A prática deliberada é um dos principais segredos para a excelência e o sucesso em qualquer profissão, mas você realmente entende o que significa esse conceito?

Para entendê-lo, vamos usar o exemplo de um dos maiores heróis brasileiros: Ayrton Senna da Silva. Ele animava nossas manhãs de domingo. Acordávamos de madrugada para assistir à Fórmula 1, torcíamos, nos emocionávamos, e com frequência vinha a recompensa: o tema da vitória!

Sua perícia era incomparável, principalmente pilotando na chuva – isso porque, quando ainda criança e corria de kart, perdeu uma corrida com pista molhada. Ele nunca esqueceu esse dia. A partir de então, treinava muito, sempre que chovia. Isso o tornou um dos melhores corredores em pista molhada de todos os tempos – dificilmente superado mesmo agora, mais de 23 anos depois da sua morte.

O que há em comum entre o nosso herói e outros grandes esportistas e profissionais? Talento? Amor à profissão? Dedicação? Desejo de superação?

Definitivamente, tudo isso – e mais um requisito fundamental para alcançar a excelência: a prática deliberada.

A PRÁTICA DELIBERADA NA MEDICINA

Certa vez, quando ainda era interno de Medicina, atendi um paciente com insuficiência cardíaca e durante o exame físico me deparei com uma dificuldade: avaliar a volemia do paciente. Examinei-o detalhadamente e pude então determinar que estava, de fato, hipervolêmico.

Depois disso, passei um longo período, durante o internato, a residência e mesmo depois, dedicando-me a avaliar pacientes com foco no status volêmico de cada um. Esta é uma habilidade necessária para qualquer médico, e é particularmente importante na Nefrologia. Por isso busquei conscientemente me aperfeiçoar nessa habilidade. Examinei muitos pacientes depletados, cirróticos, edemaciados, congestos. Adquiri conhecimentos sobre possíveis alterações no exame físico como pressão venosa jugular, alterações cutâneas, variações de pulso e pressão, ausculta pulmonar e cardíaca, entre outros sinais.

Confesso que não tive nenhum professor que me orientou diretamente a fazer essas repetições com o intuito de me aprimorar. Simplesmente, me pareceu algo razoável a ser feito. Aliado ao exemplo da prática de bons mestres, dediquei-me a desenvolver essa habilidade, pois era importante para minha prática profissional.

Sem saber, o que eu estava fazendo era prática deliberada. Muitos pesquisadores estudaram esse assunto para tentar responder a duas grandes perguntas que nos acompanham há séculos:

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O QUE É A PRÁTICA DELIBERADA?

Dos pesquisadores, um que merece destaque é K. Anders Ericsson. Ao analisar o desempenho de experts em áreas como música e xadrez, Ericsson concluiu que havia um elemento em comum por trás da performance desses mestres: a quantidade e a qualidade da prática.

Foi ele que cunhou o termo “prática deliberada” para denominar as “atividades de treinamento individualizadas, especialmente desenhadas por um técnico ou professor para melhorar aspectos específicos do desempenho individual, através da repetição e refinamento sucessivos”.

Além de criar o termo, Ericsson também calculou qual era o número mínimo de horas de prática deliberada para que alguém pudesse se tornar um expert: 10 mil horas! É esta quantidade de prática que diferencia os profissionais realmente experientes dos novatos, em praticamente qualquer área.

Outro exemplo de excelência na sua área foram os Beatles. No livro “Outliers – Fora de Série“, o autor Malcolm Gladwell se aprofunda nesse tema. Segundo ele, o quarteto de Liverpool, antes de alcançar a fama e o estrelato, apresentou-se inúmeras vezes em bares e boates da Inglaterra e da Alemanha. Foram cerca de 1.200 apresentações, antes mesmo de gravar o primeiro single. Se somarmos as horas de ensaio, adivinhem quantas horas os Beatles tiveram de prática deliberada, antes de se tornarem conhecidos? Isso mesmo: 10 mil horas!

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A vida dos Beatles não era só sombra e água fresca

Bill Gates também teve pelo menos 10 mil horas de prática deliberada programando software antes de fechar seu primeiro grande contrato à frente da Microsoft.

Ou seja, é como a sua vovó já dizia: a prática leva à perfeição!

A Medicina, porém, não é como praticar um esporte ou treinar um instrumento musical.

As atividades do médico são ainda mais complexas, têm maior variabilidade e são menos previsíveis. Isso dificulta a elaboração de atividades repetitivas e intencionais para treinamento prático dos novatos – o que se soma, é claro, às limitações de todo e qualquer curso de Medicina.

Por isso, se você quer alcançar padrões elevados na sua prática, é importante ter em mente que você mesmo é o maior responsável pela sua excelência!

Na continuação deste post, vamos trazer os requisitos e estratégias para você aplicar a prática deliberada no seu desenvolvimento profissional e na sua vida. É claro que isso também se aplica ao desenvolvimento das habilidades de diagnóstico. De brinde, vamos deixar também algumas sugestões específicas para melhorar o raciocínio clínico!

REQUISITOS PARA A PRÁTICA DELIBERADA

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1. EXECUTE TAREFAS COM OBJETIVOS BEM DEFINIDOS

Saia do automático. Não faça as coisas só por fazer.

Nas atividades acadêmicas, sempre reflita sobre o que é esperado que você aprenda com a atividade proposta, e então realize a atividade de modo focado no objetivo. Se você tem alguma dificuldade mais perceptível, insista nela até melhorar.

Na prática médica, tenha alguns objetivos de aprimoramento, poucos e claros, de acordo com suas dificuldades ou suas necessidades. Vá mudando seus objetivos de tempo em tempo.

Veja essas sugestões de objetivos:

  • Melhore a ausculta cardíaca. Ouça simulações, ausculte pacientes, leia de novo sobre o tema;
  • Treine apresentar-se para todo paciente antes de iniciar a conversa;
  • Cheque todos os pulsos;
  • Treine avaliar pulso jugular e pressão venosa jugular;
  • Sorria sempre.

2. BUSQUE MOTIVAÇÃO PARA ESFORÇAR-SE E MELHORAR

Na Medicina (e na vida) precisamos estar sempre aprendendo – mas nem sempre é fácil ler e estudar tanto quanto o necessário. Mesmo assim, você nunca deve se contentar com o mínimo.

Encontre o que motiva você para buscar aquele “algo mais”. Uma pessoa estudiosa costumava dizer: “cada vez que eu estudo é um paciente que sofre menos, é um paciente a menos que sofre”.

Descubra quais são suas motivações: pode ser melhorar seus ganhos, ter maior satisfação pessoal, ajudar mais pessoas, ser mais reconhecido… Lembre-se que sempre vale a pena um esforcinho extra!

3. ENCONTRE MEIOS DE RECEBER FEEDBACK ADEQUADO

Feedback constante e qualificado é essencial para sabermos se estamos indo no caminho certo. Uma visão de fora e imparcial nos ajuda a corrigirmos a rota se estivermos aprendendo a fazer alguma coisa do jeito errado.

Infelizmente, não é sempre que podemos contar com esse feedback, e nem sempre ele é adequado, em especial depois de já formados na faculdade.

Para os estudantes ou residentes, a melhor maneira de buscar feedback é perguntar diretamente ao professor sobre o seu desempenho. Se ele viu você treinando anamnese ou exame físico, pergunte o que achou. Peça para ele avaliar uma manobra específica, para repetir a ausculta cardíaca e confirmar se está certa.

Se você já é médico formado, compare os resultados de exames com suas expectativas prévias. Às vezes podemos até brincar com isso, “apostando” ou tentando adivinhar qual será o resultado da hemoglobina, da bilirrubina, etc…

Um excelente feedback não-acadêmico é ser elogiado pelos pacientes ou funcionários do seu serviço de saúde. Além de inflar o ego, ajuda saber que estamos no caminho certo. Saiba aproveitar também as críticas negativas, mesmo as que parecem injustas. Tenha humildade em reconhecer que você pode errar às vezes.

4. PROCURE OPORTUNIDADES PARA REPETIÇÃO E REFINAMENTO

Cada paciente é uma oportunidade de aprendizado e de prática. Se você está seguindo a primeira dica, repita em cada um dos seus pacientes (se possível) aquela manobra ou habilidade em que você quer melhorar.

Se você é estudante, seja proativo: visite o hospital mais vezes para ver pacientes, use e abuse dos monitores, e faça amizade com internos e residentes que possam ajudar você.

"Aquele que estuda Medicina sem livros, navega por mares desconhecidos. Aquele que estuda sem pacientes, nem ao mar vai."
Sir William Osler (1912). Pintura de Harry Herman Salomon
Sir William Osler (1849-1919)
Pai da Medicina moderna

Para trabalhar com determinação e alcançar bons resultados, é preciso ajustar o seu modo de pensar, a configuração da sua mente, o seu mindset.

Sabia que há 2 tipos de mindset, fixo e de crescimento (fixed mindset e growth mindset)?

O mindset fixo é aquele modo de pensar que acredita, consciente e inconscientemente, que o caráter, inteligência, criatividade, são traços fixos e recebidos que não podem ser mudados significativamente. Daí decorre que o sucesso seja simplesmente uma afirmação disso.

Já o mindset de crescimento é o que acredita no contrário e encontra no desafio, nas dificuldades e falhas não uma limitação negativa de suas capacidades, mas oportunidades de melhorar.

No primeiro caso, evita-se o desafio e há medo de falhas; já no segundo, a pessoa está disposta a novas aventuras, desafios e não tem medo de errar.

Cultive o mindset de crescimento – afinal de contas, sempre podemos mudar e crescer!

Descobrir motivações verdadeiras e fortes ajuda. Depois, tenha em mente há alguns hábitos a serem cultivados: a reflexão e a imaginação.

•  Reflexão: Habitue sua mente a refletir nas tarefas ou habilidades que está praticando. Se não pensamos no que fazemos, não há como nos orientarmos. Sem a reflexão na ação e também após a ação, não conseguimos detectar falhas, dificuldades, dúvidas. É também estando atentos que refinamos nossas habilidades; refletindo, descobrimos a lógica de determinadas práticas que até então não tínhamos percebido. E é assim também que consolidamos o conhecimento pois estabelecemos relações, tiramos insights e verificamos a prática.

•  Imaginação: Imagine as ações, adapte e memorize seus modos de trabalhar. Os atletas ensaiam mentalmente suas jogadas; eles sabem e estão até condicionados por mentalização e repetição a realizar determinadas ações em certas circunstâncias. Você pode imaginar algum procedimento ou uma determinada etapa (intubação, acesso venoso central, parto, cirurgia). Imagine como perguntar alguma coisa da anamnese que seja desconfortável (uso de drogas, atividade sexual), como dar uma explicação ou uma notícia ruim. Crie mentalmente uma rotina de exame físico ou exame neurológico.

DICA EXTRA: PROCURE OS DESAFIOS!

Um caso difícil? Excelente oportunidade de aprender! Não tenha medo dos desafios, levante a barra para pular mais alto. Melhore a qualidade da sua sutura, seja ainda mais paciente ou educado. Discuta a tomografia com o radiologista. Tente resolver algo mais complicado que o habitual, invente e crie desafios. Só fazendo ações mais complicadas e difíceis é que elevamos nossas habilidades.

A PRÁTICA DELIBERADA E O RACIOCÍNIO CLÍNICO

Você pode usar essas considerações para aprimorar suas habilidades de diagnóstico, sabia?

Se está acompanhando nossos posts, já viu artigos falando sobre os três pilares do diagnóstico correto, a importância de ouvir o paciente, as armadilhas dos vieses cognitivos… Tente separar uma parte ou uma etapa do processo de raciocínio clínico e faça-a muitas vezes, como treino mesmo, mesmo que não seja tão necessário.

Veja algumas sugestões:

  • Não interrompa o paciente quando este iniciar o seu relato;
  • Faça o resumo do caso para todo paciente que você avaliar ou caso clínico que estudar ou discutir;
  • Esforce-se por fazer sempre pelo menos 3 hipóteses diagnósticas;
  • Procure sistematicamente por dados discordantes na história, para não ser vítima do viés de confirmação;
  • Use o “ACERTEINAMOSCA” para gerar diagnóstico diferencial;
  • Treine mentalmente como “passar os casos” (apresentação oral) para um colega, de maneira clara e sucinta;
  • Acompanhe as nossas publicações toda semana!

Para ser eficaz, cada ponto que você escolhe melhorar ou cada objetivo de treino deve ser feito por um tempo (1-2 semanas; ou 30 vezes; você define); depois, alterne para outro.

VOCÊ É O MAIOR RESPONSÁVEL PELO SEU SUCESSO!

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Alguns (como nós) têm a oportunidade de ter a companhia de uma boa equipe. Outros trabalham sozinhos, muitas vezes em situações desfavoráveis (para usar um eufemismo). Os estudantes muitas vezes têm bons professores e boas atividades; outras vezes, nem tanto…

Mas todos podemos e devemos coordenar nossa própria prática. Não há instituição que possa regular e manter a qualidade da nossa prática; no máximo, podem dar meios para melhorarmos e fiscalizar nossa evolução.

Esteja onde estiver – cidade grande ou interior, em um centro de referência ou em uma UPA – você pode e deve ser um excelente profissional. Sucesso é tratar bem os pacientes, fazer diagnósticos corretos, agir com prudência e segurança, dar um bom andamento às coisas.

Seja o protagonista da sua vida. Mantenha a mente aberta e se esforce. Siga conosco nesta jornada, e seja um grande médico e um mestre na ciência e na arte do raciocínio clínico!

PARA SABER MAIS:

Gladwell M. Outliers – Fora de Série. Rio de Janeiro: Sextante, 2013.

Ericsson KA, Krampe RT, Tesch-Romer C. The role of deliberate practice in the acquisition of expert performance. Psychological Review, 1993.

Dweck CS. Mindset: the new psychology of success. New York: Ballantine Books, 2007.

Autores:

  • Fabrizio Almeida Prado
  • Leandro Arthur Diehl
  • Pedro Alejandro Gordan

Você pode referenciar o artigo acima usando o Digital Object Identifier (Identificador de Objeto Digital) – DOI.

DOI: 10.29327/823500-14