Traduzido e adaptado de um texto escrito pelo Dr. Guillermo Ojeda Burgos (Espanha)

Residentes e estudantes de Medicina geralmente ficam surpresos quando, durante os encontros com pacientes, falamos sobre vieses cognitivos. É evidente, pelas suas expressões faciais, que eles nunca estudaram sobre isso. Por exemplo:

“Este é um exemplo de pensamento não-analítico que se associou à omissão de informação clinicamente relevante e que causou um fechamento prematuro.”

Este comentário tinha a ver com um paciente morador de rua atendido na sala de emergência, que tinha sintomas respiratórios e um infiltrado intersticial bilateral na radiografia de tórax.

Tais dados sugeriram (ao residente que o atendeu primeiro) tuberculose como o diagnóstico mais provável; portanto, o residente solicitou exames para confirmar essa doença (que acabaram resultando negativos).

No entanto, uma avaliação mais meticulosa, feita logo em seguida, revelou a presença concomitante de linfopenia e candidíase oral.

Esses novos dados levaram à reformulação das hipóteses diagnósticas, e logo pneumonia por Pneumocystis jiroveci e aids se tornaram as principais suspeitas.

Para poder entender completamente o nosso comentário acima, é preciso rever os fundamentos da teoria do processo dual (“dual process theory“, DPT), ou teoria do raciocínio dual.

Atualmente, esse é um dos modelos mais aceitos para explicar como se dá o raciocínio clínico diagnóstico.

racional - teoria do processo dual - raciocinio clinico
Nem tudo o que fazemos é perfeitamente racional...

O que é a teoria do processo dual?

A teoria do processo dual foi desenvolvida nos anos 70 pelos psicólogos Amos Tversky e Daniel Kahneman (este último, ganhador do Prêmio Nobel de Economia). Eles estavam pesquisando os mecanismos pelos quais as pessoas tomam decisões no dia a dia.

Essa teoria já foi aplicada e testada nas mais diferentes áreas de atividade humana (economia, esportes, política…), uma vez que ela fornece um modelo bastante interessante e válido sobre como raciocinamos, e como tomamos decisões.

Daniel Kahneman - teoria do processo dual - raciocinio clinico
Prof. Daniel Kahneman

No entanto, foi o Dr. Pat Croskerry, um médico emergencista canadense e um estudioso do raciocínio clínico diagnóstico, que começou a analisar as implicações dessa teoria sobre o trabalho dos médicos.

(CONFIRA AQUI a entrevista exclusiva que o Dr. Pat Croskerry deu para nosso site!)

A teoria do processo dual pode ser resumida da seguinte maneira: imagine que você está avaliando um paciente pela primeira vez e precisa fazer um diagnóstico. Conforme você vai coletando dados do paciente, você pode seguir dois caminhos diferentes para tentar encontrar uma solução (dependendo da sua familiaridade com o problema em questão e da sua habilidade em reconhecê-lo):

  1. Se o problema for prontamente reconhecido (ou seja, se o quadro do paciente encaixa em algum “padrão” ou script de doença que você tem armazenado na memória), então  você segue um caminho bastante direto até o diagnóstico e tratamento. Este caminho é rápido, automático, intuitivo e não-analítico. O uso deste caminho, ou “sistema”, permite que o diagnóstico seja feito rapidamente, sem muito esforço, e com boa probabilidade de acerto  -se você for experiente;

  2. Por outro lado, se o problema não for reconhecido de imediato, então você segue outro caminho, usando um processo complexo de coleta de informações para tentar encontrar mais elementos que  permitam resolver esse problema, usando um raciocínio mais elaborado e trabalhoso. Este caminho “analítico” é mais lento, deliberado (intencional), e nos exige mais recursos (tempo e energia), por isso é mais cansativo, mas pode ser mais efetivo em relação à probabilidade de acerto.

A teoria do processo dual

A chave é o reconhecimento de padrões

O elemento principal para determinar se vamos usar um outro “caminho” (ou “sistema”) de raciocínio é o reconhecimento de padrões.

O ser humano vive perpetuamente procurando por padrões. Essa característica provavelmente foi decisiva para nossa sobrevivência enquanto espécie em tempos remotos. Reconhecer padrões deve ter permitido a nossos ancestrais das cavernas tomar decisões rápidas e com pouca informação disponível, e assim evitar situações potencialmente perigosas. Imagine, por exemplo, como reconhecer instantaneamente o padrão de um leão (e começar a correr) pode ter ajudado a aumentar a chance de sobrevivência de um seu ancestral!

Podemos ver como o reconhecimento de padrões é uma característica forte da espécie humana ao observar como bebês pequenos conseguem diferenciar com muita facilidade rostos familiares e rostos desconhecidos. A identificação ocorre em frações de segundo.

Quer mais um exemplo? Olhe por um segundo para as imagens abaixo:

cadeira - teoria do processo dual - raciocínio clínico

O seu reconhecimento do que cada umas imagens representa deve ter sido instantâneo, não foi?

Uma consideração importante a ser feita é que os padrões podem ser muito diferentes de acordo com o tipo de informações que recebemos. Nos exemplos acima, usamos informações visuais. Fácil!

Mas pode ser bem mais complicado.

Em Medicina, por exemplo, a informação semântica de que um conjunto de sintomas corresponde a uma síndrome constitui um padrão que permite seu rápido reconhecimento.

Quer ver como funciona? Leia rapidamente os sintomas abaixo:

Tosse + febre + dispneia

Reconheceu alguma coisa?…

Se você já tem alguma experiência clínica, deve ter pensado imediatamente em pneumonia.

Precisou pensar muito para chegar nessa conclusão? Provavelmente não!

Neste caso, usamos apenas o “caminho” rápido e não-analítico (o chamado Sistema 1 de pensamento). Basicamente, reconhecemos um padrão.

Por outro lado, quando a informação diante de nós é mais escassa, ou desorganizada, e não conseguimos encaixá-la imediatamente num dos padrões que conhecemos, então nosso cérebro é obrigado a fazer um esforço a mais.

Começamos a procurar detalhes adicionais e a imaginar explicações mais elaboradas, na tentativa de encontrar uma solução para o problema.

Esse é o “caminho” lento e analítico (o Sistema 2).

As figuras abaixo ilustram como isso funciona. Veja a primeira figura e tente encontrar um diagnóstico:

Neste caso, as lesões cutâneas vesicobolhosas, eritematosas, em diferentes estágios, seguindo uma distribuição em “faixa”, permitem a identificação rápida e automática de um herpes zosterSistema 1 puro! (Se você já conhecia a doença.)

Agora tente fazer o mesmo com a próxima figura:

Neste caso, a característica mais difusa e mal definida do rash geralmente não vai permitir uma identificação tão rápida e precisa da origem do problema. O mais provável é que o médico comece a fazer mais perguntas e a examinar o paciente com mais cuidado, para conseguir embasar seu raciocínio clínico diagnóstico. “Coça?” “Já teve isso antes?” “Sente mais alguma coisa?”. Quase dá para ouvir os neurônios do médico trabalhando!

Este é o Sistema 2!

Na vida real, geralmente os médicos combinam ambos os sistemas, alternando do raciocínio analítico (Sistema 2) para o intuitivo (Sistema 1) assim que um padrão é encontrado.

A teoria do processo dual e a clínica

O Sistema 1, rápido e intuitivo, baseado no reconhecimento de padrões, é eficiente na maioria dos casos do cotidiano. Médicos experientes são capazes de fazer diagnósticos corretos para a maior parte dos seus pacientes usando apenas o Sistema 1, sem muito esforço. Na verdade, esse sistema é um atalho cognitivo, que tomamos toda vez em que nos sentimos razoavelmente seguros de alguma coisa. Poupa tempo. Poupa energia.

No entanto, o Sistema 1 pode nos induzir a erros – especialmente quando não temos tanta experiência assim, ou quando o problema à nossa frente é atípico. Por isso precisamos tomar cuidado, pois é provável que o Sistema 1 seja nossa principal fonte de erros.

Ativar o Sistema 2, lento e analítico, pode ser mais seguro, mas exige esforço. Requer mais tempo e exige maior gasto de energia. Por isso, em situações de stress, cansaço, distrações excessivas ou carga excessiva de trabalho, podemos precisar de ainda mais esforço para mudar do Sistema 1 para o Sistema 2. Às vezes o médico, sobrecarregado, simplesmente não consegue. O que acontece, então, é que o cérebro do médico simplesmente se apega à primeira hipótese que vem à mente e interrompe a busca por explicações alternativas (ou seja, cai no “fechamento prematuro”).

Este é um modelo pelo qual é possível explicar vários erros diagnósticos que ocorrem em Medicina. Pode explicar, por exemplo, o que aconteceu com o residente que atendeu aquele paciente do começo do texto.

No pronto-socorro lotado, o residente, com muita coisa para fazer, achou que tuberculose era uma boa explicação. As queixas respiratórias, o infiltrado na radiografia e a epidemiologia do paciente (morador de rua) ativaram um “padrão” na sua mente. Outras hipóteses nem sequer foram consideradas!

No entanto, o paciente tinha outra doença (pneumonia por P. jiroveci). O diagnóstico correto só surgiu quando outro médico (mais descansado) encontrou a candidíase oral e a linfopenia, que o levaram a suspeitar de imunodeficiência – neste caso, aids.

Conclusões

Conhecer a teoria do processo dual ajuda a entender como funciona a cabeça dos médicos e a explicar vários erros de diagnóstico. Além disso, pode ajudar a prevenir erros, se você aprender a prestar atenção a qual sistema está sendo usado!

Acostume-se a fazer sempre 3 hipóteses para todo paciente, por mais óbvio que possa parecer o diagnóstico. Esta é uma boa maneira de forçar a ativação do Sistema 2 e evitar erros por confiança excessiva no reconhecimento de padrões do Sistema 1.

nunca confie cegamente em diagnósticos feitos no pronto-socorro! Sempre reavalie o paciente como se ele estivesse sendo visto pela primeira vez. Pode ser mesmo a primeira vez que ele está sendo avaliado por alguém com o Sistema 2 em operação…

Traduzido e adaptado do texto do Dr. Guillermo Ojeda Burgos, da Espanha, publicado originalmente no blog Aequanimitas e no blog ProDiagnosis (nosso parceiro!).

Agradecemos ao Dr. Guillermo Ojeda Burgos e também ao Dr. Lorenzo Alonso, que nos enviou e sugeriu este texto.

PARA SABER MAIS:

Leia nosso post anterior sobre os fundamentos do raciocínio clínico diagnóstico!

Kahneman D. Rápido e Devagar: Duas Formas de Pensar. Rio de Janeiro: Objetiva, 2012.

Autores:

  • Guillermo Ojeda Burgos
  • Leandro Arthur Diehl

Você pode referenciar o artigo acima usando o Digital Object Identifier (Identificador de Objeto Digital) – DOI.

DOI: 10.29327/823500-19