selena gomez - fevereiro roxo e o lobo do diagnóstico - raciocínio clínico - lupus

A popstar adolescente Selena Gomez teve problemas sérios nos rins e acabou precisando de um transplante renal em 2017.

A atriz e comediante Kristen Johnston começou a ter dificuldades para subir escadas aos 46 anos e passou por 17 médicos até descobrir o diagnóstico.

A cantora Paula Abdul era jurada do programa “American Idol”, mas precisou sair do programa porque sentia muita dor e não conseguia se concentrar.

A cantora Toni Braxton foi hospitalizada em 2010 e desde então “parece estar gripada todos os dias”, sendo frequentemente forçada a ficar de cama por fadiga extrema.

A apresentadora de TV Astrid Fontenelle precisa tomar 45 comprimidos por dia para controlar uma doença que descobriu em 2012.

O que todas essas celebridades têm em comum?

É simples.

Todas elas são portadoras da mesma doença: o lúpus eritematoso sistêmico (LES), ou simplesmente lúpus.

Outras celebridades com lúpus

A famosa escritora americana Flannery O’Connor lutou 15 anos com a doença, numa época em que não havia tratamento, e acabou falecendo com apenas 40 anos.

O cantor Seal tem cicatrizes no rosto devido à forma cutânea da doença (lúpus discoide).

Lady Gaga teve uma tia que morreu de lúpus. Depois disso, colheu exames de sangue que foram positivos para alguns marcadores da doença (embora não tenha sintomas).

Fevereiro roxo: o mês do Lúpus

Já é um costume que cada mês tenha uma doença (ou mais de uma) para ser lembrada.

Fevereiro é vez do Lúpus Eritematoso Sistêmico (e também da fibromialgia e do mal de Alzheimer).

Veja abaixo um calendário das doenças, mostrando os meses e as cores correspondentes:

calendario-das-doencas-os-meses-e-as-cores - fevereiro roxo e o lobo do diagnóstico - raciocínio clínico

o que é o lúpus?

O lúpus eritematoso sistêmico é uma doença autoimune multissistêmica, caracterizada pela produção exagerada de autoanticorpos. Estes anticorpos anormais formam imunocomplexos que se depositam em diferentes órgãos, resultando em resposta inflamatória e dano tecidual.

A causa não está totalmente elucidada, mas fatores ambientais e genéticos são grandes influenciadores.  

O lúpus é cerca de 10 vezes mais comum em mulheres que em homens, e cerca de 3 vezes mais comum em negros que em caucasianos. A maioria dos casos surge entre os 18 e os 40 anos, mas 20% são de início tardio, com início após os 50 anos.

por que o lúpus tem esse nome?

O lúpus é uma doença que é conhecida desde os tempos de Hipócrates.

Cerca de 400 anos antes de Cristo, o pai da Medicina denominou as lesões cutâneas do LES de Herpes esthiomenos. Porém, Hipócrates pensava que essa era uma doença restrita à pele, e usava o mesmo nome para descrever qualquer lesão cutânea semelhante. 

Já no século XIII, um cirurgião da Escola de Salerno – Roggerio de Frugardi – percebeu que as lesões características do LES eram diferentes das de outras doenças. Foi ele quem criou o nome lúpus (do latim lupus, “lobo”). Para ele, as lesões erosivas e ulcerativas da doença tinham um aspecto que lembrava a mordida de um lobo!

 Nessa época, acreditava-se que era uma “doença que rói e que come a carne”, tornando o LES conhecido pela população como noli me tanger (“não me toque”, em latim).

Foi somente no século XIX que um estudioso chamado Robert Willian criou uma classificação de doenças de pele com base em manifestações clínicas. Chamou de herpes as doenças de pele vesiculares e de lúpus as que eram destrutivas e ulcerativas. 

O famoso termo “sinal da borboleta” surgiu em 1846, quando o médico austríaco Ferdinand Von Hebra o introduziu para descrever o eritema malar característico da doença.

O comprometimento orgânico da doença só foi descoberto no fim do século XIX pelo célebre Sir William Osler, através de observações de necropsias. Assim, a ideia de que o LES era uma doença restrita à pele chegou ao fim.

Foi Osler quem adicionou o nome do meio (“eritematoso”) e o sobrenome (“sistêmico”) à doença, em 1895!

Mas foi só quando surgiram maiores conhecimentos sobre a Imunologia, no século XX, que o LES foi melhor compreendido.

Hargraves, Richmond e Morton descreveram o fenômeno das células LE, em 1948: neutrófilos que “engolem” os núcleos de outras células.

Já na década de 1950, descobriu-se que esse fenômeno era devido à presença de anticorpos anormais, dirigidos contra antígenos do próprio paciente – neste caso, contra os núcleos das células fagocitadas.

Esses anticorpos ganharam o nome de Fatores Antinucleares (FAN). Este foi um grande salto no conhecimento sobre a doença, pois os anticorpos antinucleares podiam ser dosados no sangue e servir como marcadores da presença do LES.

A imensa maioria dos pacientes com LES têm FAN positivo: a sensibilidade é de cerca de 93%. No entanto, a especificidade do teste ainda é baixa: cerca de 57%. De fato, o FAN pode ser positivo em inúmeras outras condições, como infecções virais, hanseníase, neoplasias e, principalmente, linfomas.

Por essa razão, não basta ter FAN positivo para receber o diagnóstico de LES. (Viu, Lady Gaga?) É preciso ter um conjunto de sinais e sintomas compatíveis.

Foi por isso que o American College of Rheumatology desenvolveu os seus critérios diagnósticos para o lúpus eritematoso sistêmico, que foram publicados pela primeira vez em 1982 e vêm sendo constantemente revisados desde então.

Critérios diagnósticos do Lúpus Eritematoso Sistêmico ( SLICC, 2012 )

critérios clínicos:

1) Lúpus cutâneo agudo: inclui rash malar, lúpus bolhoso ou rash fotossensível;
2) Lúpus cutâneo crônico: rash discoide, hipertrófico ou paniculite lúpica;
3) Alopecia não cicatricial;
4) Úlceras orais (palato, boca ou língua) ou nasais;
5) Acometimento articular: sinovite de 2 ou mais articulações, ou artralgia com rigidez matinal >30 minutos);
6) Serosite: dor típica por >1 dia, ou derrame, ou atrito pleural ou pericárdico;
7) Acometimento renal: proteinúria >500mg/24 horas ou cilindros hemáticos;
8) Acometimento neurológico: convulsão, psicose, mielite, mononeurite múltipla, neuropatia, confusão aguda;
9) Anemia hemolítica;
10) Leucopenia <4.000/mm3 ou linfopenia <1.000/mm3;
11) Plaquetopenia <100.000/mm3. 

CRITÉRIOS IMUNOLÓGICOS:

12) FAN positivo;
13) Anti-DNA positivo;
14) Anti-Sm positivo;
15) Anticorpos antifosfolípide positivos;
16) Complemento reduzido (C3, C4 ou CH50);
17) Teste de Coombs direto positivo na ausência de anemia hemolítica. 

DIAGNÓSTICO:

LES está definido na presença de 4 destes 17 critérios, incluindo pelo menos um critério clínico e um critério imunológico, OU na presença de nefrite lúpica comprovada por biópsia renal.

Os sintomas gerais mais comuns são fadiga, mialgia, febre baixa, emagrecimento e queda de cabelo, devido à inflamação na pele, articulações, rins, nervos, cérebro e serosas, por deposição de imunocomplexos. 

No entanto, as manifestações mais frequentes e mais características são as lesões de pele. A mais clássica é a famosa “asa de borboleta”, um eritema que se espalha pelas regiões malares e dorso do nariz (mas nem sempre presente).

por que estamos falando de lúpus aqui neste site?

Porque o lúpus é, muitas vezes um diagnóstico difícil: pode assumir as mais diversas apresentações clínicas (veja as histórias das celebridades no começo deste post).

Esta diversidade de manifestações faz com que o lúpus seja uma armadilha diagnóstica perfeita!

Não à toa, esta doença é tão frequentemente citada em séries de TV sobre raciocínio clínico diagnóstico, como a do Dr. House.

notlupus - house md - lúpus - raciocínio clínico

LÚPUS: UMA GRANDE IMITADORA

Num post passado já falamos das grandes imitadoras, e, claro, o LES é uma delas. Esse é o tipo de “doença camaleão“, que você sempre pode sugerir como hipótese na discussão de praticamente qualquer caso clínico!

Outras colagenoses, como artrite reumatóide, esclerodermia, polimiosite, síndrome de Sjögren, além da púrpura trombocitopênica idiopática (PTI), a hanseníase, a endocardite bacteriana e inúmeras vasculites fazem parte do diagnóstico diferencial. 

Em alguns casos, o lúpus pode apresentar-se com linfadenopatia generalizada, levando à confusão com linfomas ou infecções sistêmicas, mas os gânglios do lúpus raramente são de tamanho superior a 2cm.

Casos mais raros, como o da atriz Kristen Johnston, que abriu a doença com uma mielite transversa, são verdadeiros desafios diagnósticos – primeiro, pela dificuldade em reconhecer; segundo, pela necessidade imediata de tratamento.

Em casos duvidosos, os critérios diagnósticos do LES são importantes para a diferenciação. Mesmo assim pode haver quadros complexos, como a síndrome de superposição, a doença indiferenciada do colágeno e a doença mista do tecido conjuntivo, em que é fortemente recomendável a avaliação por um reumatologista experiente.

 Por todas essas razões, pacientes com LES podem passar muito tempo sem o diagnóstico correto, o que, além de lhes causar sofrimento, também os expõe a complicações graves e potencialmente fatais, como o tamponamento cardíaco, a encefalite e a nefrite lúpica.

Nefrite lúpica: Selena Gomez e a doadora do seu rim transplantado.

LÚPUS: A IMPORTÂNCIA DA CONSCIENTIZAÇÃO

Conhecendo um pouco mais sobre o LES, fica fácil entender porque a campanha do Fevereiro Roxo é importante para a conscientização do público em geral – e também dos profissionais da saúde!

Afinal, em virtude da sua imensa variedade de apresentações, pode ser muito difícil o médico suspeitar de lúpus já na primeira consulta, especialmente se o paciente for homem. 

O atraso no reconhecimento do LES pode levar a complicações irreversíveis da doença.

É o lobo mau do diagnóstico!

PARA SABER MAIS:

Hickman, Ruth J. A historical look at the characterization of lupus as a systemic disease. The Rheumatologist, outubro de 2018.

Dutschmann, Luís Afonso. Lupus eritematoso sistémico: alguns aspectos históricos. Revista de Medicina Interna, 2006.

Petri M et al. Derivation and validation of the Systemic Lupus International Collaborating Clinics classification criteria for systemic lupus erythematosus. Arthritis & Rheumatology, 2012.

Se quiser saber mais sobre ações de conscientização sobre o lúpus, sugerimos os sites lupusresearch.org e lupusla.org (quase todas as celebridades citadas neste post colaboram com esta iniciativa).