Na semana passada, publicamos nosso Caso Clínico Interativo #04, sobre uma mulher de 34 anos com quadro de dor abdominal e febre.

Recebemos 97 respostas para esse caso, enviadas por médicos e estudantes de todo o Brasil – e também da Espanha e da República Dominicana!

Veja na nuvem de palavras abaixo quais foram as hipóteses mais comuns entre as enviadas por nossos leitores:

Abaixo, segue a continuação do caso clínico interativo, com o diagnóstico final e os nossos comentários. Ao final, também revelamos quem foram os leitores que deram as 3 melhores respostas e foram para o nosso Hall da Fama do Raciocínio Clínico!

Continuação do caso clínico interativo #04

No pronto-socorro, foram colhidos os seguintes exames:

  • Hemograma: hemoglobina 11,5g/dL, leucócitos 6.300/mm3 (diferencial normal), plaquetas 85.000/mm3;
  • Eletrólitos: sódio 132mEq/L, potássio 3,3mEq/L, cálcio 8,2mg/dL, cloro 98mEq/L, bicarbonato 24mmol/L, glicemia 192mg/dL;
  • Função renal: ureia 10mg/dL, creatinina 0,7mg/dL;
  • Provas hepáticas: AST 159U/L (normal: 8 a 40); ALT 72U/L (normal: 8 a 50); fosfatase alcalina 140U/L (normal: 45 a 150); bilirrubina total 4,6mg/dL (direta 3,4 mg/dL e indireta 1,2mg/dL); proteínas totais 7,4g/dL, albumina 2,1g/dL, INR 1,3;
  • Amilase e lipase: normais;
  • Tomografia computadorizada de abdome e pelve: fígado heterogêneo e nodular, com aspecto de hepatopatia crônica; presença de ascite de moderado a grande volume; esplenomegalia discreta; rins normais, sem linfadenomegalias.

Devido à presença de ascite, foi realizada uma paracentese diagnóstica guiada por ultrassom, que revelou a presença de leucócitos em contagem superior a 250 células/mm3, com predomínio de neutrófilos.

EVOLUÇÃO

Foi iniciada antibioticoterapia empírica com cefotaxima IV, enquanto se aguardavam os resultados da cultura do líquido ascítico. A paciente acabou tendo uma rápida melhora clínica, e estava completamente assintomática dentro de 5 dias de tratamento.

Um diagnóstico formal de cirrose hepática foi fechado, com um score MELD de 21 (indicando uma mortalidade de 20% em 3 anos).

Diagnóstico final:

CIRROSE HEPÁTICA + PERITONITE BACTERIANA ESPONTÂNEA

Peritonite bacteriana espontânea ( PBE )

PBE - caso clínico interativo 4 - raciocínio clínico

Peritonite bacteriana espontânea (PBE) deve ser considerada em todo paciente com ascite secundária a cirrose hepática que apresentar quadro agudo de dor ou distensão abdominal, febre ou alteração do estado mental.

Outros sinais e sintomas de PBE podem incluir diarreia, íleo paralítico, hipotensão, hipotermia, leucocitose, acidose metabólica e insuficiência renal aguda (IRA).

A paracentese diagnóstica deve ser prontamente realizada nesses casos. A presença de leucócitos no líquido ascítico em número superior a 250 células/mm3 confirma a infecção e indica o início imediato do tratamento com antibiótico de amplo espectro.

Uma etapa crítica, no entanto, é distinguir entre uma peritonite bacteriana espontânea associada a cirrose e uma peritonite bacteriana secundária a uma perfuração intestinal. Para isso, a análise cuidadosa do líquido ascítico é uma ferramenta valiosa! Ambas as condições cursam com aumento de leucócitos no líquido ascítico, mas alguns outros achados específicos devem sugerir ao médico uma peritonite secundária a perfuração intestinal:

  • presença de pelo menos 2 dos seguintes: proteínas totais > 1 g/dL, glicose < 50 mg/dL e LDH acima do limite superior normal para o sangue (critérios de Runyon);
  • achado de múltiplos microorganismos à cultura ou bacterioscopia;
  • elevação de CEA ou fosfatase alcalina.

No caso desta paciente, com história de desconforto abdominal há vários meses, vale lembrar que o uso de amoxicilina-clavulanato pode ter contribuído para a piora clínica da última semana. Depois do paracetamol, a associação amoxicilina-clavulanato é a causa mais comum de lesão hepática induzida por droga. Portanto, esse antibiótico deve ser usado com muita cautela em pacientes com doença hepática crônica.

Um último comentário aqui diz respeito à obesidade grave desta paciente, que pode ter contribuído diretamente para este caso de duas maneiras diferentes:

  1. É a causa mais provável da hepatopatia crônica neste caso (depois de afastadas outras causas comuns como hepatites virais, etilismo ou uso de drogas hepatotóxicas). Atualmente, a doença do fígado gorduroso, que é encontrada em mais da metade dos pacientes com obesidade central, síndrome metabólica e diabetes tipo 2, é a causa mais comum de doença hepática crônica em países desenvolvidos.
  2. Deve ter mascarado o aumento do volume abdominal decorrente de ascite e atrasado o diagnóstico correto desta paciente, que vinha há meses com desconforto, náuseas e vômitos sem explicação.
Doença do fígado gorduroso

Não acertou o diagnóstico?

Não fique triste!

Eu também não acertei… Quando tentei resolver este caso, pensei em colangite, pancreatite aguda biliar, gestação ectópica rota, doença inflamatória intestinal e um monte de outras coisas. PBE nem me passou pela cabeça!

Este caso é um belo exemplo de diagnóstico difícil, por vários motivos.

Um deles é que a avaliação do paciente com dor abdominal frequentemente é um tremendo desafio.

O diagnóstico diferencial de dor abdominal é extremamente amplo, e os sinais e sintomas podem ser bastante inespecíficos!

Outro motivo é que a avaliação diagnóstica pode ser ainda mais difícil se o paciente for muito obeso. Pacientes com obesidade grave fazem parte de uma desafortunada agremiação: o clube dos pacientes com diagnóstico difícil!

O clube dos pacientes com diagnóstico difícil

Fazem parte deste clube os pacientes:

  • muito idosos;
  • portadores de múltiplas comorbidades;
  • imunodeprimidos;
  • obesos graves.

uma dica: O Relógio da dor abdominal

Dadas todas essas dificuldades, quero compartilhar com vocês uma dica que encontrei num livro do Dr. John Wiese: a regra do relógio da dor abdominal.

Achei este sistema bem interessante para classificar as possíveis causas de dor abdominal conforme o local do abdome em que a dor é mais importante.

Esta não é uma regra 100% exata, mas pode servir como um mnemônico para ajudar você a lembrar de alguma possibilidade importante que poderia passar “batida” de outra forma.

Funciona assim: imagine que o abdome do seu paciente é o mostrador de um relógio – mas um relógio analógico, daqueles antigos, de ponteiros. (Relógio digital não serve!)

Agora imagine que o apêndice xifoide do paciente está bem em cima do marcador das 12 horas.

Cada hora desse relógio indica um grupo mais provável de causas de dor abdominal.

Portanto, se seguirmos a direção horária, a partir do epigástrio do paciente:

  • 12 horas: hora do almoço! É onde ficam o estômago, o esôfago e o duodeno. Diagnósticos a considerar: esofagite, refluxo gastroesofágico, ruptura do esôfago, gastrite, úlcera gástrica, câncer do estômago, gastroparesia, duodenite e perfuração duodenal.
  • 1 hora: aqui vale a pena pensar em coisas que podem matar o paciente dentro de uma hora, especialmente a dor referida de um infarto agudo do miocárdio (IAM) da parede inferior.
  • 2 horas: nesta localização, deve-se pensar em doenças do baço: esplenomegalia (por leucemia ou linfoma), abscesso ou infarto esplênico.
  • 3 horas: lembre dos 3 órgãos retroperitoneais que podem causar dor referida para o abdome: pâncreas, rins e aorta abdominal. Portanto, aqui o diagnóstico diferencial inclui: pancreatite aguda, pielonefrite, cálculo renal e aneurisma da aorta abdominal.
  • 4 horas: considere doenças do intestino grosso e sigmoide: diverticulite, colite (infecciosa, retocolite ulcerativa ou doença de Crohn), obstrução intestinal e volvo de sigmoide.
  • 5 horas: entrando na pelve, é importante avaliar a possibilidade de doenças dos órgãos pélvicos femininos. Assim, do útero para fora, temos: endometrite, salpingite, abscesso tubo-ovariano, cisto ovariano, ruptura de ovário e doença inflamatória pélvica.
  • 6 horas: nesta região, é mais provável estarmos diante de doenças do trato urinário: uretrite, prostatite, cistite, orquite e hérnias.
  • 7 horas: ainda na pelve, não esqueça de considerar as causas de dor abdominal associadas à gestação: gravidez intrauterina e gravidez ectópica. Inclusive, mulheres em idade fértil com dor no andar inferior do abdome sempre devem ser submetidas a exame pélvico ou bimanual e a teste de gravidez. (Toda mulher em idade fértil está grávida, até prova em contrário!)
  • 8 horas: esta é a localização clássica da apendicite aguda, mas não deixe de pensar em outras doenças que também podem mimetizar essa doença: retocolite e Crohn da válvula ileocecal, inflamação do divertículo de Meckel e adenite mesentérica.
  • 9 horas: se o ponteiro das 3 horas indicava os órgãos que ficam atrás do abdome (retroperitoneal), o seu oposto indica os órgãos que fica mais à frente da cavidade abdominal: intestino delgado e mesentério. O diagnóstico diferencial aqui, desta maneira, deve passar por isquemia mesentérica, Crohn e obstrução do intestino delgado (por câncer, brida ou aderência).
  • 10 horas: nesta região, os culpados geralmente são distúrbios do fígado e da vesícula biliar. Pense em: hepatite aguda, congestão hepática, cólica biliar, colecistite, coledocolitíase e colangite.
  • 11 horas: para terminar, vale a pena lembrar outras causas de dor referida para a região superior do abdome, especialmente associadas ao pulmãopleura e diafragma: pneumonia da base pulmonar, pleurite e irritação diafragmática.

Mas por que usar um relógio?

Porque o tempo importa muito na avaliação da dor abdominal. Muitas causas de dor no abdome, dentre as patologias citadas acima, são emergências e devem ser avaliadas e tratadas rapidamente!

Portanto: uma vez que a dor abdominal começa – especialmente se há peritonite envolvida – o relógio também começa a andar…

Nesta corrida contra o tempo, ou você encontra a causa da dor abdominal e inicia o tratamento indicado, ou o tempo do paciente pode acabar!

Nosso muito obrigado a todos os leitores que enviaram seus palpites para este caso!

FONTE DO CASO:

Blumer M. 33 y/o female with abdominal pain and fever. The Human Diagnosis Project (HumanDx), 2019. 

PARA SABER MAIS:

Wiese J. Clinical teaching scripts for inpatient medicine. In: Teaching in the Hospital. American College of Physicians Press, 2010.

Akriviadis EA, Runyon BA. Utility of an algorithm in differentiate spontaneous from secondary bacterial peritonitis. Gastroenterology, 1990.