"De quantos médicos você precisa para trocar uma lâmpada? Tanto faz! Eles vão acabar fazendo tudo errado, mesmo..."

Piadinha sem graça, né?

Você, que é médico ou estudante de Medicina, provavelmente não deve ter gostado da piada!

Mas você vai entender um pouco melhor a motivação dessa piada ao ouvir a história por trás dela.

Essa piada é contada por Cal Sheridan, um comediante de 23 anos que mora em Denver, Colorado.

Cal tem paralisia cerebral – por causa de um erro diagnóstico quando ele era um bebê recém-nascido.

A história de Cal Sheridan

to err is human - cal sheridan - raciocinio clinico

Ele nasceu a termo, de uma gravidez de baixo risco, num grande hospital que faz 5.500 partos por ano, em Boise, Idaho.

Com 16 horas de vida, uma funcionária do berçário notou que Cal estava amarelo.

Com 23 horas de vida, a cor amarela estava mais forte. Mesmo assim, ninguém pediu uma dosagem de bilirrubina, uma tipagem sanguínea ou um teste de Coombs.

Cal teve alta com 36 horas de vida, com icterícia da cabeça aos pés. Nenhuma orientação sobre icterícia foi dada aos pais.

No quarto dia de vida, Cal começou a mamar com dificuldade e ficou muito “molinho” e sonolento. Estava amarelo como um canarinho.

A mãe, Sue Sheridan, ligou para o hospital onde Cal nasceu e contou essa história para alguém do berçário. A pessoa do outro lado do telefone perguntou se Sue era mãe de primeira viagem. Era. Disseram a ela que “é assim mesmo”.

Bebês pequenos têm muito sono.”

Insatisfeita, Sue levou seu filho ao pediatra imediatamente. Este notou a icterícia, mas orientou Sue a esperar 24 horas “para ver se ia melhorar”. Não foi pedido nenhum exame.

Só no quinto dia de vida, Cal foi internado e os médicos pediram uma dosagem de bilirrubina. Níveis de bilirrubina acima de 25mg/dL já são considerados perigosos. A bilirrubina de Cal estava 34,6mg/dL. Apesar disso, os pediatras optaram por fazer apenas fototerapia – que não funcionou.

No sexto dia, Cal desenvolveu espasticidade e opistótono, que são sintomas de encefalopatia bilirrubínica aguda.

Ele sobreviveu, mas teve lesões cerebrais irreversíveis.

Com 18 meses de idade, tinha todas as sequelas do kernicterus: paralisia cerebral atetoide, perda auditiva, displasia dentária, desvio do olhar fixo para cima.

Hoje, ele só consegue andar com apoio, tem sialorreia, movimentos involuntários dos membros e fala com muita dificuldade.

Só muito depois do acontecido é que Sue deu-se conta de que o dano cerebral gravíssimo de Cal poderia ter sido prevenido com o diagnóstico precoce e o tratamento adequado (exsanguineotransfusão).

Essa revelação veio quando sua filha Mackenzie nasceu, dois anos e meio depois de Cal.

A menina também teve icterícia com 16 horas de vida. A diferença é que sua bilirrubina foi imediatamente dosada, e ela foi rapidamente tratada com fototerapia.

Mackenzie melhorou rapidamente, não teve complicação nenhuma, e hoje é uma jovem saudável que vive com a mãe e o irmão, em Denver, Colorado.

Erros diagnósticos: um fato isolado?

O mais trágico dessa história é que não é um fato isolado, e nem em incomum.

Em 1999, o Institute of Medicine (hoje, National Academy of Medicine) estimou o número de mortes causadas por erros na assistência à saúde, nos Estados Unidos: 98 mil por ano. Em 2013, essa estimativa foi atualizada: 440 mil mortes por ano.

Isso coloca os erros como a terceira maior causa de morte naquele país, atrás apenas das doenças cardiovasculares e do câncer!

Dessas mortes relacionadas a erros, cerca de 40 a 80 mil decorrem de erros diagnósticos. As demais têm relação com outros problemas na assistência, tais como: infecções hospitalares, quedas, cirurgias inadequadas, úlceras de pressão, trocas de medicação etc.

Grosseiramente falando, o número de mortes decorrentes de erros, apenas nos Estados Unidos, é o equivalente a 8 aviões Boeing 737 lotados caindo todos os dias, sem deixar nenhum sobrevivente! 

Os erros diagnósticos, por sua vez, correspondem a um ou dois aviões por dia.

É muita gente!

Provavelmente, a maioria de nós sofrerá pelo menos um erro diagnóstico durante a vida.

Na própria família de Sue Sheridan, o erro médico de Cal não foi o único.

A história de Pat Sheridan

to err is human - pat sheridan - raciocinio clinico

O pai de Cal, Pat Sheridan, começou a ter muita dor no pescoço aos 45 anos. Um exame de imagem mostrou uma massa de tecido que estava crescendo na sua coluna cervical.

Após a cirurgia, o médico lhe disse que não se preocupasse, pois o tumor “parecia benigno”. OK, tudo resolvido!

Só que, seis meses depois, Pat começou a ter dores ainda piores.

Ao procurar novo atendimento, perguntaram-lhe que tratamento ele vinha fazendo para o câncer no seu pescoço.

Que câncer?”, perguntou Pat, surpreso.

O exame anatomopatológico do tumor removido 6 meses antes mostrava que era uma neoplasia maligna. Um sarcoma de alto grau.

O laudo estava guardado dentro do prontuário de Pat, no hospital onde ele havia sido operado. Mas, até este segundo atendimento, nem o cirurgião nem Pat haviam tido conhecimento do resultado do exame.

Ele havia perdido 6 meses de tratamento – o que pode ter feito muita diferença para um câncer agressivo como o dele.

Pat Sheridan não respondeu à quimioterapia e morreu poucas semanas depois, deixando a mulher e dois filhos pequenos.

Sue chegou a telefonar para o patologista, tempos depois, para perguntar por que ninguém havia sido informado do resultado do exame.

O patologista respondeu, simplesmente: “Não é minha função.” Ele achava que todo mundo já sabia do resultado.

A história de Sue Sheridan

to err is human - sue sheridan - raciocinio clinico

Sue Sheridan, ao ver sua família duplamente vitimada por erros diagnósticos, primeiro ficou arrasada. Depois, experimentou muito medo.

Nunca imaginei que esse tipo de erro pudesse acontecer em um grande hospital, num país desenvolvido como os Estados Unidos!

Ela aprendeu, da pior maneira possível, que médicos erram.

Finalmente, depois de estudar muito a respeito e de ganhar uma noção mais adequada do tamanho do problema, Sue reinventou-se.

Hoje, ela é uma ativista da Segurança do Paciente, um movimento que vem crescendo e ganhando cada vez mais força nos últimos anos.

Uma das mensagens que ela sempre passa, ao falar em conferências médicas e em grupos de pacientes, é que os próprios pacientes podem ajudar a aumentar a segurança dos nossos sistemas de saúde.

O nível de engajamento dos pacientes no seu diagnóstico e tratamento é um dos principais determinantes da qualidade do atendimento. Por isso, os pacientes devem ser encorajados a envolver-se de maneira mais ativa no processo, fazendo mais perguntas e elevando suas expectativas em relação à qualidade do cuidado.

Sue usa a história da sua família para chamar a atenção da sociedade para a epidemia de erros no cuidado à saúde – um problema que apesar de tão grave, é muito pouco reconhecido.

E ela não vai desistir de trabalhar pela conscientização de todos e pela busca de soluções.

Afinal, seu próprio marido, Pat Sheridan, pediu a ela, pouco antes de falecer:

"Nunca desista da Segurança do Paciente."

Nós também não desistiremos, Sue.

errar é humano: um documentário sobre segurança do paciente

A história da família Sheridan é o ponto central de um documentário lançado em 2019, chamado “To err is human” (“Errar é humano”).

O documentário, de 67 minutos, foi dirigido pelo cineasta americano Mike Eisenberg. O diretor tem um interesse de família no tema. Seu pai era o falecido Dr. John M. Eisenberg, que foi um dos primeiros diretores da Agency for Healthcare Research and Quality, a agência do governo americano criada com o objetivo de melhorar a qualidade da assistência à saúde e reduzir o risco de erros médicos.

No documentário, vários médicos, estudiosos e pesquisadores dão suas opiniões sobre as causas da atual epidemia de erros e de quais medidas podem ser tomadas para tentar amenizar o problema.

Dentre as sugestões, uma proposta muito interessante diz respeito à educação médica e à cultura da Medicina. Segundo o Dr. Ashish Jha, da faculdade de Medicina de Harvard, todos os seres humanos cometem erros. A primeira reação de alguém que comete um erro é tentar consertar, rápido, e não contar a ninguém. Essa é uma reação natural, guiada por nossos instintos humanos. No entanto, essa é a cultura errada em relação a erros.

Talvez, uma cultura mais adequada seria a da aviação, por exemplo. Na aviação, erros são discutidos abertamente, sem buscar culpados, mas em busca de soluções. Graças a essa cultura de busca, discussão e prevenção ativa de erros, a aviação é hoje uma das indústrias mais seguras que existem. A Medicina, infelizmente, ainda está muito longe dessa realidade.

A Dra. Tejal Gandhi, do Institute for Healthcare Improvement, afirma que nossa meta não deve ser a ausência de erros (o que é impossível), mas sim a ausência de danos causados por erros. Isto é possível, e já foi obtido em alguns cenários, como, por exemplo, com o uso de simples checklists que já mostraram reduzir a praticamente zero o risco de infecções associadas a cateteres venosos.

O documentário traz, ainda, diversas outras propostas que estão sendo implantadas para prevenir erros diagnósticos e promover a segurança do paciente.

Vale muito a pena assistir!

E você?

Já parou para pensar no que você pode fazer hoje para ajudar a reduzir o risco de erros na sua instituição ou serviço de saúde?

Você pode ser um grande aliado do movimento da Segurança do Paciente e da SEGURANÇA DIAGNÓSTICA!

Saiba mais no site do Instituto Brasileiro de Segurança do Paciente:

https://www.segurancadopaciente.com.br/

Para saber mais:

Eisenberg, Mike (diretor). To err is human: a patient safety documentary. Gravitas Ventures, 2019.

Fox, Maggie. Getting it wrong: everyone suffers an incorrect or late diagnosis. NBC News, 2015.

Sheridan, Sue. Cal Sheridan’s journey with jaundice & kernicterus. Centers for Disease Control and Prevention, 2018.