Tivemos 51 respostas enviadas por leitores do blog para o nosso Caso Clínico Interativo #03, publicado na semana passada! As principais hipóteses diagnósticas enviadas pelos nossos leitores foram as seguintes:
Confira abaixo o diagnóstico final do Caso Clínico Interativo #03, e os comentários sobre o caso!
Resposta do Caso
No começo da internação, foram colhidas diversas sorologias (hepatite B e C, HIV, sífilis, herpes, mononucleose, citomegalovirose, toxoplasmose), que resultaram todas negativas.
Devido à hepatomegalia e à alteração de transaminases, foram solicitados outros exames hepáticos: bilirrubinas normais, gama-GT 315, TAP 86% com INR normal, KPTT 35,3 (normal até 33). A ultrassonografia mostrou colecistite acalculosa.
Devido à presença de febre e cefaléia progressiva, e ao aparecimento de um discreto estado de torpor, também optou-se por coletar líquor por punção lombar. O resultado foi: hemácias = 9, leucócitos = 52 (linfócitos 80%, neutrófilos 20%), glicose = 67 (normal), proteínas = 68 (normal até 45), cloreto = 125 (normal), bacterioscopia negativa. Após dois dias, a cultura do líquor resultou negativa. O diagnóstico foi meningite linfomonocitária.
O infectologista, refletindo sobre o caso, resolveu fazer uma pergunta ao paciente, que acabou se revelando importante:
“Por que você estava passando permetrina no gado?”
A resposta foi que ele estava fazendo isso porque seus animais estavam infestados de carrapatos.
O paciente foi tratado com hidratação e antibioticoterapia endovenosa com ceftriaxona e doxiciclina. Depois disso evoluiu afebril, com melhora significativa ao longo dos próximos dias (inclusive das lesões de pele). O hemograma, as transaminases e a função renal também melhoraram.
Foram colhidos exames adicionais, que mostraram: microalbuminúria = 326 (normal <30); desidrogenase lática 247 (normal), eletroforese de proteínas com albumina 2,82 (normal >3,5) e com aumento absoluto de alfa-1-globulinas e aumento relativo de alfa-2-globulinas. A B2-microglobulina era de 6.221 (normal até 2.286). A IgG total foi de 648 (baixa), IgA total = 133 (normal), IgM total 38,9 (baixa) e IgE total > 2000 (até 87). FAN e fator reumatoide foram negativos. Um hematologista afastou doença hematológica primária.
As novas sorologias que o infectologista solicitou, ainda durante a internação, foram negativas para leptospirose, para doença de Lyme e para rickettsioses.
Tendo em vista a melhora importante do paciente, optou-se pela alta, mantendo ainda o tratamento em esquema de hospital-dia até completar 14 dias de doxiciclina e 28 dias de ceftriaxona.
Ao final do tratamento, o paciente foi reavaliado no consultório do infectologista. Nessa ocasião, encontrava-se bem, sem qualquer queixa, já tendo, inclusive, retornado às suas atividades habituais.
Para confirmação da sua principal suspeita diagnóstica, o infectologista resolveu repetir a sorologia para rickettsioses, que desta vez resultou reagente (IgG positiva em título 1/64, com IgM não reagente).
Diagnósticos finais:
1) Rickettsiose: febre maculosa
2) Colecistite acalculosa e meningite linfomonocitária secundárias à rickettsiose
Comentários
Inicialmente, o paciente chegou à consulta acreditando que o quadro de lesões de pele, fraqueza e úlceras orais era devido a algum tipo de intoxicação, tendo em vista que ele havia recentemente aplicado permetrina no seu rebanho bovino (sem o uso adequado de equipamentos de proteção individual).
O infectologista, no entanto, foi astuto o suficiente para não confiar demais nessa interpretação do paciente. Ao perguntar sobre o motivo do uso da permetrina, o médico descobriu sobre a infestação por carrapatos – e imediatamente suspeitou da febre maculosa. As lesões de pele, surgindo poucos dias depois do início do quadro sistêmico, e acometendo palmas das mãos, eram bastante características dessa doença.
Fácil?
Não!
Este caso pode ser considerado um verdadeiro desafio diagnóstico, pelas seguintes razões:
Era um paciente idoso, tabagista e etilista, trabalhador rural e sem o hábito de consultar-se com frequência. Esse perfil de paciente pode apresentar patologias ocultas: cirrose hepática, neoplasias, doenças derivadas da exposição a agentes ambientais no meio em que vive (intoxicações, infecções crônicas) e doenças crônicas não diagnosticadas (doença renal crônica ou insuficiência cardíaca, por exemplo). Os exames da entrada demonstravam agressões orgânicas (hepática, renal, hematológica) que atuavam como confundidores.
O quadro inicial, embora relativamente típico de febre maculosa, tinha sinais e sintomas demais – como um quebra-cabeça onde sobram peças, apesar da imagem parecer estar completa. A tendência a seguir a navalha de Ockham (“As entidades não devem ser multiplicadas sem necessidade”) e a sua expoente médica, a Regra de Osler (“Cada doente deve estar limitado a um diagnóstico capaz de explicar todos os seus sintomas”) dificulta a união destes achados clínicos e laboratoriais, o que nos obriga a lembrar do Dito de Hickam (“Um doente pode ter todos os diagnósticos que desejar”). Na prática, é difícil balancear estas regras e o ponto de equilíbrio nem sempre é claro. No nosso paciente foi possível excluir a colecistite como patologia principal, já que sua variante acalculosa pode ocorrer secundariamente a uma infecção, e esta patologia sozinha não explicava todas as manifestações. O mesmo comentário vale para a meningite linfomonocitária, que também pode ser secundária à rickettsiose – e também não explicava todos os achados do quadro. Após realizar a “limpeza” do quadro clínico, excluindo achados derivados da colecistite e da meningite linfomonocitária, restaram apenas os dados diretamente relacionados à febre maculosa.
Além disso, o quadro clínico-laboratorial da febre maculosa tem alguns pormenores bastante interessantes que podem ser verificados desde o seu início neste paciente:
- Alterações renais podem ocorrer na febre maculosa, principalmente nas formas graves. Neste caso, essas alterações também podem ter sido complicadas pela febre e pela depleção (visto que o paciente estava com a ingesta oral prejudicada pelas lesões orais). A hidratação endovenosa foi suficiente para reversão rápida da disfunção renal;
- Alterações hepáticas podem ocorrer na febre maculosa, como elevação de transaminases e colecistite acalculosa;
- Apesar de terem sido discretas, as alterações de TAP e KPTT são comuns em casos de febre maculosa. Se o diagnóstico e o início do tratamento ocorressem numa fase mais tardia da doença, é provável que estas alterações tivessem sido bem mais severas;
- O quadro neurológico típico da febre maculosa inclui cefaleia, torpor e meningite linfomonocitária, que também ocorreram neste caso;
- Úlceras orais não são uma apresentação comum da febre maculosa mas já foram descritas nestas e em outras rickettsioses, de modo que podem ser creditadas à febre maculosa neste caso em particular;
- O quadro teve tratamento instituído precocemente, assim que o infectologista estabeleceu a relação entre a exposição a carrapatos e o quadro clínico do paciente. O início imediato da terapêutica específica com doxiciclina deve ter contribuído para a rápida melhora dos sinais e sintomas do paciente, funcionando como um “teste terapêutico” e ajudando a confirmando a hipótese inicial. Se tivesse havido demora na instituição do tratamento, as manifestações clínicas e laboratoriais poderiam ter sido bem mais intensas e graves;
- A sorologia para Rickettsia rickettsii costuma se tornar positiva apenas 10 a 14 dias após o início do quadro clínico, o que, neste caso, ocorreu apenas após a alta hospitalar. Raramente, ela se positiva a partir do sétimo dia. A opção pela coleta precoce da sorologia, neste caso, foi em virtude do quadro ainda ser relativamente incerto. Se a sorologia inicial resultasse positiva, poderia confirmar a rickettsiose logo no início e guiar a terapêutica. Além disso, a sorologia inicial serviu para comparação posterior, pois espera-se um aumento de 4 diluições no título de IgG para confirmação do diagnóstico. Nos exames colhidos cerca de 30 dias após o início do quadro, houve positividade na titulação de 1/64, a mínima detectável. Ainda assim, acreditamos ser febre maculosa, por dois motivos: não se sabe a titulação inicial, apenas que era negativa, podendo ter ocorrido o aumento de 4 diluições ainda dentro da faixa de negatividade; e também houve a instituição precoce do tratamento, o que pode inclusive causar resultados falso-negativos.
Discussão
As doenças que costumamos encontrar na prática clínica podem ser classificadas da seguinte maneira, em ordem de frequência (das mais freqüentes para as menos freqüentes):
1) Uma apresentação comum de uma doença comum;
2) Uma apresentação rara de uma doença comum;
3) Uma apresentação comum de uma doença rara;
4) Uma apresentação rara de uma doença rara.
Sendo assim, necessitou-se descartar inicialmente patologias mais comuns que a febre maculosa, tais como a sífilis (pelas lesões de pele e quadro neurológico), a hepatite C (que pode cursar com alterações hepáticas e crioglobulinemia, com lesões de eritema nodoso nas pernas), patologias reumáticas e seus overlaps (febre, úlceras orais, lesões cutâneas), síndromes paraneoplásicas, linfomas e outras infecções como as TORCHHS.
Mas, dada a suspeita inicial de febre maculosa, iniciou-se imediatamente a terapêutica com doxiciclina (mesmo antes da confirmação laboratorial), tendo em vista o risco da ocorrência de complicações graves dessa doença.
Febre maculosa
A febre maculosa, causada por Rickettsia rickettsii e transmitida pela picada do carrapato-estrela, é uma entidade curiosa na infectologia (e na medicina em geral) pois, apesar de ser rara no Brasil (o autor só viu 5 casos até hoje, em mais de 10 anos como especialista), é bastante prevalente no meio-oeste americano – onde é chamada de Febre das Montanhas Rochosas (Rocky Mountain Spotted Disease).
Muitos nem sequer sabem que essa é a mesma doença que aqui conhecemos como “febre maculosa”, e que por aqui costuma causar surtos eventuais, ligados a animais como capivaras e outros mamíferos, especialmente nas regiões Sudeste e Centro-Oeste.
Além disso, ela tem apresentação multissistêmica, podendo imitar várias outras doenças (veja post anterior sobre as grandes imitadoras), e pode evoluir com quadros muito graves e levar a óbito.
Dessa maneira, apesar de comum nos Estados Unidos, meca da ciência médica mundial e berço da maioria dos livros-texto de infectologia, na verdade a febre malucosa – ops, maculosa – caracteriza-se como uma ilustre desconhecida: ela figura nas tabelas de diagnósticos diferenciais de livros de muitas especialidades, mesmo que poucos conheçam bem seu quadro clínico e suas complicações.
Conclusões
Apresentamos aqui um caso de febre maculosa, com pronta melhora clínica após a instituição do tratamento adequado (doxiciclina).
Como a apresentação inicial tinha muitos sinais e sintomas, por ter sido complicada com colecistite acalculosa e meningite linfomonocitária, esse excesso de dados pode ter tornado este diagnóstico difícil.
Acreditamos que a pista mais importante neste caso, que acabou conduzindo o infectologista até o diagnóstico correto, foi a epidemiologia (trabalhador rural com exposição recente a carrapatos). E o médico que o atendeu soube escapar da armadilha pronta: o paciente chegou contando apenas que tinha passado permetrina no gado, simplesmente. O pulo do gato foi a pergunta sobre o motivo da aplicação de permetrina. Só aí o infectologista conseguiu estabelecer a relação epidemiológica mais importante, que era com os carrapatos, e não com o veneno!
A curiosidade, e uma anamnese completa, salvam vidas!
Este caso e os comentários foram gentilmente enviados pelo Dr. Luiz Jorge Moreira Neto, médico infectologista formado pela Universidade Estadual de Londrina (UEL), com residência e consultório na cidade de Maringá (PR), onde também atua como docente da UniCesumar.
Agradecemos imensamente ao Dr. Luiz Jorge pelo envio!
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Veja quem foram os leitores que deram as melhores respostas para este caso e ganharam um lugar de destaque no nosso Hall da Fama do Raciocínio Clínico!
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PARA SABER MAIS:
- Kassirer JP, Wong JB, Kopelman RI. Learning clinical reasoning. 2nd ed. Philadelphia: Lippincot Williams & Wilkins, 2009.
- Del Fiol FS et al. A febre maculosa no Brasil. Revista Panamericana de Salud Pública, 2010.
- Para ver que a febre maculosa, apesar de rara, tem que ser lembrada, mesmo no Brasil… Febre maculosa já matou 17 pessoas em São Paulo. Yahoo! Notícias, 2018.
Confira a apresentação inicial deste caso:
Faça o diagnóstico! Caso Clínico Interativo #03
Veja também os Casos Clínicos Interativos anteriores:
Caso Clínico Interativo #01: Apresentação do caso / Resposta do caso
Caso Clínico Interativo #02: Apresentação do caso / Resposta do caso