Uma historinha (infelizmente) muito comum, para ilustrar a questão dos exames complementares desnecessários:

Uma moça saudável vai ao médico para um “check-up”, sem queixa nenhuma, e sai com uma requisição de mais de 40 exames complementares.

Ela acaba gastando mais que seu salário mensal para pagar os exames.

Todos resultam normais!

No retorno, o médico dá uma olhadinha rápida no calhamaço de exames e termina a consulta orientando cuidado com a alimentação, atividade física regular, colocar a vacinação em dia etc.

Ela lembra que há cerca de dois meses, outro médico já havia falado a ela exatamente a mesma coisa – sem pedir exame nenhum.

A moça, então, ficou na dúvida: precisava ter feito todos esses exames?…

exames complementares desnecessarios - raciocinio clinico

O tamanho do desperdício

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765 bilhões de dólares!

Estima-se que esse seja o desperdício de recursos na saúde nos Estados Unidos, todos os anos.

Isso é um terço do total de gastos com saúde!

Dessa montanha de dinheiro jogado fora, 210 bilhões de dólares/ano são desperdiçados em serviços desnecessários. Esta categoria inclui exames complementares desnecessários e tratamentos sem benefícios concretos – estes últimos, muitas vezes, desencadeados pelos primeiros.

Por que os médicos de hoje pedem tantos exames?

Você está preparado para decidir quando um exame é realmente necessário ou não?

A sua faculdade aborda esse tema?

Neste post, vamos falar mais um pouco de exames complementares desnecessários: as causas das solicitações em excesso, o custo e os riscos de fazer exames demais, e quais estratégias podem ajudar a reduzir esse desperdício.

Causas do excesso de exames complementares desnecessários

A Medicina mudou muito nas últimas décadas, e a modernidade trouxe com ela alguns novos desafios que você tem que encarar.

Há pouco, publicamos um post com os 10 exames mais “inúteis” da Medicina e outro, em seguida, falando sobre medicina de valor. (Se você ainda não leu, vale a pena dar uma olhada!)

Vários fatores relacionados à Medicina atual contribuem para o excesso de exames complementares desnecessários.

Confira alguns deles abaixo:

1. O médico

exames complementares desnecessarios - raciocinio clinico - caneta do medico

Você já deve ter ouvido a seguinte “brincadeira”:

– Sabe qual é a tecnologia mais cara da Medicina?

– A caneta do médico.

Assim como na história no começo deste post, a canetada do médico no pedido de exames é, muitas vezes, o procedimento mais dispendioso de toda a cadeia de cuidados com a saúde.

Não queremos apontar culpados, e nem é essa a abordagem deste texto.

Mas precisamos reconhecer que as coisas estão mudando muito rápido. É muito difícil estar atualizado com tudo. É simplesmente impossível ter toda a informação.

Por isso, nós, médicos, precisamos de ajuda!

Para fazer bom uso dos recursos diagnósticos (principalmente aqueles exames novos, reluzentes – e caros), precisamos ter à nossa disposição dados empíricos sobre:

  • Limitações dos exames;
  • “Força” dos exames (principalmente suas likelihood ratios);
  • Custos dos testes diagnósticos;
  • Possíveis danos associados ao seu uso;
  • Suas indicações precisas;
  • Os efeitos populacionais da sua adoção na prática, dentre outros.

Dá muito trabalho procurar por toda essa informação.

Frequentemente, é mais fácil fazer logo a requisição do exame do que ficar considerando se ele é mesmo necessário ou não.

Especialmente se você ganhar dinheiro por pedir esse exame…

2. O sistema de saúde

Dizem que nenhum sistema está quebrado.

Na verdade, cada sistema entrega exatamente o resultado para o qual ele foi desenhado!

E o nosso sistema de saúde não foi tão bem desenhado assim. Criamos nossas instituições e sistemas numa época em que a Medicina era muito diferente.

A remuneração do médico, em geral, é diretamente relacionada ao número de procedimentos que ele realiza, e não ao desfecho do seu trabalho para o paciente.

Quanto mais investigações (consultas, exames) e mais intervenções (visitas, cirurgias) um médico realiza, mais ele ganha.

Não é à toa que a renda média do médico é bem maior em especialidades onde há abundância de procedimentos diagnósticos e terapêuticos (cirurgia, oftalmologia, dermatologia, cardiologia etc.) do que em especialidades onde não há muitos procedimentos (a maioria das especialidades clínicas, pediatria etc.).

Por isso, é comum que existam conflitos de interesse. Seres humanos são movidos a incentivos. E quando o sistema incentiva (financeiramente) o profissional para pedir muitos exames ou indicar muitos procedimentos, é difícil lutar contra isso.

3. O paciente

exames complementares desnecessarios - raciocinio clinico - paciente

O comportamento dos pacientes também pode influenciar diretamente na solicitação excessiva de exames complementares desnecessários.

Infelizmente, temos uma cultura que valoriza o excesso de exames. Muitos pacientes pensam que fazer mais exames é sinônimo de cuidado médico de melhor qualidade.

E isto se reflete no mercado: médicos que pedem muitos exames podem ser percebidos como “mais cuidadosos” ou “mais eficientes”, e ter suas salas de espera mais cheias.

Por isso, é necessária uma boa relação entre o médico e seus pacientes, para que estes entendam que nem sempre pedir muitos exames é a melhor ideia.

4. O advogado

A crescente judicialização da medicina é outro fator importante.

Ninguém quer responder processos na Justiça. Isso causa verdadeiro pavor nos médicos!

Por isso, muitas vezes o médico pede exames complementares desnecessários para “se respaldar”. Assim, se houver algum problema futuro, o médico poderá alegar que “tomou todas as precauções”.

Seguindo esse tipo de raciocínio, muitos profissionais preferem pedir muito mais exames do que seria razoável ou clinicamente indicado.

Afinal, que mal pode haver em pedir exames a mais, não é mesmo?…

Exames demais: mal não faz?

Até agora, falamos dos custos associados ao excesso de exames complementares desnecessários.

No entanto, essa prática também se associa a outros problemas.

Os mais óbvios são relacionados aos exames em si: exames de imagem como raios-x e tomografias expõem o paciente a radiação, que pode causar complicações futuras como neoplasias e infertilidade.

Mas não é só isso. Também há a questão do overdiagnosis e do overtreatment! Pedir exames complementares desnecessários pode fazer com que um paciente saudável seja rotulado (erroneamente) como portador de alguma doença, caso algum desses exames tenha um resultado anormal. E isso pode levar a um tratamento desnecessário – inclusive procedimentos invasivos e cirurgias – sem perspectiva real de benefício para o paciente.

O que nos leva ao do lema da campanha Choosing Wisely: “menos é mais”!

5. outros fatores

Vários outros fatores interferem no uso apropriado ou inapropriado de exames complementares, como resumido na figura abaixo:

Uso apropriado ou inapropriado de exames complementares

Medicina de valor e o uso racional de exames complementares

Tudo isso faz parte do conceito de medicina de valor.

Quando nós, médicos, cultivamos uma mentalidade dedicada à excelência do cuidado com o paciente, isso resulta em ganho para todas as partes. Mas isso requer envolvimento de todos. E exige do médico estar à altura dos desafios modernos.

Nessa mentalidade, encontra-se o fundamento do uso racional de exames complementares.

Mais do que racionar, o que importa é racionalizar: fazer o uso apropriado dos recursos.

Quando se aborda a mera redução de custos, racionamos. Aí há conflito entre o bom e o barato, entre os interesses dos pacientes e os do sistema ou dos médicos.

Mais importante que os custos é o valor!

Se pedimos exames demais, de forma automática, sem individualização, correndo riscos de causar mais danos que benefícios, a um custo excessivo, estamos entregando um cuidado de baixo valor.

Por outro lado, se pedirmos apenas exames que agregam benefício ao paciente, respeitando suas preferências, a um custo razoável, então estaremos oferecendo alto valor.

E se há valor, há integração entre os interesses de todas as partes.

Essa é a abordagem mais ética, e um dos maiores desafios da ética médica atual.

como reduzir exames complementares desnecessários?

Os primeiros estudos sérios sobre estratégias para redução de custos com exames complementares desnecessários já têm cerca de 50 anos.

Desde então, e até hoje, uma das principais estratégias é a educação médica.

Vale lembrar, e é fundamental ter a seguinte visão: não trata-se apenas de redução de custos, mas sim de mudança de mentalidade para a prática de medicina de valor.

Medicina de valor: o melhor cuidado associado à melhor experiência, pelo menor custo possível.

Isso requer educação dos médicos, de maneira programada, estratégica e institucional.

Uma revisão sistemática publicada no JAMA mostrou que há três pontos que contribuem para melhores resultados na educação médica sobre medicina de valor:

  1. Transmissão de conhecimento: são justamente os dados e conhecimentos da lista acima. Eles permitem ao médico trabalhar com mais consciência e fazer escolhas melhores;
  2. Reflexão: elemento importantíssimo no raciocínio clínico, envolve também ter tempo para trabalhar, pensar nas decisões e até conversar com colegas.
  3. Ambiente: o ambiente de trabalho deve estimular o profissional e ajudá-lo a buscar o melhor desempenho em prol dos pacientes. O ambiente envolve também a cultura de trabalho local.

Portanto, educação médica é essencial – mas provavelmente não é suficiente.

Lembre-se que este problema é multifatorial, envolve os hospitais e serviços de saúde, a fonte pagadora (pública ou privada), os profissionais (médicos e outros), os pacientes e atores externos (como a justiça e as expectativas da sociedade).

Então eu faço uma pergunta: será que todas essas partes estão trabalhando em harmonia?

outras estratégias para o uso racional de exames

Como o problema é multifatorial, há outras estratégias a serem empregadas, mais eficazes quando aplicadas em conjunto.

Podemos citar capacitação e engajamento de pacientes, uso de mídias digitais, alertas eletrônicos em prontuário, sistemas que mostram o custo em tempo real da solicitação de exames.

Dois artigos recentes, um em pronto-atendimento (PA), outro em pacientes hospitalizados, mostram o número de exames inapropriados e a redução estimada de custos.

primeiro estudo analisou um programa para redução de exames complementares desnecessários em uma rede de 15 hospitais, com 1.200.000 visitais anuais ao PA. Os seguintes exames foram analisados:

  • Tomografia de crânio (TC) para TCE leve em adultos e crianças;
  • Angiotomografia (angioTC) para TEP;
  • Radiografia (RX) de tórax para condições respiratórias em crianças (asma, laringite, bronquiolite).

Observou-se que apenas 40% das TC para adultos e 62% das RX em crianças foram apropriadas. O limiar diagnóstico (% de exames positivos) para angioTC foi de 9%.

Além disso, um dado bem interessante foi a variação no uso de exames entre os diferentes hospitais. Para RX de tórax, por exemplo, a taxa de sobreuso variou de 9% a 62%.

Os pesquisadores estimaram que, se o limiar diagnóstico da angioTC fosse elevado de 9 para 11%, haveria uma redução de 4.800 tomografias, poupando 3,6 milhões de dólares!

segundo estudo avaliou uma estratégia combinada de educação médica, supervisão intensificada de residentes e mudanças no sistema de solicitação de exames em 4 hospitais holandeses. Houve redução de quase 12% no uso de exames, em especial alguns coletados com muita frequência, sem necessidade.

Além de não ter havido piora nos desfechos clínicos para os pacientes, observou-se uma economia de 1,2 milhão de euros.

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Conclusões

Existem diversas estratégias para reduzir as solicitações de exames complementares desnecessários.

O mais importante é que no centro dessas intervenções deve estar a busca pelo valor e pela integração entre todas as partes interessadas.

Dessa maneira, não surge conflito, mas sim parceria e cuidado de qualidade, sustentável, com o mínimo de danos e custos para todos.

Para saber mais:

Autor: Fabrizio Almeida Prado

Você pode referenciar o artigo acima usando o Digital Object Identifier (Identificador de Objeto Digital) – DOI.

DOI: 10.29327/823500-72