse tipo de comentário, seja da equipe de saúde ou da população em geral.

Dois principais fatores geram essas falas: desconhecimento e falta de comunicação.

Desconhecimento, pois sempre há o que fazer para um paciente.

E falta de comunicação, pois quem passou as notícias a essas famílias não teve o cuidado de checar o entendimento, revisar o que foi falado, estabelecer um plano de cuidado que contemple as necessidades do paciente e de sua família.

A participação da família e a autonomia da pessoa em questão são fundamentais para manejar os cuidados de fim de vida.

Precisamos treinar nosso raciocínio clínico para essas situações!

Por isso, continue lendo para entender a importância dos cuidados paliativos, quem deve prestar esse cuidado, quais pacientes são elegíveis, quais os principais erros em cuidados paliativos – e muito mais!

 

A importância dos cuidados paliativos

 

Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), mais de 20 milhões de pessoas precisam de tratamento paliativo todos os anos, no mundo inteiro.

No entanto, somente 10% dos que precisam de cuidados paliativos acabam recebendo esse tratamento. Ou seja: 90% ainda não contam com a abordagem paliativa ao apresentarem uma doença potencialmente ameaçadora da vida!

A definição de Cuidado Paliativo que a OMS traz é a seguinte:

E aqui já começam a surgir as dúvidas: quem deve fazer e onde deve ser feito o cuidado paliativo? Quem deve receber esse tipo de cuidado? Quando começar a pensar em paliar algum paciente?

Cuidados paliativos: um exemplo

Traremos a Sra. Jandira para exemplificar. Organizaremos nosso raciocínio usando o formato ReSOAP, já comentado em um post anterior:

Identificação: Jandira, 55 anos, casada, católica, mora com o esposo e duas filhas, e o terceiro filho mora com a neta na casa ao lado. Trabalhava como zeladora em uma escola. Gosta muito de se arrumar.

S# Paciente queixa-se de dor (escala visual analógica – EVA = 9) em hemitórax direito há um dia, do tipo queimação, com dificuldade para respirar. Piora do estado geral desde que descobriu um câncer de colo de útero há 6 meses, já em estágio avançado. Está em uso de 1g de Dipirona 6/6h, com controle insatisfatório da dor.

Após ser medicada com morfina por hipodermóclise para alívio da dor, dona Jandira também demonstrou preocupações sobre situação financeira, voltar a caminhar sozinha, limpar a casa, ter apetite e levar a filha mais nova na escola. Relata angústia, choro fácil e insônia. Não sente mais vontade de se arrumar. Não tem outras comorbidades, nega história familiar positiva para câncer, nega alergias e cirurgias prévias. Nega tabagismo e etilismo.

O# Regular estado geral, descorada, depletada, afebril, emagrecida. 

Peso: 37kg; Pressão arterial 80x50mmHg.

Orofaringe sem hiperemia ou placas, ausência de linfonodomegalias.

Ausculta pulmonar com murmúrio vesicular diminuído.

Ausculta cardíaca: bulhas rítmicas hipofonéticas sem sopros audíveis.

Abdome escavado, sem massas palpáveis, ruídos hidroaéreos diminuídos.

Dor à palpação superficial de arcos costais à direita com hiperemia local difusa, sem pápulas ou vesículas.

Membros superiores e inferiores com sarcopenia, sem edema, pulsos filiformes.

A# Fratura de costela? Herpes-zoster? Controle inadequado da dor oncológica?

Câncer de colo de útero avançado

Cuidados paliativos

Depleção e caquexia oncológica

Sintomas depressivos

P# 1. Adequo analgesia – ampliação para opioides, redução do intervalo das tomadas e doses de resgate se necessário. Deixo laxativo via oral.

2. Prescrevo hidratação via oral (pactuamos água de coco por melhor aceitação) e via hipodermóclise agora.

3. Solicitada radiografia de tórax e arcos costais para o retorno.

4. Realizada escuta ativa e conversa sobre entendimento da gravidade da doença, expectativas, medos e ansiedades. Ofereço psicoterapia.

5. Levo caso para discussão em equipe multiprofissional e construção de Projeto Terapêutico Singular.

6. Coloco a equipe à disposição para a paciente e família – para dúvidas e intercorrências.

7. Planejamos reavaliação em 24 horas (observar controle da dor, possível evolução de lesões de pele, impactos da conversa sobre terminalidade).

Quem deve cuidar deste paciente?

Como vimos, a assistência paliativa deve ser planejada em equipe (não se faz cuidado paliativo sozinho).

 

Todo profissional de saúde, mesmo sem formação específica, deveria conhecer os princípios do cuidado paliativo, ser sensível ao reconhecer pacientes elegíveis e atender com integralidade em qualquer serviço que estiver.

A assistência à saúde, no Brasil, é realizada em rede organizada e hierarquizada, através da Atenção Básica, Pronto Atendimento, ambulatório de especialidades, hospitais secundários e terciários, Unidade de Terapia Intensiva, Serviço Ambulatorial Médico de Urgência (SAMU).

O paciente pode percorrer qualquer um desses pontos de atenção a qualquer momento, e as equipes devem estar preparadas para reconhecer, respeitar e cuidar desses pacientes.

Quais pacientes são elegíveis para cuidados paliativos?

Devem ser considerados para receber este cuidado especial todos os pacientes com as seguintes características:

  • Sem perspectivas de tratamento curativo;
  • Com rápida progressão da doença e expectativa de vida limitada;
  • Com intenso sofrimento (de qualquer natureza);
  • Com patologias crônicas múltiplas e dependência funcional importante;
  • Com problemas e necessidades de difícil resolução, que exigem apoio específico, organizado e interdisciplinar.

É interessante destacarmos que cuidados paliativos não são apenas para quem tem câncer (um dos principais campos onde o cuidado paliativo é desenvolvido).

Existem diversas doenças incapacitantes, limitantes, de prognóstico difícil, que também exigem essa atenção.

São exemplos as doenças cardiovasculares, pulmonares, neurológicas, infecciosas e gástricas, com apresentação grave e crônica, com necessidades de difícil resolução devido a sua intensidade, mutabilidade, complexidade e impacto individual ou familiar.

Quando iniciar os cuidados paliativos?

 

Os pacientes têm necessidades diferentes. Alguns podem precisar de cuidados paliativos por algumas semanas; outros, por meses ou anos.

Mas, de maneira geral, quanto mais precoce o encaminhamento para a equipe de cuidados paliativos, melhor! Melhor o vínculo; melhor a compreensão integral da pessoa; melhor o entendimento de suas necessidades, sonhos, desejos, anseios, metas, planos de vida, e melhor o planejamento das ações e cuidados.

Por isso, devemos treinar nosso raciocínio para identificar o quanto antes os pacientes com possível indicação de cuidados paliativos.

Quais são os principais erros em cuidados paliativos?

Alguns erros são muito comuns, como, por exemplo:

  • Trabalhar apenas com o prognóstico biológico e não com o prognóstico biográfico da pessoa;
  • Não ouvir com atenção e não estar disponível;
  • Não ser honesto ao passar informações para a pessoa e sua família; por exemplo, fazer falsas promessas de que “tudo vai ficar bem”;
  • Não tratar os sintomas físicos adversos que causam desconforto;
  • Tratar apenas os sintomas físicos, sem considerar o sofrimento mental, social, psicológico e espiritual;
  • Não respeitar as vontades do paciente e da sua família;
  • Realizar intervenções sem explicar as possibilidades, riscos e necessidades;
  • Evitar assuntos difíceis;
  • Não deixar a pessoa falar e não demonstrar interesse pelo problema que ela apresenta.

Como cuidar do paciente em cuidados paliativos?

Em equipe, deve-se elaborar um plano de cuidado compartilhado e minucioso, que deve envolver, principalmente, os seguintes itens:

  1. Abordagem da dor: a dor é considerada o quinto sinal vital” e é extremamente comum nos pacientes paliativos. Deve ser sempre avaliada, quantificada e tratada adequadamente, fazendo o uso correto dos analgésicos simples, anti-inflamatórios (avaliar contraindicações), corticoides e opioides. A morfina, por exemplo, está disponível pelo Sistema Único de Saúde na maioria dos estados, e deve ser usada para alívio e conforto. Lembrar das opções para controle de dor crônica: antidepressivos (tricíclicos, inibidores seletivos da recaptação de serotonina/noradrenalina), anticonvulsivantes, análogos do GABA, procedimentos como aplicação de toxina botulínica, quetamina, bombas de infusão, adesivos de opioides, enfim: individualizar e priorizar o manejo da dor aguda e crônica.
  2. Manejo de náuseas e vômitos: são sintomas que causam grande desconforto e pioram a qualidade de vida do paciente. Para isso, devem-se prescrever antieméticos (ondansetron, dimenidrato, metoclopramida, bromoprida, domperidona) de horário, desmistificar medos e inseguranças, verificar hábito nutricional e ingesta hídrica.
  3. Manejo da constipação (ou diarreia): lembrar que os opióides causam constipação! Portanto, ao prescrevê-los, sempre associar um laxativo. Avaliar diarreia persistente e corrigir possível causa; se não for possível, tratar (ex: loperamida).
  4. Manejo do soluço e da sialorréia: para soluços, considerar clorpromazina e haloperidol. Introduzir líquidos frios. No controle da sialorréia, além de avaliação multiprofissional e correção da possível causa, pode-se tentar o uso de escopolamina (via oral ou gel tópico em região retroauricular).
  5. Alterações do sono: a inversão do ciclo sono-vigília é comum. Pode ocorrer insônia ou hipersonia, e devemos avaliar possíveis causas de base (sintomas ansiosos, comorbidade psiquiátrica, efeito colateral de medicação, higiene do sono, abuso de substâncias).
  6. Alimentação: considerar a importância do papel alimentar na vida da pessoa e da família, pois envolve prazer, interação social, crenças, hábitos, aspectos religiosos e experiências traumáticas prévias. Anorexia e perda de peso são comuns e devem ser abordadas de forma multiprofissional.
  7. Cuidados com dispositivos e intervenções invasivas: sempre priorizar a autonomia do paciente: discutir alternativas, pesar riscos e benefícios, estabelecer boa comunicação com o paciente e a família desde o início em relação a quais dispositivos serão utilizados – ou não – quando houver necessidade.
  8. Saúde espiritual: envolve atitudes, crenças, sentimentos, práticas, cultura, objetos, anseios. Para tanto, deve-se buscar pessoa qualificada e apta a realizar esta avaliação, e sempre incluí-la no plano de cuidado.
  9. Abordagem familiar: é fundamental entabular uma conversa honesta e clara com a família periodicamente, trazendo a importância da autonomia do paciente e cuidando do cuidador da forma mais integral possível.
  10. Aspectos sociais: questões sociais são tão cruciais quanto os sintomas físicos, portanto devemos tratá-las de forma holística. O envolvimento de uma assistente social na equipe pode ser de grande valia para abordar essas questões.

Quando terminam os cuidados paliativos?

O trabalho da equipe não se encerra com a morte do paciente.

O cuidado pós-óbito e o manejo do luto também fazem parte do cuidado, já que a equipe acaba criando um grande vínculo e uma parceria com a família.

É responsabilidade da equipe dar continuidade ao cuidado dos familiares após o óbito.

Qual o papel da equipe de saúde?

Resumindo, o papel da equipe de saúde inclui:

  • Acompanhar a pessoa e sua família, com base em suas necessidades;
  • Fornecer atenção integral, acessível e equitativa;
  • Garantir a continuidade do cuidado;
  • Prover uma comunicação clara, aberta e honesta;
  • Possibilitar uma reflexão ética sobre as atitudes;
  • Promover a participação ativa do paciente e da família na tomada de decisões, priorizando a autonomia da pessoa;
  • Oferecer educação profissional continuada para fornecer os melhores cuidados possíveis baseados em evidências científicas.

Como tornar-se especialista em cuidados paliativos?

No Brasil, podem optar pela especialização em Medicina Paliativa os médicos que já tiverem especialização (pré-requisito) em: Anestesiologia, Oncologia, Cirurgia de cabeça e pescoço, Clínica médica, Geriatria, Medicina de família e comunidade, Medicina intensiva, Neurologia e Pediatria. Já existem residências médicas em Medicina Paliativa em diversos serviços brasileiros, como o Hospital de Amor (Barretos/SP), Servidor Público Estadual e HC/FMUSP (São Paulo/SP), INCA (Rio de Janeiro/RJ), Hospital Regional de Sobradinho/DF, IMIP (Recife/PE), dentre outros.

Conclusões

Não esqueça: indicar cuidados paliativos não quer dizer que não há nada mais a ser feito pelo seu paciente!

Sempre há o que fazer para melhorar as condições de vida das pessoas!

E você, já se deparou com uma situação semelhante à da Sra. Jandira?

Sente-se preparado para ajustar seu raciocínio clínico diante de pacientes elegíveis ao cuidado paliativo?

 


PARA SABER MAIS:

Academia Nacional de Cuidados Paliativos (ANCP). Manual de Cuidados Paliativos. 2ª edição. São Paulo: ANCP, 2012.

Gusso G, Lopes JMC, Dias LC. Tratado de Medicina de Família e Comunidade: Princípios, Formação e Prática. 2ª edição. Porto Alegre: Artmed, 2018.

Autora: Beatriz Zampar

Você pode referenciar o artigo acima usando o Digital Object Identifier (Identificador de Objeto Digital) – DOI.

DOI: 10.29327/823500-88