Autor: Dr. Peter Elias

Em muitas discussões, o processo diagnóstico é tratado como se fosse um evento à parte, a segunda de três etapas numa cascata: a obtenção de informações, a formulação de um diagnóstico, o início de um tratamento.

Eu acho que é um erro tratar o diagnóstico de uma maneira tão limitada, reduzindo a um evento isolado o que na verdade é um processo iterativo e inerentemente complexo.

Durante meus 40 anos na Atenção Primária, eu observei que essa tendência a enquadrar o diagnóstico dessa maneira estreita, como um evento ao invés de um processo, é particularmente comum nas discussões sobre erros diagnósticos naqueles contextos onde se dá o cuidado a situações agudas e urgentes, tais como a emergência ou a terapia intensiva.

Essas discussões geralmente enfocam a seleção e a interpretação de testes específicos para determinar a necessidade de intervenções específicas. Este traçado eletrocardiográfico permite o diagnóstico e o tratamento de um infarto agudo do miocárdio? Este doppler de membros inferiores justifica iniciar o tratamento para um tromboembolismo pulmonar?

O mesmo enquadramento também é comumente observado em discussões de problemas cirúrgicos. Esta ressonância justifica uma cirurgia no ombro? Esta tomografia apoia a indicação de uma laparotomia?

No entanto, clínicos com vasta experiência na Atenção Primária inevitavelmente acabam aprendendo que a melhor e mais eficiente maneira de fazer um diagnóstico acurado e útil é usando o tempo a seu favor, observando a evolução do paciente ao longo de múltiplas consultas, e não durante um único encontro.

O tempo como ferramenta diagnóstica

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Na Atenção Primária, e em especialidades que lidam com enfermidades crônicas, ou pacientes com múltiplas comorbidades, ou com queixas vagas e mal definidas, o médico raramente se encontra na frágil situação de ter apenas uma única imagem, uma fotografia clínica passageira do paciente e do seu problema. (Eu usei de propósito a expressão “fotografia clínica” ao invés de “quadro clínico” porque eu estou me referindo mesmo a uma imagem instantânea, com poucas informações, em um contexto com limitações de tempo e de recursos.)

É incomum que o médico de família, ou o clínico da Atenção Primária, tenha que tomar decisões diagnósticas ou terapêuticas importantes com base apenas nessa fotografia clínica, tirada em um único encontro com o paciente.

Muito pelo contrário: para o profissional que atua com Atenção Primária ou com doenças crônicas, a maioria dos diagnósticos é feito observando a evolução do quadro clínico do paciente durante o decorrer do tempo, ou seja, assistindo à clássica história natural da doença.

A Medicina não tem um teste específico para diagnosticar ansiedade, depressão, a maioria das causas de lombalgia, a maioria dos casos de cefaleia, ou a imensa maioria dos pacientes que se queixam de fadiga, dispepsia, tontura ou tosse.

Para estes e outros problemas comuns da Atenção Primária, o processo diagnóstico mais adequado segue mais ou menos o seguinte roteiro:

  • Há alguma coisa que eu não posso deixar passar, nesta primeira consulta, porque se esse diagnóstico não for feito imediatamente, o paciente vai estar em risco?
  • Se há, o que eu posso fazer para determinar a presença ou ausência desse diagnóstico?
  • Se não há, como eu posso lembrar esta lista de possíveis diagnósticos, para que eu possa voltar a ela em qualquer momento, caso haja mudanças na apresentação deste paciente?
  • Quais são as causas mais prováveis para o que eu estou ouvindo e vendo aqui?
  • Há alguma dessas causas prováveis que eu possa confirmar ou descartar de maneira fácil e eficiente?

O paciente como participante ativo

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A esta altura, é essencial envolver o paciente como um participante ativo no processo de tomada de decisões. Esse envolvimento começa com uma conversa honesta e franca com o paciente sobre as suas possibilidades diagnósticas, o leque de tratamentos possíveis e os desfechos para a sua saúde com e sem tratamento – bem como sobre o nosso grau de certeza ou incerteza sobre esses diagnósticos.

A próxima etapa no processo consiste em explorar, junto com o paciente, com qual parte (ou partes) do quadro clínico o paciente está mais preocupado, incomodado ou receoso. Dependendo do paciente e do contexto, a prioridade pode ser entender qual é o problema – ou seja, obter um diagnóstico. Para outros problemas ou em outros contextos, a necessidade mais premente pode ser escolher um tratamento, ou aliviar um sintoma.

Sem entender o que o paciente quer, nós podemos até amenizar os sintomas ou tratar a doença, mas não conseguimos tratar o paciente!

Nesta etapa, nós já teremos gerado uma lista de possíveis diagnósticos, com severidade, probabilidade, plausibilidade e prognósticos variados.

Nós também já saberemos quais são as preferências pessoais do paciente, pois já teremos perguntado e escutado.

Embora nós já estejamos preparados para tentar estabelecer um diagnóstico, não será tão comum que nós possamos selecionar um teste ou exame específico capaz de confirmar ou afastar nossa suspeita. Ao invés disso, nós vamos precisar definir, juntamente com o paciente, qual dos cursos de ação a seguir será o mais apropriado:

  • Prosseguir na investigação diagnóstica, sem tentar nenhum tratamento por enquanto;
  • Continuar a investigação e simultaneamente tratar os sintomas;
  • Tratar os sintomas e observar como o paciente evolui (aqui é onde estaremos usando a história natural da doença como o nosso “teste”, mesmo que isso não gere um “resultado” dicotômico ou numérico, tal como ocorre com uma sorologia ou glicemia);
  • Não tratar, mas observar o curso da doença, atento a novas informações que possam surgir e esclarecer o quadro, podendo modificar nossa abordagem a qualquer tempo, a depender de como o paciente evolui;
  • Agir por “tentativa e erro”, ou seja, selecionar um possível diagnóstico da nossa lista, prescrever um tratamento para esse distúrbio e observar o resultado. Se não houver uma boa resposta, então iniciar o tratamento empírico para uma segunda ou terceira ou outra possibilidade, até observar alguma melhora.

Não uma foto, mas um filme!

Na minha prática cotidiana, lembro de pouquíssimos pacientes com queixa de dor lombar, dor de cabeça, cansaço, tosse ou febre que tiveram algum “teste” (exame) solicitado já na primeira consulta.

Embora indubitavelmente existam situações na Atenção Primária para as quais seja essencial pedir exames desde o início do processo diagnóstico, a maioria dos problemas que surgem nesse âmbito é mais bem diagnosticada por uma boa história, um exame físico dirigido – e a passagem do tempo.

Não por uma fotografia, mas por um filme!

Duvido sinceramente que, dos 18 ou 20 pacientes que eu atendia todos os dias, mais de 2 precisassem de algum exame complementar imediato para me permitir estabelecer um plano de ação seguro e efetivo, junto com o paciente.

O que eu quero dizer com isso é que enquadrar o processo diagnóstico como a mera interpretação de resultados de testes ou exames complementares é uma definição muito simplista e muito limitada.

O uso e a interpretação de testes só constituem etapas criticamente importantes do processo quando esses testes são realmente peças-chave para o manejo do paciente. Por exemplo: se eu me apresentar em um pronto-socorro hipotenso e pouco responsivo, eu vou querer que os testes corretos sejam solicitados e seus resultados sejam rapidamente e corretamente interpretados.

Entretanto, na perspectiva da Atenção Primária, esse tipo de situação onde os testes são críticos representa apenas uma ínfima fração do amplo rol de problemas observados nesse contexto. A abordagem que se faz necessária neste universo, repleto de doenças crônicas, idosos com múltiplas comorbidades e queixas vagas, não pode ser facilmente extrapolada ou generalizada para as demais áreas de atuação médica.

Sinto-me muito mais interessado em explorar maneiras de melhorar o processo diagnóstico naqueles 90% ou mais de circunstâncias onde a seleção e interpretação de exames complementares provavelmente não será uma etapa fundamental ou definitiva para o diagnóstico.

E, é claro, esse sentimento reflete os meus 40 anos de trabalho na linha de frente da Atenção Primária, onde a ambiguidade faz parte do ar que se respira.

Sobre o autor:

O Dr. Peter Elias é um médico de família americano, já aposentado. Após estudar no Dartmouth College, formar-se em Medicina pela Universidade de Rochester e completar sua residência médica em Madison (Wisconsin), ele adorou cada minuto dos seus 40 anos de atividades na Atenção Primária à Saúde no Maine, onde também foi preceptor da residência de Medicina de Família.

Seus interesses clínicos incluem modificações de estilo de vida, prevenção de doenças, mudanças de comportamento e cuidado à saúde em colaboração com pacientes engajados e autônomos. Participa da diretoria da Society for Participatory Medicine (Sociedade para a Medicina Participativa).

É um esquiador nórdico inveterado e adora fotografia digital, guitarra folk, trabalhos em madeira e autoaprendizagem de novas habilidades ao computador.

De vez em quando, escreve um pouco sobre Medicina e outros tópicos em seu blog: petereliasmd.com.

É casado com Cindy, sua melhor amiga e estrela-guia, com quem tem dois filhos e três netos adoráveis.

Contato: pheski69@gmail.com 

Autor: Peter Elias

Você pode referenciar o artigo acima usando o Digital Object Identifier (Identificador de Objeto Digital) – DOI.

DOI: 10.29327/823500-42