O diagnóstico difícil: essa besta mitológica que espreita nos cantos dos hospitais universitários para amedrontar os pobres médicos. Um paciente com uma história muito estranha, o exame físico que “não bate”, os exames de laboratório que não fazem muito sentido… Longas e intermináveis discussões de casos em que todos esperam por algum palpite salvador que aponte a direção do diagnóstico correto, mas em que só aparecem dúvidas e mais dúvidas…

Pois é.

Todo mundo lembra de algum caso assim, não é mesmo?

Muito embora todos já tenham tido experiência com algum diagnóstico difícil, não existe um consenso sobre a melhor definição desse problema. Na falta de uma definição clara, fica difícil fazer estudos – por isso não há dados sobre a sua frequência.

Mas, mesmo sem uma definição exata, é importante discutir por que alguns diagnósticos são tão difíceis, e o que podemos fazer para aumentar nossas chances de desvendá-los

Afinal, acertar um diagnóstico difícil faz muito bem – não só para a saúde do paciente, mas também para a autoestima do médico!

Então, continue lendo este artigo para conhecer algumas doenças que gostam de confundir os médicos.

São as zebras, camaleões e unicórnios do diagnóstico difícil!

CAUSAS DO DIAGNÓSTICO DIFÍCIL

Na maioria dos casos de diagnóstico difícil, o problema é multifatorial. Vários fatores costumam contribuir para dificultar ou atrasar a obtenção do diagnóstico correto.

De maneira didática, esses fatores podem ser classificados em dois grandes grupos:

  1. Dificuldades associadas a problemas na avaliação diagnóstica (ou seja, ao processo diagnóstico);
  2. Dificuldades inerentes à doença em si.

Abaixo, vamos debater em detalhes cada um desses fatores:

Dificuldades relacionadas ao processo diagnóstico:

diagnostico-dificil-paciente-bravo

1. fatores do paciente

Pacientes que já passaram por diversos médicos e estão há bastante tempo em busca de uma explicação para seus sintomas podem acabar contribuindo para dificultar ainda mais o diagnóstico.

Geralmente esses pacientes – e seus familiares – já se encontram bastante ansiosos ou desgastados pela sua odisséia em busca de um diagnóstico.

Como resultado, podem adotar atitudes muito agressivas, exigentes ou defensivas diante do médico, e este pode acabar tendo vieses afetivos que interferem no seu raciocínio.

Outro comportamento desses pacientes pode ser a tendência a documentar e relatar para o médico absolutamente qualquer sinal ou sintoma, por ínfimo que seja, na esperança de este ser a pista que faltava para o diagnóstico.

São estes pacientes que entram no consultório do médico com uma lista imensa de queixas, ou com imensos volumes de exames. Nesses casos, o excesso de informação acaba sendo um entrave ao raciocínio do médico, que se vê paralisado diante de tantos sintomas e resultados de exames.

2. FATORES DO SISTEMA

Nunca se deve esquecer a contribuição das limitações do próprio sistema de saúde.

Às vezes o paciente precisa da avaliação de um determinado especialista, ou de um exame complementar específico, ao qual o paciente não tem acesso fácil.

3. fatores do médico

Aqui entram as inúmeras possíveis falhas do processo cognitivo do médico, que podem ser causas de dificuldade, atraso ou erro no diagnóstico. (Já discutimos algumas dessas possíveis falhas nos nossos artigos sobre erros diagnósticos e sobre vieses cognitivos.)

O viés de autoridade é um exemplo. Se o paciente já foi avaliado por um médico que é conhecido e respeitado por outros médicos, então o diagnóstico feito por esse primeiro médico dificilmente é questionado – mesmo que esteja errado.

Uma outra situação é o “momento diagnóstico” (“diagnostic momentum“): uma vez que o paciente recebe um determinado diagnóstico, esse diagnóstico ganha mais força (“momento“) quanto mais vezes é repetido – especialmente se esse diagnóstico é feito por especialista e/ou anotado em prontuário.

Um exemplo de "momento diagnóstico"

Uma adolescente de 17 anos já teve vários episódios de inchaço na face, durando algumas horas a poucos dias. Da primeira vez, os sintomas foram atribuídos a uma “reação alérgica“. No entanto, a paciente não tinha prurido e nenhum antecedente alérgico. Mesmo assim, em todos os episódios seguintes, em que ela foi atendida por diversos médicos em vários serviços diferentes, o diagnóstico foi sempre o mesmo (“deve ser outra reação alérgica“). Só muito mais tarde, quando a adolescente começou a ter crises de dor abdominal junto com o inchaço na face, é que alguém se aventurou a considerar outra explicação para o quadro – e o diagnóstico (correto) de angioedema hereditário foi realizado.

Outro fator é o excesso de confiança. Um médico que confia demais no seu julgamento pode acabar considerando totalmente excluída uma hipótese se a apresentação do paciente não for inteiramente compatível com o seu modelo mental dessa doença. E, uma vez que o médico descarte essa doença, fica quase impossível reconsiderar essa possibilidade no futuro.

Só que, na verdade, bem poucas doenças se apresentam exatamente como estão descritas no livro. Em outras palavras: a maioria das doenças não se apresenta como a “figura de livro“!

As doenças não leem livros!

Finalmente, pode haver erros na interpretação de testes diagnósticos. Muitos médicos raciocinam como se os exames complementares fossem determinantes absolutos de alguns diagnósticos – mais ou menos assim: 

  • se o exame é positivo, o paciente tem a doença;
  • se o exame é negativo, o paciente não tem a doença.

Só que não é bem assim! Todo exame complementar tem suas limitações. (Lembra da sensibilidade e especificidade?) Existe lúpus eritematoso sistêmico com FAN negativo. Existe endocardite com hemocultura negativa (isso ocorre em 10 a 20% das endocardites!). Por isso, é importante conhecer as características do teste diagnóstico que você está empregando, para não ser enganado por falsos-positivos ou falsos-negativos.

dificuldades inerentes à doença:

Como já dissemos, as doenças não leem o livro. Muitas doenças têm variantes e manifestações atípicas.

Há pacientes com a forma hipocalêmica clássica da síndrome de Bartter que se apresentam com hipercalemia.

A dor em faixa característica da pancreatite aguda só aparece em uma pequena percentagem dos casos.

A tríade característica do feocromocitoma (sudorese + palpitações + cefaleia) ocorre em menos de metade dos casos.

Dengue pode cursar sem febre.

Em casos assim – obviamente – o diagnóstico é mais difícil.

Abaixo apresentamos uma classificação interessante e muito útil das doenças, que pode ajudar a entender por que algumas patologias são mais difíceis de diagnosticar do que outras:

Possíveis apresentações das doenças:

As diferentes doenças podem se apresentar como:

  1. Doenças comuns com apresentação típica;
  2. Doenças comuns com apresentação atípica;
  3. Doenças raras com manifestação típica;
  4. Doenças raras com manifestação atípica;
  5. Doenças desconhecidas.

É claro que o diagnóstico não costuma apresentar dificuldades no caso das doenças do grupo 1. O diagnóstico difícil começa a aparecer nos grupos 2 e 3, e é ainda mais difícil (às vezes, praticamente impossível) nas doenças dos grupos 4 e 5.

Interessantemente, embora a dificuldade seja maior nos últimos grupos, observa-se que a grande maioria dos diagnósticos difíceis (ou dos erros diagnósticos) ocorre no grupo 2: as doenças comuns com manifestações atípicas. Afinal, doenças comuns são… mais comuns!

Uma outra classificação das doenças é a que compara as doenças com animais (veja quadro abaixo):

a zoologia das doenças

Em relação à sua apresentação e dificuldade de diagnóstico, as doenças podem ser:

  1. Cavalos;
  2. Zebras;
  3. Macacos;
  4. Camaleões;
  5. Unicórnios.

Os cavalos são as fáceis de diagnosticar: doenças comuns com apresentação típica – bichos que estamos acostumados a ver todos os dias e reconhecemos sem muita dificuldade.

O problema são as outras… que vamos comentar logo abaixo:

Zebras

Estas são as doenças raras.

O apelido de “zebras” para as doenças raras se deve a um famoso ditado criado pelo Dr. Theodore Woodward, professor na Universidade de Maryland nos anos 1940, que sempre dizia a seus internos:

"quando ouvir barulho de cascos, pense em cavalos, não em zebras."

Ele queria dizer, com isso, que as doenças comuns são mais comuns, e por isso devem ser consideradas primeiro.

No entanto, embora cavalos sejam bem mais comuns, o fato é que zebras existem!

Doenças raras

O Ministério da Saúde, no Brasil, define doença rara como aquela que afeta até 65 pessoas em cada 100.000 indivíduos. Embora cada uma delas seja incomum, estima-se que existam cerca de 6.000 a 8.000 doenças raras (das quais 80% são genéticas). Ou seja: somando os portadores de todas essas doenças incomuns, é bem provável que em torno de 6% a 8% da população brasileira (cerca de 15 milhões de pessoas) sejam portadores de alguma doença rara.

Por isso, é claro que, ao ouvirmos barulho de cascos, devemos pensar primeiro em cavalos (as doenças mais comuns e, por isso, mais prováveis). Mas se só pensarmos em cavalos, nunca vamos detectar uma possível zebra!

macacos

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Estas são as doenças que imitam outras doenças (as “imitadoras”), pois seus sinais e sintomas muitas vezes se sobrepõem aos de outras patologias diferentes, confundindo o diagnóstico.

São os “cavalos em pele de zebra”.

Um exemplo são as doenças desmielinizantes do sistema nervoso central: esclerose múltipla, neuromielite óptica, encefalomielite disseminada aguda e várias leucoencefalopatias podem ter apresentações clínicas bastante semelhantes entre si.

Outro exemplo clássico é a sífilis, que já foi chamada “a grande imitadora” por Sir William Osler, no começo do século passado. Essa doença sexualmente transmissível pode ter tantas apresentações diferentes que frequentemente acaba imitando outras doenças (como, por exemplo, o paciente que se apresenta com gomas sifilíticas que podem sugerir hanseníase).

O lúpus eritematoso sistêmico, a tuberculose (especialmente a extrapulmonar) e a aids são outros exemplos de doenças-macacos.

camaleões

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Estas são as doenças que se apresentam de muitas formas diferentes, e que frequentemente determinam manifestações incompletas, atípicas, discretas ou que mudam ao longo do tempo.

Já falamos que poucas doenças se apresentam com um quadro clínico tão completo como está no livro. Portanto, não se deve excluir apressadamente a possibilidade de alguma doença apenas porque falta algum sinal ou sintoma relevante. Lembre-se:

"Mesmo se você não ouvir barulho de cascos, cavalos podem estar presentes."

Muitos camaleões também são macacos, pois algumas de suas inúmeras variantes imitam a apresentação de outras doenças

Alguns exemplos de camaleões são:

  • o hipertireoidismo, que no idoso pode se manifestar apenas como perda de peso e depressão (levando à confusão com câncer);
  • a febre reumática, que pode se manifestar apenas com coreia;
  • a sífilis congênita, que pode se manifestar apenas como hepatite;
  • as síndromes de febre periódica, que podem cursar sem febre.

unicórnios

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Estas, finalmente, são as doenças desconhecidas.

Não sabemos tudo. A ciência médica avançou muito nos últimos séculos, mas mesmo assim nosso conhecimento sobre as doenças do ser humano ainda é parcial e incompleto.

Conforme a ciência biomédica avança e novos métodos de investigação são desenvolvidos (principalmente a biologia molecular), conjuntos de sintomas que antes não tinham explicação acabam sendo explicados. 

Essas doenças raras, até então desconhecidas, são os chamados unicórnios.

Saber que os unicórnios existem deve nos ajudar a manter nossa humildade intelectual, e a não descartar imediatamente a possibilidade de alguma doença estranha e raríssima apenas porque “nunca ouvimos falar”.

Imagine só: a cada ano, cerca de 200 novas doenças são relatadas na literatura médica – que não eram diagnosticadas antes, por nunca terem sido descritas!

Portanto, não esqueça:

"Se você ouvir barulho de cascos e não encontrar nem cavalos nem zebras, você pode estar diante de um unicórnio."

algumas dicas para avaliar um diagnóstico difícil

Diante de um paciente com diagnóstico difícil, sempre considere as três perguntas seguintes:

  1. Pode ser uma apresentação atípica de uma doença comum? (Essa é uma hipótese mais provável, em geral, do que as doenças raras, pois doenças comuns – mesmo as suas variantes – são mais comuns.)
  2. Pode ser uma doença rara? (Afinal, essas doenças são raras, mas existem! Na dúvida, vá para o livro, consulte algum checklist ou use um aplicativo de diagnóstico diferencial para te ajudar a pensar em possíveis diagnósticos.)
  3. Pode ser mais de uma doença? (Esta é uma possibilidade bastante razoável em pacientes idosos, imunodeprimidos ou portadores de múltiplas comorbidades.)
(Leia também o nosso passo-a-passo do diagnóstico difícil para outras dicas valiosas!)

conclusões

Em pacientes com diagnóstico difícil, sempre mantenha sua mente aberta para pensar em outras possibilidades (ou seja, faça e mantenha por perto uma boa lista de diagnósticos diferenciais).

Além disso, espere o inesperado: esteja preparado para pensar em zebras se aquele “cavalo” tiver alguma característica que “não bate”.

E nunca diga nunca! Se os sintomas do seu paciente não encaixam em doença nenhuma, você pode estar diante de uma doença nova: um unicórnio!

PARA SABER MAIS:

Kliegman RM, Bordini BJ, Basel D, Nocton JJ. How doctors think – Common diagnostic errors in clinical judgment: lessons from an undiagnosed and rare disease program. Pediatr Clin N Am. 2017;64:1-15.

Aman S, Hasleton P, Hanna A. The great imposter, the great imitator. Br J Cardiol. 2011;18:94-6.

Sotos JG. Zebra cards: an aid to obscure diagnoses. Mt. Vernon: Mt. Vernon Book Systems, 1991.

Autor: Leandro Arthur Diehl

Você pode referenciar o artigo acima usando o Digital Object Identifier (Identificador de Objeto Digital) – DOI.

DOI:10.29327/823500-5