Nosso caso clínico deste mês foi traduzido e adaptado do boletim Medical Malpractice Insights, publicado pelo Dr. Charles A. Pilcher. Leia o caso e faça as suas hipóteses! Embaixo do relato do caso, seguem os nossos comentários.

Um homem de 69 anos, hipertenso, estava jogando boliche uma noite quando apresentou um mal-estar súbito e acabou desmaiando. Foi levado ao pronto-socorro, onde chegou não-responsivo, com hemiparesia à esquerda e um episódio de vômito. Sua pressão arterial (PA) era de 71/49mmHg, mas melhorou após infusão de volume.

Uma hora depois do desmaio, ele recobrou a consciência. Nessa ocasião, ele também apresentou disfasia e amnésia retrógrada, mas estas melhoraram em minutos, bem como sua hemiparesia.

Eletrocardiograma, radiografia de tórax, tomografia de crânio e troponina foram relatados como normais.

O emergencista diagnosticou “acidente isquêmico transitório (AIT) com síncope” e o internou para um clínico geral, solicitando também avaliação cardíaca e neurológica.

caso clínico - monitor - raciocínio clínicoNa manhã seguinte, o cardiologista o avaliou e repetiu o eletrocardiograma e a troponina, que continuavam normais, e julgou que “não era um problema cardíaco”. As anotações do cardiologista e do clínico geral (que só o viu à tarde) faziam referência apenas à “síncope”, sem qualquer diagnóstico diferencial e sem qualquer menção do episódio de hipotensão ou dos sintomas neurológicos prévios.

O paciente então ficou sentado no leito, à espera da avaliação do neurologista para determinar se ele podia ser dispensado para casa. Sua única queixa era uma dor torácica leve ocasional.

Só no começo da noite a enfermeira do setor conseguiu contatar o neurologista por telefone. Com base no relato da enfermeira, o neurologista decidiu que a “síncope” do paciente podia ser investigada ambulatorialmente.

No caminho para casa, o paciente desmaiou novamente e morreu no carro.

A necropsia revelou uma dissecção aguda de aorta torácica tipo A com tamponamento cardíaco e obstrução parcial da artéria braquiocefálica.

Comentários

Este caso ilustra um diagnóstico perdido devido a múltiplos problemas, relacionados tanto ao processo de raciocínio clínico diagnóstico como também a falhas importantes do sistema:

 

Problema 1

O principal determinante de erro diagnóstico neste caso, na nossa opinião, foi um erro cognitivo na etapa da formulação do problema clínico deste paciente. Em geral, após uma boa coleta de dados (história e exame físico), a próxima etapa é definir uma boa representação, ou resumo do caso, e a partir daí estabelecer, de maneira clara e bem-delimitada, qual é o problema clínico.

problema clínico é aquilo que vai guiar toda a investigação e o manejo do paciente, a partir da avaliação inicial. Lembre-se que, cada vez mais, o paciente é cuidado por uma equipe ou um sistema, e não por um único profissional isolado. Muitas vezes a comunicação entre os vários membros da equipe depende das anotações em prontuário.

Portanto, se você estabelecer que o problema clínico do paciente é “síncope”, todo o raciocínio que a equipe vai desenvolver a partir desse ponto vai seguir o padrão da avaliação de síncope. Se você estabelecer que o problema clínico é “AIT”, a avaliação do paciente vai seguir os guidelines de AIT. Em outras palavras, o problema clínico determina a direção futura de todo o cuidado do paciente. Isso ilustra a importância da definição mais exata possível do problema clínico.

O saudoso Dr. Larry Weed, já em 1971, alertava para a importância da definição exata do problema clínico no prontuário, como forma de guiar toda a investigação e tratamento dos pacientes internados em hospitais americanos! Você pode ver o que ele falava sobre isso CLICANDO AQUI (vídeo em inglês).

Neste caso, o médico do pronto-socorro definiu “AIT com síncope” como o problema clínico do paciente. “Síncope” seria uma definição incompleta, pois na síncope quase nunca há perda de consciência prolongada ou sintomas neurológicos residuais. “AIT” já abarcaria os déficits neurológicos transitórios que este paciente apresentou, mas talvez também não fosse suficiente para explicar todos os achados do paciente, pois não costuma haver hipotensão importante em episódios de AIT.

Então, qual seria o problema clínico mais representativo neste caso?

Para definir o problema clínico, voltamos à fase do resumo do caso. Um bom resumo do caso aqui seria o seguinte:

E aqui a hipotensão arterial surge como um achado importante, e um possível divisor de águas. Sabemos que episódios de isquemia cerebral aguda (AVE ou AIT) costumam se apresentar com níveis pressóricos elevados (hipertensão), como tentativa fisiológica de compensar o baixo fluxo para áreas específicas do SNC. Então, a hipotensão deste paciente surge como um elemento estranho, que não encaixa no nosso “script” de AIT. Pode ser que ele tenha tido primeiro a hipotensão arterial, levando à queda da perfusão cerebral e à síncope. Pode ser que a dissecção de aorta tenha causado uma obstrução transitória do tronco braquiocefálico, causando a síncope e a PA baixa (caso esta tenha sido aferida no braço esquerdo).

Além disso, revisando o caso, fica evidente que a hipotensão deve ter sido se instalado abruptamente, pois este paciente não devia estar jogando boliche com uma PA de 71/49mmHg!

Sendo assim, uma boa definição do problema clínico deste paciente seria:

“Hipotensão aguda com síncope e AIT”

E aí o enfoque da investigação seria outro, pois haveria a necessidade de buscar por possíveis causas de hipotensão aguda grave associada a sintomas neurológicos agudos.

Dissecção aguda de aorta é uma delas.


Problema 2

Além da falha em delimitar adequadamente o problema clínico deste paciente, também houve falha em transmiti-lo aos outros médicos. Apesar de o emergencista ter anotado “AIT com síncope”, o cardiologista, o clínico geral e o neurologista que viram este paciente no dia seguinte parecem ter se preocupado apenas com a “síncope”.

Houve nitidamente uma falha de comunicação entre o médico que fez a primeira avaliação no pronto-socorro e os demais médicos que conduziram o paciente posteriormente. Esta falha de comunicação pode ser considerada como um erro de sistema.

O ideal seria que o médico que solicitou a avaliação do cardiologista e do neurologista tivesse contato direto com eles (ou pelo menos deixasse anotações mais claras e completas em prontuário) para que os especialistas soubessem quais foram suas hipóteses e dúvidas específicas.

caso clínico - comunicação entre profissionais - raciocínio clínico

O momento de transferir a responsabilidade pelos cuidados de um paciente de um médico para outro (por exemplo, numa passagem de plantão) é crucial. Falhas da comunicação nesse momento podem causar danos graves ao paciente. Uma ferramenta interessante para melhorar a comunicação entre médicos na passagem de plantão é o I-PASS. Usando um modelo padronizado para transmitir todas as informações importantes na passagem de plantão, observou-se uma redução de 30% na frequência de eventos adversos associados à má comunicação entre médicos (Starmer et al, 2014). (Você pode consultar e solicitar o material usado nesse estudo CLICANDO AQUI.)


Problema 3

Os médicos que o avaliaram no dia seguinte não se preocuparam em colher uma história clínica completa diretamente do paciente, e basearam todas suas condutas no problema clínico anotado em prontuário. Portanto, estes médicos cometeram um erro em relação à coleta de dados, confiando demais nas informações incompletas e no problema clínico potencialmente inadequado que estavam anotados em prontuário.

Esse erro pode ser classificado como um “viés de autoridade” (confiar cegamente nas informações recebidas, sem questionamento), e também como um viés do tipo “efeito moldura” (a forma como as informações são apresentadas tem impacto sobre o raciocínio). Uma vez que o paciente foi apresentado aos médicos seguintes como uma “síncope”, isso foi tudo o que eles viram. (CLIQUE AQUI se quiser ler mais sobre os vieses cognitivos.)

Uma história clínica bem feita e um exame físico completo poderiam ter feito toda a diferença do mundo para este paciente. Um dos médicos poderia ter detectado assimetria dos pulsos ou diferença de PA entre os membros, sugestivos de dissecção da aorta.


Problema 4

No relato deste caso, embora a radiografia de tórax tenha sido descrita como “normal” no laudo do radiologista, há referência a uma imagem sugestiva de um mediastino alargado na radiografia. Este é outro exemplo do viés de autoridade: se alguém falou que a radiografia é normal, nem preciso ver a radiografia, pois confio cegamente no especialista que emitiu o laudo.

No entanto, laudos radiológicos podem estar errados! A frequência de laudos radiológicos incorretos, na literatura, gira em torno de 5% dos casos (Berner & Graber, 2008). Essa taxa deve ser maior em situações de urgência, de sobrecarga de trabalho e de falta de dados clínicas completos (como num pronto-socorro lotado).

Não acredite piamente no laudo do radiologista: veja a imagem, sempre que possível, com seus próprios olhos. Se algum dos médicos que atendeu este paciente tivesse percebido o mediastino alargado na radiografia, é provável que a hipótese de dissecção aguda de aorta tivesse sido feita.

Este também pode ser considerado um erro relacionado ao sistema, se por algum motivo os médicos tiveram dificuldade de acesso às imagens radiológicas.


Problema 5

Os guidelines não foram seguidos neste caso. Mesmo de posse de um problema clínico potencialmente inadequado ou incompleto, é possível que o diagnóstico correto tivesse sido feito neste caso se os médicos simplesmente tivessem seguido os protocolos de investigação.

Vejamos, por exemplo, “síncope”: eletrocardiograma e ecocardiograma são os primeiros testes recomendados para um paciente como síncope inexplicada. Se o problema clínico, por outro lado, fosse “AIT”, a pesquisa da causa do AIT (recomendada em todos os casos) também incluiria pelo menos um ecocardiograma. Em ambos esses casos, o ecocardiograma provavelmente teria detectado o aneurisma dissecante de aorta.

Veja abaixo o algoritmo para avaliação da síncope, traduzido e adaptado dos guidelines da American Heart Association:

Fluxograma síncope - American Heart Association - raciocínio clínico


Mais alguma coisa?

Além destes 5 problemas principais, outros fatores também contribuíram para este erro diagnóstico:

Raciocínio clínico 1dor torácica que o paciente relatou no dia seguinte à síncope, apesar de leve e ocasional, poderia ter sido uma pista para investigar possíveis causas de dor torácica associada a hipotensão e síncope – mas foi simplesmente ignorada;

Raciocínio clínico 2A avaliação do neurologista, que foi determinante da alta hospitalar do paciente, foi feita por telefone, com base apenas nas informações transmitidas pela enfermeira, e sem contato direto com o paciente – inadmissível!

Raciocínio clínico 3Mesmo estando estável no dia seguinte à síncope, este paciente não deveria ter ido de alta. Em pacientes com síncope que permanecem sem causa definida após avaliação clínica + eletrocardiograma + ecocardiograma, deve-se proceder a uma estratificação de risco para determinar se a investigação adicional pode ser feita ambulatorialmente ou deve ser feita dentro do hospital. Este paciente apresentava pelo menos 2 fatores que o colocavam numa categoria de alto risco – síncope durante exercício e PA sistólica <90mmHg no pronto-socorro – e por isso deveria ter ficado internado para avaliação. Se o paciente tivesse evoluído com piora dentro do hospital (e não no caminho para casa), talvez a dissecção de aorta pudesse ter sido detectada e tratada rapidamente, embora mesmo assim o prognóstico fosse ruim.


Conclusões

Não há como fugir deste fato essencial: a história clínica e o exame físico completos (ou, pelo menos, tão completos quanto é possível obter no pronto-socorro) são as pedras fundamentais de todo e qualquer diagnóstico. As informações da história e do exame físico fornecem informações suficientes para o diagnóstico correto em cerca de 70-80% dos casos, em todos os ramos da Medicina. Busque sempre a excelência: seja minucioso, curioso e detalhista!

Busque a excelência - raciocínio clínico

“A fruta bem no alto do pé é onde está toda a doçura que você busca nas frutas azedas de baixo.”

Como vimos, a formulação do problema clínico mais adequado para cada paciente é uma etapa-chave para guiar todo o processo de raciocínio clínico diagnóstico. Para isso, monte um resumo do caso contemplando todos os sintomas “âncora” do caso, e então formule o problema clínico.

Nunca esqueça que a comunicação eficiente entre os profissionais que cuidam de um mesmo paciente pode ajudar a prevenir erros. Existem ferramentas validadas para melhorar essa comunicação, tais como o I-PASS.

E, finalmente, use as evidências disponíveis. A adesão aos guidelines existentes pode ajudar a oferecer a investigação e o tratamento mais eficientes para o seu paciente – muito embora todas as recomendações da literatura sempre precisem ser interpretadas à luz da experiência do médico e das preferências e características individuais de cada paciente.


PARA SABER MAIS:

Autores:

  • Fabrizio Almeida Prado
  • Leandro Arthur Diehl
  • Pedro Alejandro Gordan

Você pode referenciar o artigo acima usando o Digital Object Identifier (Identificador de Objeto Digital) – DOI.

DOI: 10.29327/823500-9