Esta é a continuação do Caso Clínico Interativo #6: Uma evolução inesperada, enviado pelo Dr. Bruno Farnetano e publicado no nosso site em 11 de março de 2020.

Confira o que aconteceu com esta paciente, o diagnóstico final e os nossos comentários!

CONTINUAÇÃO DO CASO

A dermatologia biopsiou as lesões de pele, mostrando apenas púrpura não inflamatória, inespecífica.

Após uma ampla revisão do prontuário desta paciente, os residentes que a atenderam descobriram que ela havia tido uma internação por meningite bacteriana cinco anos antes, e havia recebido inúmeros tratamentos para estrongiloidíase ao longo dos últimos 20 anos.

Uma pesquisa na internet sobre púrpura periumbilical revelou vários relatos de casos que mostravam esse tipo de lesão de pele em pacientes com estrongiloidíase disseminada.

Optou-se por iniciar o tratamento empírico da paciente com albendazol e ivermectina.

Três dias depois, a paciente mostrou uma melhora clínica e radiográfica importante (veja nova radiografia abaixo):

Outro achado interessante foi a remissão das lesões de pele, três dias após o início dos antiparasitários:

diagnóstico final

Estrongiloidíase disseminada.

Comentários do Dr. Bruno Farnetano:

Veja abaixo um vídeo em que o Dr. Bruno Farnetano, que nos enviou esse caso, comenta essa história interessante:

Nossos comentários sobre o caso:

Na paciente do Dr. Bruno Farnetano, é interessante notar que dois fatores levaram à reconsideração da hipótese diagnóstica inicial de exacerbação de DPOC.

Um foi a falta de resposta clínica ao tratamento instituído; outro foi o surgimento de um sinal clínico incomum (púrpura periumbilical).

Bastou isso para ele e seu colega lançarem mão da melhor estratégia antierro: a pergunta “o que mais pode ser?

E o que eles  fizeram?

Correram para o Google!

Já falamos em um post anterior sobre como o uso do Google pode ser um aliado em casos de diagnóstico difícil – desde que você faça buscas do jeito certo! Um dos segredos para o uso eficiente do Google como ferramenta de diagnóstico diferencial é escolher, entre os diversos sinais e sintomas do paciente, aquele que é menos comum – e jogar esse dado no mecanismo de busca! (Clique aqui para conhecer outros segredos para usar o Google para diagnóstico.)

Neste caso, era a púrpura periumbilical. Uma rápida pesquisa e – voilà! – vários relatos desse tipo de lesão, em associação com quadros graves de estrongiloidíase.

Mesmo assim, eram apenas relatos de casos, mostrando que essa era, afinal de contas, uma apresentação rara. Será que era isso que esta paciente tinha?

Próximo passo: a necrópsia do prontuário.

Esta é uma outra técnica que pode ajudar muito nos casos de diagnóstico difícil. Levantar todos os atendimentos anteriores, identificando os dados relevantes da história e dos exames complementares, e colocá-los em ordem lógica e/ou cronológica, pode ajudar a revelar muito mais informação útil sobre quem é o paciente e que tipo de problemas ele já apresentou.

Revisando o prontuário desta paciente, os residentes encontraram vários tratamentos anteriores para estrongiloidíase. E uma internação por meningite bacteriana – que também pode ser complicação dessa mesma parasitose!

O diagnóstico definitivo veio com o tratamento empírico:  apenas três dias após o início dos antiparasitários, a paciente teve melhora importante, inclusive com o desaparecimento das lesões.

Sobre a estrongiloidíase:

A estrongiloidíase é uma parasitose intestinal endêmica em países tropicais e subtropicais, inclusive no Brasil. As larvas filariformes, presentes no solo, podem penetrar a pele e deslocar-se para o intestino delgado, passando pelos pulmões.

Na maioria dos casos, a infecção é assintomática ou oligossintomática. Nos casos sintomáticos, pode haver manifestações intestinais, pulmonares e/ou dermatológicas.

As manifestações intestinais são variáveis, podendo incluir distensão abdominal, flatulência, cólica, anorexia, náuseas e vômitos, até diarreia, esteatorreia e desnutrição.

Entre as alterações pulmonares, pode-se observar desde quadros leves com tosse seca e dispneia aos esforços até quadros graves com broncoespasmo e edema pulmonar, geralmente associados a eosinofilia severa (síndrome de Loeffler), podendo haver confusão com outros quadros respiratórios como a asma alérgica grave ou a exacerbação de DPOC, como na paciente deste caso.

Quanto às lesões de pele, são geralmente causadas pela penetração ou migração das larvas no tegumento, e podem apresentar-se como urticariformes, maculopapulares, serpiginosas ou linear pruriginosa migratória (“larva currens”). A infecção aguda pode resultar numa erupção pruriginosa no local em que as larvas penetram a pele (“ground itch”).

Púrpura cutânea é uma manifestação rara da estrongiloidíase disseminada ou da síndrome de hiperinfecção. Resulta da migração maciça de larvas do Strongyloides stercoralis através dos vasos intradérmicos. Uma série de casos mostrou que a localização característica dessa púrpura é periumbilical e na porção proximal dos membros inferiores, como visto nesta paciente. Provavelmente, essa localização decorre da migração de larvas através das veias mesentéricas para a circulação portal.

Veja imagem abaixo, de um relato de caso publicado no JAMA Dermatology:

COMPLICAÇÕES DA ESTRONGILOIDÍASE

Duas apresentações extremamente graves da estrongiloidíase são a síndrome de hiperinfecção e a estrongiloidíase disseminada.

A síndrome de hiperinfecção ocorre em pacientes com alta taxa de autoinfecção, ou seja, quando o próprio indivíduo infectado elimina larvas infectantes que voltam a infectá-lo, no próprio intestino ou pelo contato das fezes com a mucosa perianal. Os sinais e sintomas decorrem da intensa migração das larvas pelos órgãos normalmente envolvidos no ciclo de autoinfecção (trato digestório, pele e pulmões). Além de dor abdominal, anorexia, náuseas, vômitos e diarreia, esses pacientes também costumam apresentar febre, lesões de pele e o quadro pulmonar já descrito, eventualmente complicado por hemoptise e síndrome da angústia respiratória.

Em indivíduos imunodeprimidos por algum motivo (por exemplo, em uso crônico de corticoides), o parasita pode se disseminar para múltiplos órgãos (inclusive fora do ciclo de autoinfecção) e causar sepse secundária à translocação de bactérias intestinais.

SOBRE O AUTOR DESTE CASO:

O caso clínico interativo desta semana foi enviado pelo Dr. Bruno Farnetano, professor de Clínica Médica da Universidade Federal de Viçosa (UFV) e da UNIFAGOC, em Minas Gerais. Agradecemos ao Dr. Bruno pelo envio deste caso tão interessante!

PARA SABER MAIS:

Belga S et al. Disseminated strongyloidiasis. JAMA Dermatology, 2019.