Onde houver julgamento, há ruído – e muito mais do que você imagina.
Esta é a premissa central do novo livro do professor Daniel Kahneman – esse mesmo: o psicólogo que ganhou o prêmio Nobel de Economia e que ajudou a popularizar o Sistema 1 e o Sistema 2 com seu best-seller “Rápido e Devagar: Duas Formas de Pensar”.
O novo livro se chama “Ruído: Uma Falha no Julgamento Humano” (em inglês: “Noise: A Flaw in Human Judgment”) e traz um imenso compilado de pesquisas sobre uma outra grande causa de erros de julgamento (além dos vieses): o ruído.
E sabe o que mais? Segundo Kahneman, o ruído pode ser uma causa mais importante de erros do que os próprios vieses.
OS VIESES E O RUÍDO
Para entender a diferença entre essas duas importantes causas de erros de julgamento (os vieses e o ruído), Kahneman e seus coautores Olivier Sibony e Cass Sunstein propõem uma analogia interessante.
Imagine quatro equipes de atiradores que fazem uma competição de tiro ao alvo.
O desempenho das quatro equipes está ilustrado na figura abaixo:
A equipe A é a equipe perfeita: todos os tiros estão no centro do alvo.
A equipe B tem claramente um viés (ou seja, um desvio sistemático em uma direção bem determinada), pois todos seus tiros estão agrupados para baixo e para a esquerda do centro do alvo.
A equipe C, por sua vez, demonstra o ruído: os tiros estão espalhados por todo o alvo, alguns perto e outros longe do centro, sem nenhum desvio sistemático ou tendência visível.
Já a equipe D reúne o pior de dois mundos: tem um viés (desvio sistemático dos tiros para baixo e para a esquerda do centro do alvo) e também apresenta ruído (pois os tiros estão bem espalhados, distantes entre si).
Em outras palavras:
- Vieses são os desvios sistemáticos, em uma direção definida. São mais visíveis, e seu efeito é mais previsível (se soubermos sua direção).
- Ruído é a variabilidade aleatória, sem direção. É mais difícil de prever, e muitas vezes passa despercebido.
ONDE HÁ JULGAMENTO, HÁ RUÍDO
O ruído é um fenômeno que pode ser observado em toda situação que exige julgamento.
Cabe aqui um esclarecimento: assim como usado no livro, o termo “julgamento” não deve ser confundido com “raciocínio” ou “pensamento”.
Julgamento é uma forma de avaliação em que o instrumento de medida é uma mente humana.
Os julgamentos costumam integrar diversos dados e informações em uma avaliação geral, informalmente, sem regras exatas.
Como diferentes pessoas atribuem pesos e importâncias diferentes a cada informação particular, decorre que os resultados dos seus julgamentos podem ser extremamente variáveis – mesmo que essas pessoas estejam avaliando exatamente os mesmos dados!
Nós dizemos que vieses ocorrem quando a maioria dos erros em um conjunto de julgamentos vão na mesma direção. Estamos vendo vieses quando, por exemplo, a equipe B de atiradores consistentemente acerta muito abaixo e à esquerda do alvo; quando executivos fazem projeções otimistas demais sobre as vendas, todos os anos; ou quando uma companhia continua reinvestindo recursos em projetos condenados que deveriam ser cancelados.
Eliminar vieses de um conjunto de julgamentos não vai eliminar todos os erros.
Os erros que sobram quando os vieses são removidos não são erros compartilhados (iguais entre todas as pessoas). Esses erros restantes são o resultado indesejado da divergência entre vários julgamentos. São a demonstração da falta de precisão do instrumento que usamos para avaliar a realidade (nossa mente). São o ruído.
Colocando de outra forma: o ruído é a variabilidade encontrada em julgamentos que deveriam ser idênticos.
Vieses e ruído são fontes independentes e aditivas de erros.
POR QUE O RUÍDO É IMPORTANTE?
Porque leva a variabilidade (em outras palavras: a erro) no julgamento de diferentes profissionais avaliando o mesmo caso.
Quando dois juízes dão sentenças diferentes para réus e crimes comparáveis, ou quando dois cardiologistas discordam sobre o diagnóstico de um paciente com dor no peito, é que vemos o impacto do ruído no julgamento desses profissionais.
E é claro que, se dois médicos dão dois diagnósticos diferentes para o mesmo paciente, pelo menos um deles deve estar errado!
Um dos tipos de ruído mais estudados e mais discutidos no novo livro do professor Kahneman é o ruído do sistema. Esse é o ruído observado nas organizações que possuem vários profissionais encarregados de tomar decisões: vários médicos na sala de emergência, vários juízes criminais, vários assessores numa companhia de investimentos. Vários estudos demonstram uma grande variabilidade nas decisões tomadas por essas organizações, quando estas atribuem casos idênticos a diferentes profissionais.
O que nos leva a uma das conclusões deste livro: o ruído é uma grande fonte de injustiça. Quando uma pessoa depende do funcionamento de uma dessas organizações, é como se ela entrasse numa loteria.
O resultado do julgamento da sua situação particular pode ser muito diferente, dependendo de qual profissional (dentre os vários médicos, ou juízes, ou assessores disponíveis na organização) vai ser selecionado para avaliar seu caso.
Se alguém cometeu um crime, e seu julgamento cair nas mãos de um juiz mais tolerante, sua pena pode ser bastante branda. Já o criminoso seguinte, mesmo tendo cometido um crime semelhante, pode ter o azar de ser atribuído a outro juiz – muito mais severo – e por isso receber uma pena muito mais pesada.
Em um sistema perfeitamente justo, isso não deveria depender da sorte!
Diferenças marcantes entre as conclusões de diferentes avaliadores ocorrem com mais frequência quando o julgamento exige levar em conta múltiplas informações conflitantes (algumas a favor e outras contrárias a uma decisão potencial).
Por exemplo, em entrevistas de emprego, um entrevistador pode atribuir um peso maior ao carisma de um candidato, enquanto outro fica mais preocupado com sua capacidade de desempenhar bem sob pressão. Quando os dados disponíveis são inconsistentes entre si, é natural que o avaliador atribua pesos diferentes a cada característica para tentar formar uma impressão geral. Só que isso pode levar a conclusões bem diferentes quando comparamos as impressões de vários entrevistadores!
E tem mais: o ruído é mais comum e leva a mais dano do que o simples senso comum poderia imaginar.
Alguns pesquisadores perguntaram a executivos de seguradoras qual seria a variabilidade esperada na definição do prêmio de um seguro, quando o mesmo cliente era avaliado por diferentes consultores (dentro da mesma empresa). A mediana das respostas: 10%. Eles sabiam que havia alguma variação, mas não devia ser muito grande.
Certo?…
Quando os mesmos pesquisadores levantaram qual era, de fato, a variação do valor do prêmio atribuído ao seguro de um mesmo cliente por diferentes consultores, a variação que eles encontraram era muito maior: 55%!
Em Medicina, não é muito diferente.
RUÍDO E ERROS DIAGNÓSTICOS EM MEDICINA
O livro “Ruído” tem um capítulo inteiro dedicado apenas à Medicina.
Não deveria ser nenhuma surpresa o fato de que o ruído está envolvido em erros diagnósticos. Afinal, fazer diagnósticos frequentemente requer algum tipo de julgamento.
É claro que em algumas situações mais objetivas, o diagnóstico é muito direto. Se você tem glicemia de jejum de 126mg/dL ou mais, em pelo menos duas ocasiões, então você é portador de diabetes mellitus. Neste caso, não há grande necessidade de julgamento, e pouca margem de erro por ruído.
Agora, imagine um cenário mais complicado (mas não menos comum): um paciente com queixas respiratórias agudas que teve contato com COVID-19 e tem histórico de doença cardíaca e sinais de trombose venosa no membro inferior. Qual a causa da sua dispneia? A COVID-19? A doença cardíaca? Um tromboembolismo pulmonar? A riqueza em informações deste caso exigirá um bocado de julgamento. Evidentemente, a probabilidade de diferentes médicos chegarem a conclusões diferentes nesta situação é muito maior.
A boa notícia é que os médicos mais experientes têm menos ruído – e erram menos.
Seguem alguns exemplos do papel do ruído na Medicina, citados no novo livro do professor Kahneman:
- Um estudo encontrou concordância apenas “fraca a moderada” entre os diagnósticos de doença renal feitos por diferentes nefrologistas, analisando um conjunto de exames de pacientes;
- Um estudo avaliou o diagnóstico de pneumonia em imagens analisadas por diversos radiologistas, e encontrou variação importante, atribuída a ruído e a diferenças nas habilidades dos profissionais (ressaltando a importância de treinamento adequado);
- Ao analisar se há obstrução >70% em imagens de cateterismo cardíaco, cardiologistas discordam entre si em 31% das vezes;
- Até mesmo na análise de biópsias (método considerado padrão-ouro para muitas doenças), a concordância entre patologistas foi apenas “moderada” para diagnóstico de malignidade de diferentes lesões de mama.
Pense nisso: ao ser submetido a uma biópsia, a probabilidade de você acabar recebendo um diagnóstico de câncer vai depender, muitas vezes, de qual será o médico que fará a leitura da lâmina.
Isso também não deveria ser uma loteria!
Mas a área da Medicina em que o ruído é mais extremo é a Psiquiatria. Não é de surpreender, já que o julgamento subjetivo do profissional é a pedra fundamental do raciocínio diagnóstico dessa especialidade. Um estudo de 1964 já mostrava que a concordância entre 10 psiquiatras experientes, avaliando os mesmos 91 pacientes, era de míseros 57%. (Outros estudos, depois, tiveram resultados semelhantes.)
Por que a Psiquiatria é tão sujeita a ruído? Há várias possíveis explicações:
- diferenças entre os profissionais (de treinamento, linha de pensamento, experiência);
- falta de marcadores biológicos mais “objetivos”;
- definições diagnósticas de doenças mentais, que são bastante subjetivas (apesar das tentativas de padronização por meio dos critérios dos DSM).
COMO REDUZIR O RUÍDO E PREVENIR ERROS DE JULGAMENTO?
No seu livro “Ruído”, Kahneman, Sibony e Sunstein propõem várias medidas para tentar reduzir o ruído nos julgamentos e assim melhorar nossas decisões em geral.
Uma delas é a assim chamada higiene de decisão – um conjunto de métodos que, assim como o ato de lavar as mãos, pode nos proteger de inimigos não-identificados (já que os impactos do ruído são, no geral, imprevisíveis).
Assim, são seis as medidas propostas para promover higiene da decisão e reduzir ruído (e erros):
- Usar algoritmos – o uso de algoritmos no lugar do julgamento é a única maneira 100% segura de eliminar ruído completamente, pois elimina todos os fatores humanos individuais que levam a variabilidade de decisão. Obviamente não é possível substituir todo julgamento por algoritmos, mas mesmo em situações complexas que se beneficiam do julgamento humano, a incorporação de algoritmos em algumas etapas do processo decisório pode levar a decisões mais homogêneas e justas. Na Medicina, o uso de guidelines pode servir para esse propósito.
- Pensar estatisticamente – quando se levam em conta dados estatísticos sobre um grande grupo de decisões semelhantes àquela que está sendo considerada, esses dados já servem como um ponto de partida que aproxima o avaliador da resposta que é provavelmente mais adequada ao caso em questão.
- Fazer julgamentos estruturados – diante de um julgamento complexo, é interessante decompor o problema em seus múltiplos componentes e avaliar cada um desses componentes de maneira objetiva e independente, sem que a avaliação de um componente contamine a de outro, e só depois tentar formar uma conclusão geral.
- Resistir a intuições prematuras – a intuição não deve ser banida, mas deve ser informada, disciplinada – e adiada. Uma escolha intuitiva que é informada por uma consideração equilibrada e cuidadosa de todas as evidências disponíveis é muito superior a uma intuição rápida e precoce. Fuja do fechamento prematuro!
- Agregar julgamentos – aqui entra a famosa “sabedoria das massas”. Vários cérebros pensam melhor que um, por isso em questões de grande importância, é interessante coletar os julgamentos feitos por várias pessoas diferentes e agregá-los. Mas cuidado: o resultado do julgamento agregado só é melhor se os vários julgamentos individuais forem independentes entre si (ou seja, se um avaliador não souber do resultado de outras avaliações antes de emitir a sua).
- Preferir julgamentos relativos – diferentes avaliadores podem usar diferentes escalas de medida, ou seja, diferentes definições do que é “aceitável”, “bom”, “muito bom” ou “excelente”. Por isso, sempre que possível, é bom definir uma escala objetiva de comparação, para que os julgamentos sejam feitos em termos relativos a essa escala (melhor ou pior que um dado exemplo), e não em termos absolutos (muito variáveis).
PREVENÇÃO DE ERROS DIAGNÓSTICOS NA MEDICINA
No caso específico da Medicina, os autores também propõem:
- treinamento adequado (profissionais bem treinados têm menos ruído nos seus julgamentos);
- seleção dos melhores profissionais para atuação em áreas de maior risco;
- uso de guidelines como forma de promover julgamentos estruturados, pois a decomposição de uma decisão complexa em várias decisões menores sobre componentes específicos tende a reduzir ruído;
- e a agregação de julgamentos – a velha e boa “segunda opinião,” que precisa ser realmente independente para ser capaz de reduzir ruído e melhorar a qualidade geral das decisões.
CONCLUSÕES
Uma prática médica mais segura exige a adoção de medidas de prevenção de vieses (como já comentamos tantas vezes no nosso site), mas também – e, talvez, principalmente! – de medidas para redução de ruído.
Nós já nos acostumamos a tentar prevenir vieses, mas não agimos da mesma forma com o ruído.
Pode ser que erros de julgamento pareçam menos injustos se ocorrerem de forma aleatória (como se dá em decorrência do ruído), mas isso não significa que tais erros sejam menos deletérios.
Portanto, se almejamos uma prática médica mais segura, é importante que cada vez mais, estejamos preparados para reconhecer a existência do ruído e incorporar medidas para sua redução.
PARA SABER MAIS:
Kahneman D, Sibony O, Sunstein CR. Noise: A Flaw in Human Judgment. New York: Hachette Book Group, 2021.
Tema excelente
Que bom que você gostou Paulo! Sem dúvida, precisamos estar atentos aos fenômenos que podem nos induzir a erro, se quisermos entregar a melhor assistência ao nosso paciente. Um forte abraço,
Muito bom o artigo. Texto claro e empolgante
Obrigado Antônio! Que bom que você gostou. Um abraço,
Muito bom! Na psiquiatria o ruído “… de míseros 57%… “ realmente assusta.
Cheguei a este post por indicação de um aluno meu. Excelente resenha sobre o livro. Parabéns. Foi o suficiente para compra-lo. Chega na próxima terça. Do que li parece haver um lacuna sobre processos metacognitivos (antes preciso ler o livro todo). Julgamento segundo o autor é “uma forma de avaliação em que o instrumento de medida é uma mente humana.”. E a metacognição como forma de gerenciamento da cognição é uma ferramenta útil para a “higiene de decisão”. Adiciono aqui pesquisa do meu grupo: “PEIXOTO, Mauricio Abreu Pinto; BRANDÃO, Marcos Antônio Gomes; PEREIRA JUNIOR, Gerson Alves; et al. Usando a metacognição para analisar um caso de erro diagnóstico em simulação de alta fidelidade. Revista Brasileira de Educação Médica, v. 45, n. 2, p. e080, 2021.”
( http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0100-55022021000200217&tlng=pt ) onde descrevemos um caso de fechamento prematuro e como a metacognição pode revelar o processo por meio do qual o erro se deu. Aproveito para convidá-lo a submeter artigos sobre Raciocínio Clinico sob o enfoque da Educação Médica na RBEM. Estamos sempre abertos à artigos de alta qualidade nesse campo. Abraços e obrigado!
Oi Mauricio, obrigado pelos elogios e pelos comentários! Com certeza vamos preparar material para publicar na RBEM. Um abraço,