Nas nossas publicações, falamos muito dos processos do raciocínio clínico diagnóstico que ocorrem dentro da cabeça do médico: sistema dual, etapas do raciocínio, heurísticas e vieses, causas de erros.
Só que é cada vez mais evidente que conhecer os processos mentais do médico é importante, mas não é suficiente para entender como são tomadas decisões em Medicina.
É preciso levar em conta, também, o que acontece fora da cabeça do médico e ao redor dele!
É preciso situá-lo num contexto.
É aí que entra a situatividade.
Embora análises sociológicas tenham sido usadas para entender o contexto do trabalho do médico, elas não se aplicam de maneira imediata ao raciocínio clínico, e seu uso pode até ser prejudicial na aprendizagem (veja o box ao final do artigo); por isso, julgamos mais adequado o uso da situatividade.
Raciocínio clínico e situatividade
A revista Diagnosis, um periódico científico dedicado ao estudo de como se fazem diagnósticos em Medicina, recentemente publicou uma edição especial sobre essa questão da situatividade – algo que queremos compartilhar com você!
Por definição, a situatividade é um conjunto de modos de analisar o contexto externo à mente do médico e que influenciam seu modo de pensar.
Estudamos com muito cuidado essa edição da Diagnosis para apresentar aqui algumas ideias capazes de potencializar nossas habilidades de aprendizagem, diagnóstico e raciocínio. Esperamos que vocês gostem!
A "fórmula do raciocínio clínico"
O modelo mais usado para entender o raciocínio clínico, este que temos tratado, baseia-se na Teoria do Processo Dual e na Teoria do Processamento de Informações. Essas teorias, combinadas ao conhecimento das etapas do processo (tais como palavras-chave, resumo do caso, geração de hipóteses), dão origem a uma “fórmula do raciocínio clínico”. Este é um modelo robusto, que explica bem como os médicos pensam e ajuda a turbinar a aprendizagem e a prática.
Só que esse modelo não inclui os fatores externos ao médico: tudo o que acontece ao seu redor e que pode influenciar seu pensamento.
Por isso, expandir nossa visão para também abarcar esses fatores externos, usando a situatividade, nos ajudará a entender ainda melhor como tomamos decisões.
Muitos desses fatores não estão sob nosso controle direto, mas podemos ficar mais atentos à sua influência.
Se você já tem um pouquinho de experiência, sabe o que é tentar fazer uma ausculta cardíaca num ambiente barulhento, ou como é buscar informações se o prontuário não está disponível ou está desorganizado. Obviamente o risco de erros diagnósticos é maior nessas situações!
O médico, o paciente - e algo mais
A situatividade propõe que todo processo de raciocínio clínico envolve a interação de três elementos: o paciente, o médico e o meio.
Já sabemos que as características do paciente e as do médico podem influenciar a performance diagnóstica.
Um paciente pode ter uma apresentação bastante típica de uma doença comum, enquanto outro pode ter uma variante ou uma doença rara.
Um médico pode ter muita experiência em diagnosticar insuficiência cardíaca, mas nem tanta para hipertensão pulmonar. Dermatologistas são bons para diagnosticar doenças da pele, enquanto pneumologistas são melhores para doenças do pulmão.
Essa é a especificidade do caso, e é meio óbvio!
Mas também pode ocorrer algo diferente: o mesmo médico, vendo pacientes com apresentações semelhantes (ou seja, o mesmo caso), pode chegar a diagnósticos diferentes.
Esta é a especificidade do contexto, algo que não é tão evidente e que depende de influências externas ao médico.
Se fôssemos tentar entender esse fenômeno usando o modelo inicial do raciocínio clínico (olhando apenas o que acontece “dentro da cabeça” do médico), poderíamos pensar que, em uma das vezes, o profissional não teve capacidade ou preparo para, simplesmente, pensar bem.
A situatividade, por sua vez, nos ajuda a entender a influência do meio nessas diferenças.
Pensando com o exterior: cognição social
Para entender melhor a situatividade e as influências do meio, entram em campo as teorias cognitivas sociais, que são quatro:
- Cognição situada
- Cognição distribuída
- Cognição corporificada
- Psicologia ecológica
Sim, são muitas teorias, então vamos ilustrá-las de forma prática:
Elon Musk e a cognição situada
No ano 2000, o bilionário Elon Musk procurou um hospital na Califórnia com um quadro inespecífico de febre, dor abdominal, náuseas e vômitos.
O quadro havia iniciado após uma viagem de lua-de-mel para a África e o Brasil. De achados positivos, tinha somente anemia e plaquetopenia discretas e, devido a alterações mínimas no líquor, foi tratado como meningite asséptica.
Nos primeiros dias, ele melhorou discretamente, mas logo evoluiu com piora importante. Seus médicos não sabiam o que ele tinha.
Por sorte, um médico de outro serviço, que estava de passagem por ali naquele dia, ficou sabendo do caso. Ele mandou iniciar imediatamente o tratamento para malária, que depois foi confirmada.
Pura sorte: Musk sobreviveu.
Graças a esse médico visitante, hoje, temos os carros elétricos da Tesla e os foguetes reaproveitáveis da SpaceX!
É possível, sim, apontar falhas no raciocínio dos primeiros médicos, mas também é possível enxergar o contexto, que não ajudou no início: não há malária na Califórnia!
A teoria da cognição situada assume que o raciocínio clínico e muitos erros diagnósticos são fruto de interações dinâmicas entre indivíduos e o meio.
No caso, o erro inicial poderia ter sido evitado se tivesse havido interações melhores entre os médicos e o conhecimento médico disponível (algum aplicativo de diagnóstico diferencial poderia ter sido usado para gerar melhores hipóteses), ou com outros médicos experientes em doenças tropicais, ou com protocolos de diagnóstico e tratamento de malária se estivessem disponíveis.
Ou seja: em outro contexto, o diagnóstico certo poderia ter sido feito.
Embora o ideal fosse que os médicos tivessem um raciocínio excelente o tempo todo e em qualquer situação, não é sempre assim – e o contexto tem que ajudar.
A cadeia da sobrevivência e a cognição distribuída
Um cenário conhecido: ocorre um acidente, o serviço de emergência é acionado e tem início uma sequência de ações coordenadas e protocolares: segurança da cena, atendimento sequencial, estabilização, transporte, acionamento do hospital. Depois: reavaliações, exames, imagem, centro cirúrgico, reserva de sangue, UTI.
Essa cadeia de sobrevivência é uma extensa rede de cognição distribuída. O diagnóstico e o tratamento estão distribuídos entre os vários indivíduos e sistemas, que devem agir de maneira sinérgica e coordenada para garantir o melhor resultado.
Qualquer elo falho nessa corrente compromete o resultado final de toda a cadeia.
Pense com as mãos: cognição corporificada
Percepção – Raciocínio – Ação – Percepção…
É esse ciclo que ocorre quando estamos usando nossos 5 sentidos.
Não basta saber a descrição de um som cardíaco ou pulmonar. É preciso treinar, auscultar várias vezes até… incorporar isso.
O mesmo com as manobras que envolvem palpação. Será que eu seria capaz de avaliar bem uma mama, próstata? Fiz isso poucas vezes, e há muito tempo.
Nas áreas cirúrgicas e obstétricas, de modo especial, poderíamos dizer que esse raciocínio é do tato ou motor, ou, melhor ainda, sensoriomotor – uma memória que permite avaliar, por exemplo, a apresentação de um feto (e tomar a atitude mais adequada).
São mente, corpo e ambiente conectados e prontos para diagnóstico e tratamento por meio de alças de ação–percepção.
Ambiente poluído e psicologia ecológica
Um lugar conturbado (por exemplo: um pronto-socorro) é um ambiente poluído, cheio de sons, estímulos, correrias. Será que nosso pensamento se comporta da mesma maneira ali e em um local mais calmo?
Claro que não!
Acontece que, se considerarmos o raciocínio clínico na visão “dentro da cabeça”, podemos atribuir erros e dificuldades a um processo mental ineficiente, quando, na verdade, o profissional está simplesmente sobrecarregado e impossibilitado de pensar corretamente.
Na visão da psicologia ecológica, diagnosticamos e tratamos nossos pacientes por meio de interações complexas com o meio:
- O ambiente oferece oportunidades para o diagnóstico correto (sinais e sintomas clínicos);
- O médico traz os efetores, que são: conhecimento, habilidades e aptidões (ou atitudes).
A atenção e a intenção moldam essa interação.
Como isso funciona? a situatividade em Um exemplo clínico
No nosso Caso Clínico #5: A ferramenta errada, comentamos um caso em que um idoso procura atendimento por dor lombar e apresenta alterações à ausculta e radiografia pulmonares sugestivas de pneumonia ou congestão. Seguindo o protocolo de sepse recém-instituído no hospital, ele colheu exames que descartaram sepse. No dia seguinte, porém, ele piorou e acabou evoluindo a óbito após alguns dias, apesar do antibiótico. O paciente de fato não tinha sepse – mas tinha pneumonia.
No artigo, avaliamos o caso do ponto de vista do raciocínio “na cabeça”.
Agora vamos analisar esse caso usando a situatividade. Veja como ficaria a visão da psicologia ecológica:
Havia oportunidade para o diagnóstico: a apresentação clínica inicial não era tão rica, mas era sugestiva de pneumonia. Havia a intenção do profissional de fazer o diagnóstico, mas esta foi moldada pela intenção institucional de descartar sepse. Isso manteve sua atenção focada em um único aspecto. Também havia a questão de um efetor deficiente: o conhecimento. Na implementação do protocolo de sepse, o treinamento dos profissionais possivelmente não abordou as limitações dos testes, nem o fato de que descartar sepse não descarta uma infecção.
O mesmo caso também pode ser analisado pelos outros tipos de cognição social que citamos:
Na situada, temos a interferência do contexto: um paciente é admitido em pronto-socorro e avaliado conforme um novo protocolo de sepse. Aqui, o contexto atrapalhou o desempenho do médico.
Na distribuída, avaliamos a coordenação do cuidado pela equipe: pode ter havido falhas na comunicação entre os médicos e também na avaliação de outros profissionais.
Por fim, na corporificada, vemos a importância de uma ausculta pulmonar bem-feita e correta, ainda que a queixa inicial fosse outra.
Os três “I”s da mente
Com esta discussão sobre situatividade, esperamos ter deixado claro para você que nossa mente não funciona de forma isolada, sozinha, fechada em uma cápsula.
Muito pelo contrário: pensamos, reagimos e tomamos decisões dentro de um meio que nos influencia.
Uma dica para lembrar das teorias que vimos é pensar nos 3 “I”s da mente! Nossa mente é:
- Incorporada (a mente interage com o corpo);
- Imersa (em um ambiente); e
- Interage (com um universo mais amplo).
Sendo assim, nosso desempenho cognitivo depende não só de nossos conhecimentos, habilidades e atitudes, mas também de influências contextuais, como, por exemplo:
- situacionais: relacionados ao profissional (experiências prévias, cansaço, sono) e ao local de trabalho: se é um setor de urgência ou não, o tempo disponível para consultas, número de interrupções etc.;
- adjacentes: são fatores mais associados ao paciente, como sua idade, sexo, raça, história passada, sintomas associados etc.
System thinking e tecnologia
Complexo, não é mesmo?
Agora que nossa visão já está expandida pela situatividade, podemos ver o grande sistema em que estamos imersos.
Este é o system thinking, ciência que analisa o funcionamento de um sistema complexo vendo as partes agindo de acordo com o resultado final.
Um ponto importante é também a relação entre as pessoas e a tecnologia. Um princípio básico indica que a performance total final resulta da interação entre ambos.
Outro ponto importante é que a melhora de um elemento apenas, com a exclusão do outro, não melhora o processo, mas, sim, aumenta a probabilidade de danos imprevisíveis. Logo, para melhorar a performance diagnóstica, não adianta só treinar os profissionais ou só melhorar a tecnologia. É preciso que haja a otimização de todo o conjunto.
CONCLUSÕES
É fundamental compreender os processos mentais do raciocínio clínico diagnóstico (a parte que ocorre “dentro da cabeça” do médico) – afinal, há todo um mundo em nossas mentes.
Mas também há outro mundo lá fora! E esse mundo é cheio de estímulos e limites, que podem influenciar nosso pensamento e nossas probabilidades de erro diagnóstico.
Fica aqui o nosso conselho: se quiser ser um diagnosticador de excelência, aprenda e pratique a “fórmula do raciocínio clínico”, mas também use a situatividade para olhar ao seu redor e entender de que maneiras o mundo pode influenciá-lo.
Esse é um aprendizado para a vida toda!
E a Sociologia?...
Análises sociais ou sociológicas têm sido aplicadas como tentativa de abordar o problema dos contextos na prática médica. No entanto, seu escopo não é o que nos interessa para o estudo do raciocínio clínico, como estudamos aqui.
Para Gilberto Freyre, a Sociologia da Medicina “é a aplicação de critérios e métodos sociológicos de análise e de interpretação de processos sociais, de relações interpessoais e de relações intergrupais […] pela etiologia e pela ecologia sociais de doenças […] pelas relações entre médicos e enfermos, entre enfermos e suas famílias, entre médicos e famílias e ambientes socioculturais de enfermos, entre médicos e comunidades e aquelas suas instituições […]”
Esse tipo de abordagem pode ser até contraproducente, se aplicada ao momento em que se dá o raciocínio clínico. Nesse momento, uma breve análise de algum contexto relevante ao caso pode ser suficiente.
Já a exploração do tema social, num sentido mais amplo, é a posteriori, e não necessariamente só pelo médico. O efeito deletério dessa abordagem sobre a aprendizagem se dá ao sobrecarregar a memória de trabalho dos estudantes, ao adicionar etapas que, na prática, não ocorrem.
PARA SABER MAIS:
Graber, M.L. Progress understanding diagnosis and diagnostic errors: thoughts at year 10. Diagnosis, 2020.
Diagnosis. Volume 7, issue 3. Special issue: Situativity: A Family of Social Cognitive Theories for Clinical Reasoning and Error. 2020.
Freyre, G. Sociologia da Medicina. São Paulo: É Realizações, 2009.