Você sabe qual é a diferença entre valor e custo?
Custo é o preço, o quanto você paga por alguma coisa.
Valor é a percepção do benefício final.
Algumas coisas têm muito valor mas não têm preço. É o caso da saúde, ou da vida. Embora o valor dessas coisas não possa ser medido em dinheiro, sempre existe um custo para provê-las.
Com exames complementares, também é assim. Sempre há um custo – no mínimo, financeiro. Mas será que todos os exames agregam valor?…
Recentemente, publicamos nossa lista com os 10 exames mais inúteis da Medicina, que gerou bastante discussão.
Num tema como este, com paradigmas que precisam ser revistos e ainda por cima cheio de incertezas e cálculos complexos, é normal que haja polêmica.
Um dos pontos mais comentados foi que a nossa lista de exames e suas recomendações baseadas em evidências poderiam induzir o médico a tomar condutas baseadas somente em dados, sem necessidade de pensar.
No post de hoje, mostraremos que a ideia é exatamente a contrária: é preciso bastante julgamento!
Um conceito muito útil na tomada de decisões sobre exames é a noção de valor.
Vamos ajudar você a aprofundar nesse assunto e encontrar maiores explicações sobre como prover cuidado com valor.
Confira neste texto:
- Os conceitos de cuidado de alto valor (high-value care) e cuidado de baixo valor (low-value care);
- As 10 dificuldades mais comuns que levam ao uso de práticas de baixo valor;
- E uma última reflexão sobre valor, baseada nos 4 níveis do bem para o paciente.
Cuidado de alto valor ou baixo valor?
Este é um assunto bem atual, com um número crescente de publicações a respeito. Uma rápida busca no PubMed com os termos high-value care e low-value care gerou 5.276 pesquisas nos últimos 10 anos.
Abaixo, mostramos algumas definições de cuidado de alto valor, ou high-value care:
“O cuidado à saúde que equilibra o benefício clínico com custos e danos, cujo objetivo é melhorar os resultados para os pacientes.”
The American College of Physicians
“O melhor cuidado para o paciente, com resultado ótimo para as suas circunstâncias, entregue a um preço justo.”
The Institute of Medicine
Ou seja: não é apenas baratear o cuidado dos pacientes, mas sim, entregar a eles o melhor cuidado de saúde, com o mínimo de desperdício e com o menor risco de danos.
Já o cuidado de baixo valor diz respeito àquelas condutas que trazem muito pouco (ou nenhum) benefício aos pacientes, ou que custam muito caro em relação ao tamanho do potencial benefício, ou que trazem riscos (nem sempre óbvios à primeira vista).
Cuidado de baixo valor é comum?
Ô, se é!
Nos Estados Unidos, estima-se que pelo menos 20% dos recursos gastos em saúde sejam puro desperdício: serviços, produtos ou processos que são desnecessários e não ajudam os pacientes.
Por isso, temos que ter muito cuidado! Idealmente, deveríamos indicar para nossos pacientes (sempre que possível) apenas intervenções que realmente têm evidências de benefícios, com custo aceitável e com mínimos riscos.
De modo geral, as publicações sobre cuidado de alto valor acabam discutindo vários aspectos do cuidado ao paciente, como, por exemplo:
- Melhor cuidado ao paciente;
- Sustentabilidade do sistema de saúde;
- Riscos e danos ocultos (de testes e tratamentos);
- Screening (rastreamento);
- Desperdício;
- Uso de exames e tratamentos inadequados;
- Percepções e preferências dos pacientes.
Você pode perceber que essa discussão é bastante ampla, englobando tanto aspectos diagnósticos como terapêuticos! E isso transpareceu nas discussões sobre nosso último texto aqui no blog.
Entre as dezenas de comentários feitos ao nosso post da semana passada, percebemos que muitos leitores limitaram-se a criticar o uso excessivo e mal justificado de exames. Outros leitores, no entanto, também comentaram sobre outros aspectos da prática médica, como a visão antropológica e a relação de cura entre médico e paciente, a experiência pessoal e o feeling (ou intuição médica) no julgamento individualizado de cada situação.
Todos esses fatores acabam tendo importância ao estimarmos o valor de uma conduta!
Como a avaliação de valor de uma intervenção engloba muitos conceitos e dados, incluindo estatísticos, tentamos identificar algumas dificuldades principais para mensurar valor. Veja a lista abaixo:
10 dificuldades para avaliar valor
1) Um requisito essencial é estar antenado com os dados e evidências que vão surgindo sobre os benefícios e riscos das mais diversas condutas. Difícil, mas não desanime! Uma grande ajuda é a campanha internacional Choosing Wisely. Essa iniciativa oferece listas com várias recomendações e referências, inclusive em parceria com sociedades médicas no Brasil, e disponibiliza até mesmo um aplicativo (para iOS) para consulta rápida às recomendações.
2) Outra coisa é ter em mente que nem tudo que pensamos ser de uma certa maneira, ou que parece lógico na nossa cabeça, de fato é real. Isso porque a Medicina é uma ciência complexa e há muitas variáveis em jogo. Um exemplo: existe uma associação entre andar de BMW e ter melhores desfechos cardiovasculares. Isso quer dizer que BMWs previnem infarto? Não! Ter uma BMW indica melhores condições socioeconômicas, e estas é que são as responsáveis pelo melhor perfil de risco! O carro, aqui, é uma variável de confusão – um fenômeno bem conhecido em pesquisas. Este é um exemplo meio óbvio, mas em outras situações pode ficar bem mais difícil perceber essa confusão.
3) A associação de uma alteração com um desfecho clínico não significa, necessariamente, que corrigir a alteração melhorará o desfecho. Um exemplo é a vitamina D. Pessoas com níveis mais baixos têm maior risco de desfechos cardiovasculares ou depressão – mas repor a vitamina nem sempre melhora esse risco.
4) Muitas pessoas confiam demais no screening como método para prevenir desfechos ruins. Um dos itens bastante comentados no nosso texto da semana passada foi sobre a necessidade de exames pré-operatórios em pacientes e cirurgias de baixo risco. Alguns disseram que já viram pacientes saudáveis falecerem de TEP no centro cirúrgico, e isso justificaria o uso sistemático de exames pré-operatórios. Sim, esse tipo de incidente ocorre, mas a pergunta é outra: será que os exames teriam identificado o problema? Acho que não, pois se tivessem identificado, a cirurgia teria sido suspensa!
5) É preciso levar em conta potenciais efeitos em cascata (ou “efeito dominó”) pela realização de exames desnecessários. Eventuais alterações nesses exames podem levar o médico a solicitar mais exames para investigar os achados dos primeiros, consultas com especialistas e até a intervenções invasivas – sem benefício. (Lembre-se que, se o paciente tem baixo risco de uma doença, é mais provável que um exame com resultado positivo seja um falso-positivo!) Nesta semana mesmo, um artigo do JAMA Internal Medicine mostrou que a realização de eletrocardiogramas de rotina (um exame “simples” e “barato”) antes de cirurgias de catarata aumentou em 10 vezes o número de exames e em 18% os custos totais do tratamento.
6) Relações custo-benefício também são complicadas, em especial no screening. É difícil traduzir em termos individuais dados populacionais. Por exemplo, em algumas populações, o rastreio de câncer de mama leva a muitos falsos-positivos e a excesso de diagnóstico (overdiagnosis) e intervenções desnecessárias – mas também identifica alguns casos de câncer de fato. Como comparar o benefício do diagnóstico precoce de um câncer em poucas mulheres com o malefício de exames adicionais, biópsias, cirurgias, custos e estresse psicológico (por falsos-positivos) em muitas outras?
7) Nem tudo é preto no branco! Há exames e tratamentos que têm amplo corpo de evidências, determinando com muita segurança seu potencial benefício (ou malefício). Mas também há muitas outras intervenções que são menos estudadas ou têm evidências mais conflitantes. Estas últimas ficam numa “zona cinzenta”, e seu uso requer julgamento clínico adequado e decisão partilhada com o paciente.
8) Muitos médicos pedem exames a mais, na busca do santo graal do “risco zero”, ou a segurança absoluta. Essa é uma expectativa irreal! No fim, sempre sobrará alguma margem de risco (por menor que seja), que sempre deverá ser discutida e encarada em parceria com o paciente. Se esperamos aumentar ao máximo a segurança do paciente (e, às vezes, a nossa – é a “medicina defensiva”), e para isso pedimos muitos exames de baixo valor, paradoxalmente podemos acabar aumentando a incerteza e o risco, acrescentando ainda mais imprevisibilidade!
9) O lado econômico, que analisa os custos dos exames, é importante, mas não é o único critério e nem o de maior importância. O médico de valor para o paciente não é aquele que usa os recursos mais baratos, mas o que entrega o melhor cuidado.
10) Finalmente, não é só o uso excessivo que conta, mas também o não-uso ou a subutilização de exames e tratamentos de maior valor, que estariam bem indicados naquela situação. O que mais importa é o cuidado adequado – nem menos, nem mais!
Como conciliar tudo isso?
Todos conhecemos a dificuldade em alinhar a boa Medicina com os custos.
Na verdade, temos que alinhar os diversos fins e metas da prática médica.
Qual é a finalidade mais importante? Preservar o SUS ou o convênio médico? Garantir o bem do paciente? Defender a segurança e a defesa do médico?
E quanto à autonomia do médico em fazer seu julgamento clínico individualizado a cada caso? Precisamos abandonar isso e tornar-nos apenas seguidores de diretrizes?
No fundo, todas essas discussões convergem para a essência da prática correta da Medicina. É a verdadeira ética médica – não como um corpo de normas reguladoras, mas como conjunto de valores da profissão e guia para nossa consciência.
Por isso, é necessário dissecar o assunto, para desvendar uma hierarquia de valores que nos ajude a orientar nossas decisões.
A finalidade da Medicina
Precisamos uma visão ética ancorada na tradição médica e baseada na prática clínica. Seguindo o pensamento do Dr. Edmund Pellegrino, exponho brevemente o assunto.
Será que há bens próprios que a Medicina, enquanto Medicina, busca? Que outros objetivos são necessários, mas que não são essenciais à prática médica?
Ora, a finalidade maior da Medicina é justamente fornecer o bem – como cura, alívio, conforto, controle, prevenção das doenças por meio do encontro clínico entre o médico e o paciente.
Ganhar dinheiro, uso de recursos, sustentabilidade, também são fins necessários, mas estes não estão na finalidade direta da Medicina. São bens externos à prática.
Logo, há 2 tipos de bens: os internos e os externos à Medicina.
Os bens internos, essenciais como a própria razão de ser da Medicina, têm uma escala de valores, ordenada em 4 níveis:
Nível 1 - o bem médico
Nesse primeiro nível, encontramos a Medicina correta em termos técnico-científicos. Foi nesse nível que apresentamos nossa breve lista de 10 dificuldades.
Porém, a boa prática não fica só aí! Ela parte daí e se orienta para o cuidado adequado para cada indivíduo. Algo que também o cuidado de valor, segundo o modo como o entendemos, deve buscar.
Nível 2 - O bem para o paciente
Aqui encontramos as especificidades às quais o bem médico deve ser adequado. São os contextos: pessoais, socioeconômicos, culturais.
Um paciente pode receber um cuidado melhor quando elas são consideradas. Quantas vezes já não adiantamos uma consulta, mesmo sem uma indicação técnica expressa, porque sabíamos que isso agradaria o paciente, o estimularia, melhoraria a adesão ao tratamento? É o poder curativo, consolador da relação médico-paciente.
Por outro lado, um paciente pode receber tratamento de qualidade inferior pelas mesmas razões. Por exemplo: um paciente com arritmia não recebe varfarina pois não teria condições cognitivas de usá-la.
Nível 3 - O bem enquanto ser humano
Valores como dignidade, justiça, autonomia e liberdade devem ser respeitados. Suspender tratamentos efetivos devido ao preço alto, ou não oferecer tratamento para doenças raras porque são raras, são exemplos que atentam contra a dignidade humana, ainda que financeiramente justificados.
Nível 4 - o bem espiritual
É o campo que se refere ao sentido da vida, inclusive dentro da enfermidade, que cada indivíduo, com liberdade, responsabilidade e autodeterminação, confere à sua vida. Pode ou não se manifestar sob um sentimento religioso ou uma religião.
É onde uma pessoa pode abrir mão de um tratamento por querer melhor qualidade de vida, ou uma mãe deixe de receber um quimioterápico durante a gestação para proteger o filho, ainda que lhe custe a própria vida.
E a economia? E o mercado?
Certamente devemos usar recursos de forma eficiente e garantir a sustentabilidade do serviço. Um profissional de valor também é aquele que evita desperdício, que faz melhor uso dos recursos, sem comprometer o cuidado ao paciente.
Porém, só o livre mercado não garante a qualidade, e a competição per se não gera a excelência, pois são de ordem diferente.
É a prática individual, baseada numa ética adequada ao espírito da Medicina e apoiada pelos sistemas de saúde, que leva adiante esse empreendimento moral que é a Medicina.
E o sistema?
Por fim, como também comentaram no nosso post da semana passada, não podemos colocar todo o peso nas costas do médico – em especial no Brasil, onde anos de corrupção e incompetência levaram a saúde no ponto em que está.
Isso, além de injusto, causa também danos morais e psicológicos aos próprios médicos!
“As causas do uso excessivo são complexas e sistêmicas, e incluem pagamentos por volume, medo da negligência, expectativas dos pacientes, falta de tempo com os pacientes, hábitos de prática normativa, medo da incerteza, superestimativa dos benefícios do tratamento e falhas na ciência. Ninguém poderia dizer que é toda dirigida por pagamentos.”
The Lown Institute
CONCLUSÕES
A relação única entre médico e paciente não pode ser simplesmente substituída por dados e diretrizes gerais. Estes devem servir como subsídio para a tomada de decisões individualizadas e de maior valor.
A sustentabilidade e o desperdício são preocupações justas, mas devem estar alinhadas à boa prática.
Evitar exames e tratamentos desnecessários é evitar mais variáveis, incertezas e riscos, conhecidos e ocultos.
Uma sólida visão ética, ainda que simples, mas adequada à nossa vida médica, permite reunir os ângulos e pontos de vista numa unidade de finalidade.
No fim das contas, o que interessa é garantir o melhor para o seu paciente!
Para saber mais:
Pellegrino ED. The internal morality of clinical medicine: a paradigm for the ethics of the helping and healing professions. Journal of Medicine and Philosophy, 2001.
Gawande A et al. Avoiding low-value care. New England Journal of Medicine, 2014.
Autores:
- Fabrizio Almeida Prado
- Leandro Arthur Diehl
Você pode referenciar o artigo acima usando o Digital Object Identifier (Identificador de Objeto Digital) – DOI.
DOI: 10.29327/823500-65