Você já ouviu falar das “grandes imitadoras”?
São doenças ou condições particularmente difíceis de diagnosticar, pois podem ter apresentações clínicas muito variadas e assim imitar várias outras patologias, podendo confundir o médico e levá-lo a erros diagnósticos.
(Em um post anterior, já citamos as grandes imitadoras – as “doenças-macaco” – como causas de diagnóstico difícil, assim como as zebras, os camaleões e os unicórnios).
Sífilis: o protótipo das grandes imitadoras
O protótipo (e a mais conhecida) das grandes imitadoras é a sífilis. A sífilis é uma armadilha diagnóstica perfeita porque:
- cursa com várias fases distintas na sua evolução (sífilis primária, secundária, terciária, congênita);
- pode acometer diferentes órgãos ou sistemas em cada uma das fases;
- varia muito com relação à gravidade da apresentação, existindo inclusive casos que permanecem assintomáticos por muito tempo (é a “sífilis latente”);
- e alguns sintomas só aparecem vários meses ou anos depois do contágio inicial, quando o paciente nem lembra mais da lesão inicial (o cancro duro, geralmente indolor e que, por isso, pode passar despercebido).
Não à toa, a sífilis foi a primeira doença a ser amplamente denominada, na literatura médica (inclusive pelo célebre Dr. William Osler), de “a grande imitadora”, “a grande mascarada”, ou também “a grande impostora”.
Veja no quadro abaixo exemplos de como a sífilis pode ser facilmente confundida com outras doenças:
Um último problema é que a incidência de sífilis vem aumentando ultimamente… Então, lembre-se de incluí-la com mais frequência no seu diagnóstico diferencial!
outras grandes imitadoras
Apesar de ser a mais conhecida, a sífilis não é a única grande imitadora! Existem várias doenças com apresentações polimórficas, que gostam de imitar outras patologias e por isso podem enganar até mesmo o melhor dos médicos. Clínicos experientes sabem que algumas dessas doenças podem entrar no diagnóstico diferencial de praticamente qualquer paciente!
O Dr. John Sotos, no seu divertido livro “Zebra Cards”, cita diversas grandes imitadoras.
Segundo ele, as doenças multissistêmicas são ótimas imitadoras. Por acometer vários órgãos/sistemas, elas freqüentemente determinam sintomas que são comuns a diversas outras doenças que afetam esses mesmos locais. Além disso, é comum que essas doenças causem combinações incomuns de disfunções orgânicas, que só contribuem para obscurecer ainda mais o diagnóstico. Por isso, o conhecimento detalhado da história natural dessas doenças (e das suas variantes) é importante.
De maneira didática, as doenças multissistêmicas com potencial para serem grandes imitadoras podem ser agrupadas em 4 grandes categorias:
1) doenças infecciosas;
2) doenças neoplásicas;
3) doenças intravasculares; e
4) outras (miscelânea).
1. doenças infecciosas
Entram aqui a própria sífilis, além de outras infecções nos mais diversos órgãos e com as mais diversas apresentações. Também são grandes imitadoras clássicas:
- a endocardite subaguda, com suas freqüentes manifestações imunológicas extracardíacas;
- a tuberculose, que pode ter sede em praticamente qualquer lugar do corpo humano;
- as micoses sistêmicas (no Brasil, a mais importante é a paracoccidioidomicose, mas também a histoplasmose, a aspergilose e a candidíase);
- a aids (com sua miríade de doenças oportunistas, em variadas combinações); e ainda:
- a hanseníase, a brucelose, a doença de Whipple e a doença de Lyme.
A brucelose é outra doença de diagnóstico tão difícil e geralmente tão tardio, que pode enganar até especialistas na doença! Veja, por exemplo, a incrível história contada como “caso número 3” na revisão de Young EJ, “Human Brucellosis”, de 1983:
Um médico de 43 anos, que estudava brucelose em seu laboratório há mais de 8 anos, um dia teve um acidente e espirrou uma suspensão de Brucella melitensis no próprio rosto. Ele lavou a face e não pensou mais nisso.
Um mês depois, começou a sentir dores lombares, cansaço e sudorese constante, sem febre. Ele inicialmente achou que fosse apenas um resfriado, mas logo a lombalgia piorou e ele começou a ter dificuldade para deambular, insônia e humor deprimido. Em pouco tempo, não conseguia erguer os braços acima da cabeça devido a uma intensa dor nos ombros.
Ele só foi perceber que seus sintomas eram de brucelose um mês mais tarde, quando atendeu um paciente já diagnosticado com a doença e notou que os sintomas do paciente eram idênticos aos seus!
Após a confirmação laboratorial e duas semanas de doxiciclina, ele já estava se sentindo ótimo novamente.
A doença de Lyme, que inicialmente é restrita à pele, mas depois pode evoluir com acometimento variável de articulações, coração e sistema nervoso central, não é tão comum no Brasil, mas é uma causa de inúmeros erros diagnósticos nos Estados Unidos, país em que é mais prevalente.
2. doenças neoplásicas
Os principais exemplos são:
- o carcinoma renal de células claras (o famoso “tumor do internista”, pela sua freqüente associação com inúmeras síndromes paraneoplásicas, que podem dominar o quadro clínico inteiramente!);
- os linfomas; as leucemias; e
- a amiloidose.
Menção especial para os linfomas não-Hodgkin, que podem se originar em praticamente qualquer sítio: órgãos linfóides propriamente ditos (linfonodos, baço, timo), órgãos que contenham algum tecido linfoide (fígado, intestino), ou até mesmo em órgãos que normalmente não possuem tecido linfóide (estômago, tireóide etc).
O mesmo vale para as leucemias, que podem se apresentar inicialmente como uma dor articular persistente, ou uma febre de origem obscura, ou até como uma hiperplasia gengival isolada!
Dessa maneira, as neoplasias hematológicas são uma possibilidade a ser seriamente considerada em praticamente qualquer quadro suspeito de neoplasia ou doença sistêmica de origem obscura.
3. doenças intravasculares
Estas patologias podem provocar sintomas à distância do foco inicial da doença, pois freqüentemente determinam embolia, trombose ou isquemia nos locais mais variados.
Exemplos importantes de grandes imitadoras deste grupo são:
- as vasculites em geral;
- o mixoma atrial;
- o aneurisma micótico (que é uma dilatação sacular infecciosa, bacteriana ou fúngica);
- a dissecção aguda de aorta (freqüentemente confundida com outras causas comuns de dor torácica e/ou hipotensão arterial);
- o tromboembolismo pulmonar (TEP); e
- o ateroembolismo.
Quanto às vasculites, as quatro grandes doenças deste grupo são: a poliarterite nodosa, a arterite de células gigantes (ou arterite temporal, vasculite mais comum na terceira idade), o lúpus eritematoso sistêmico e a própria endocardite bacteriana subaguda.
4. miscelânea
Finalmente, algumas outras grandes imitadoras de relevância clínica são:
- o lúpus eritematoso sistêmico (dado seu polimorfismo clínico extremo, você pode incluir o lúpus no diagnóstico diferencial de praticamente qualquer caso clínico!);
- as intoxicações e envenenamentos (os mais citados são por monóxido de carbono ou por metais pesados, como o chumbo);
Além dessas, também não podemos esquecer:
- as disfunções tireoidianas (hipotireoidismo e hipertireoidismo – especialmente nos idosos);
- a insuficiência adrenal;
- a sarcoidose;
- a esclerose múltipla; e
- o hematoma subdural crônico (chamado, às vezes, de “o grande imitador neurológico”).
grandes imitadoras: um infográfico
Segue abaixo um infográfico com a lista das principais doenças grandes imitadoras, por categoria:
Conclusões
Diante de pacientes com quadros multissistêmicos em que o diagnóstico inicial não é claro, é importante manter um amplo diagnóstico diferencial, mesmo se as queixas forem relativamente benignas.
Obtenha uma história clínica detalhada e não esqueça de incluir as grandes imitadoras entre as suas possibilidades – mesmo que você comece a parece um papagaio que fica repetindo “lúpus! TB! aids!“
PARA SABER MAIS:
Sotos JG. Zebra cards: an aid to obscure diagnoses. Mt. Vernon: Mt. Vernon Book Systems, 1991.
Hicks CB, Clement M. Syphilis: epidemiology, pathophysiology, and clinical manifestations in HIV-uninfected patients. UpToDate.
Young EJ. Human Brucellosis. Reviews of Infectious Diseases, 1983;5:821-42.
Autor:
Leandro Arthur Diehl
Você pode referenciar o artigo acima usando o Digital Object Identifier (Identificador de Objeto Digital) – DOI.
DOI: 10.29327/823500-24
Muito bom, vi exemplos de todas patologias acima, exceto hematoma subdural crônico e os cinco casos de doença de Lyme que documentei, todos estavam na fase do eritema crônico migratório, que é um padrão de reconhecimento. Penso que o conceito de grande simuladoras faz uma injunção com o conceito de diagnostico difícil, embora o inverso não seja o mesmo, mas ha necessidade de se contextualizar a historia sobre as simuladoras ou mimetizadoras. Ao longo dos ultimo 150 anos quando o derradeiro corte epistemologico sobre nousos, pathos, morbus, ou enfermidade se concretizou, a etiologia, foi um assombro, médicos correram para descrever um enfermidade, uma uma anatofisiopatologia, e uma etiologia,( um dos motivos de médicos de doentes—> médicos de doenças), aqui nasce o conceito de simuladoras, etiologias diversas com sintomas semelhantes, no entanto algumas só podem ser explicadas pelo contexto histórico como a dificuldades inicias de diagnostico por Labs, como exemplo o LES, que tem sua historia divida em quatro momentos, clássica quando dermatologistas o descreveram ( Alibert, Hebra…) o neoclássico quando Kaposi introduziu o conceito de uma forma sistêmica, e depois Osler descreveu 29 casos ( ha duvidas se todos eram) diagnosticados com bases clinicas, mas o período moderno só mesmo veio com Hargraves em 1948 com a célula LE sendo o primeiro marcador laboratorial, e na década seguinte o FAN, hoje acho que devido a facilidade desses exames e a sensibilidade elevada, usualmente se diagnostica com presteza em hospitais escolas ainda que tenha apresentação focais e atípicas como hemofagocitose, formas neurológicas, linfadenopaticas…, a facilidade de se solicitar FANs não deve diminuir a heurística do raciocínio clinico, a tecnologia pode ser inimiga das habilidades, o período pós moderno ainda estamos estamos mapeando quais gens ou mecanismos são a causa e heterogeneidade de tal mimetizadora, as porfirias citadas no passado como a pequena imitadora ainda é um incógnita para mim, as formas agudas, tem padrão de reconhecimento neuropático, algico, hiponatremia, e a urina quase uma inferência de certeza, talvez a maior mimetizadora seja as doenças factícias ou Munchausen, ja vi caso com celulite e gasosa que era auto injeção e ar, sangramentos histriônicos e reais, dores migratórias, e para alem da laparotomaphilia migrans (dor abdominal aguda), hemorrhagia histrionica (tipo hemorrágico) e neurológica diabólica (convulsões, parestesias e outros quadros neurológicos), ainda existe by proxy, grande dificuldade diagnostica e de conduta, e dentro desse espectro o transtorno somatoforme, usualmente fácil diagnóstico mas difícil o cuidar, e o simulador usualmente fácil mas com implicações legais, há também os que necessitam de uma sintoma para continuar vivendo, inclassificáveis dentro da estrtura monolitica da anatomofisiopatologia clássica, e não adianta um miriade de avaliações e descartes, o sintoma termina migrando para outro sistema, esses sintomas mimetizadores necessitam um diagnostico, primeiro para o médico, depois para o paciente uma negociação, de não negação da “doença”, mas explicar que a enfermidade necessita de outra abordagem, a fala.
Obrigado pela complementação e pela aula de história, Dr. George! Um abraço