Todo médico sabe da importância de registrar em prontuário qualquer atendimento ou procedimento, não é mesmo?

Mas você sabia que a maneira de registrar as informações em prontuário pode ser um fator decisivo para ajudar no seu raciocínio clínico?

Veja como, no texto abaixo!

 

O prontuário médico

 

Existem diversas maneiras de fazer registros no prontuário médico, mas alguns requisitos são comuns a todas elas:

  1. Segurança da informação;
  2. Fidedignidade dos dados relatados;
  3. Ter em mente que se trata de um documento;
  4. Direito do paciente de acessar seu prontuário.

Quando um paciente procura um médico, as informações trazidas pelo paciente são decodificadas pelo profissional de saúde, que transforma queixas em sintomas. A partir disso, elaboram-se diagnósticos e tratamentos.

Para que esse processo aconteça, é preciso um método (organização da consulta), uma habilidade (conhecimento das técnicas de comunicação) e algumas competências (conhecimento técnico e raciocínio clínico).

 

ReSOAP: Registro Baseado em Problemas

É aqui que entra a ferramenta que queremos apresentar hoje: o Registro Baseado em Problemas, ou ReSOAP.

O ReSOAP é uma técnica para registro de informações em prontuário médico, de forma a apoiar o desenvolvimento do raciocínio clínico.

Essa técnica baseia-se no método SOAP, criado pelo Dr. Lawrence (“Larry”) Weed em 1966.

O Dr. Weed acreditava que a maneira como anotamos dados no prontuário acaba moldando a maneira como raciocinamos – daí a importância de termos um método adequado para orientar nosso registro e nosso raciocínio!

(Já falamos do Dr. Larry Weed em outro post: confira!) 

O SOAP rapidamente tornou-se o modelo básico para registros em prontuários médicos nos Estados Unidos e em vários outros países.

O nome SOAP vem dos 4 componentes básicos do prontuário, neste método:

 

S – Subjetivo

O – Objetivo

A – Análise (ou Avaliação)

P – Plano

 

Você já ouviu falar do ReSOAP? Sabe como fazer?

Vamos mostrar para você como funciona o ReSOAP, trazendo o Sr. Rui para nos ajudar a exemplificar!

 

Primeiro passo: Identificação

O ReSOAP começa de forma semelhante aos diversos tipos de registro em prontuário: com a identificação do paciente.

Aqui devem ser colhidos dados importantes para o bom andamento da consulta: sexo, idade, profissão…

Este momento também é fundamental para o início da relação médico-paciente. Chamar pelo nome, olhar nos olhos, cumprimentar com um aperto de mão, convidar para sentar: coisas simples que fazem diferença no atendimento.

Outra dica é anotar na identificação (além dos dados de praxe) alguma informação pessoal do paciente que ajude o médico a “quebrar o gelo” nas consultas seguintes. Por exemplo: o nome dos filhos ou netos, o time do coração ou alguma outra característica que possa ser assunto para iniciar uma conversa amigável.

Vamos a um exemplo:

Identificação:

 

Rui, 65 anos, pardo, casado, evangélico, trabalha como pintor (registrado) e aos finais de semana como garçom (há mais de 30 anos), natural de Sertanópolis, mora com a esposa, 5 filhos, 2 noras e 3 netas (Aline, Ana Paula e Tatiana).

A partir desses dados, já podemos pensar em muitas coisas.

Idoso.

Trabalha exaustivamente em mais de um emprego, há 30 anos, inclusive aos finais de semana. Qual o impacto do trabalho em sua vida? Gosta? Sente-se cansado, exausto? Terá condições de se aposentar?

Tem uma religião. É praticante? Qual a relação de sua crença com sua saúde (alguns esperam milagres, outros cuidam-se por entender o corpo como algo sagrado)?

É casado, tem filhos e netos e moram todos juntos – um aglomerado de pessoas na mesma casa. Vivem bem? Como está a saúde mental? Caso o Sr. Rui apresente alguma doença infectocontagiosa, por exemplo, saber quantas pessoas moram com ele faz toda a diferença.

 

Segundo passo: Subjetivo

 

No #S (Subjetivo), colocamos a história relatada (fala espontânea) ou referida (resposta às perguntas) pelo paciente. Também pode incluir impressões, expectativas ou medos do paciente.

É importante deixar o paciente falar à vontade (principalmente nos minutos iniciais da consulta), sem interrupções precoces.

(Já falamos sobre isso no post sobre a arte da anamnese!)

Devemos também tentar perceber e registrar indicativos de melhora e piora, experiências positivas e negativas com a doença ou tratamentos, a percepção da pessoa sobre a evolução do quadro e eventuais preocupações acerca de sintomas, exames, medicações.

Considere qual modelo explicativo foi elaborado pela pessoa doente para explicar o que está sentindo.

É necessário delimitar o motivo da consulta e quais os objetivos do paciente com aquele encontro, de forma clara e objetiva.

Veja exemplo abaixo, continuando o registro do atendimento ao Sr. Rui no modelo ReSOAP:

#S

 

Paciente relata dor e edema em hálux direito há algumas horas, dor de intensidade 8/10, piora ao caminhar. Fez uso de ibuprofeno 600mg, porém a dor retornou. Refere dois episódios anteriores semelhantes, aos 50 e aos 54 anos, mas desta vez a dor está mais intensa.

Mostra-se preocupado com sua saúde. Acredita que a dor seja um sinal de câncer, pois seu pai faleceu dessa forma e teme seguir os passos dele.

Além disso, refere dor lombar, várias idas ao Pronto Atendimento, onde foi prescrito diclofenaco, com melhora da dor.

Dores no estômago, prescrito omeprazol também no Pronto Atendimento.

Refere não dormir bem, ficar pensando em muitas coisas antes de pegar no sono. Tem medo de seu diabetes, que “vive alto”, e de sua pressão, que “qualquer coisinha já sobe também”.

Veio à consulta para resolver a dor no pé, tem medo que seja algo pior.

Nega períodos febris e perda de peso.

Tabagista 30 maços/ano, etilista (4 doses ao dia há 45 anos), nega uso de outras drogas, não faz atividade física (sem tempo) e come “tudo o que vê pela frente”.

Nega alergias. Nega cirurgias prévias.

Seu pai faleceu de câncer de garganta aos 67 anos. Sua mãe, aos 80 anos, tem uma vida tranquila, com uma hipertensão controlada. 

Terceiro passo: Objetivo

Uma vez feitos a escuta qualificada, os questionamentos dirigidos e a compreensão do motivo da consulta, chegamos ao passo #O (Objetivo) do ReSOAP.

É aqui que relatamos os dados que podemos observar diretamente: sinais vitais, exame físico, exames complementares, medicações em uso, impressões do médico.

Continuando o exemplo do Sr. Rui:

#O

 

Bom estado geral, eupneico, fáceis dolorosa, preocupado

PA: 130/80mmHg, FC: 91, saturação 94%, HGT 111

Oroscopia normal, ausência de linfonodomegalia cervical

Ausculta pulmonar com murmúrios vesiculares presentes e sibilos expiratórios

Ausculta cardíaca rítmica e normofonética

Abdome flácido, indolor, sem visceromegalias

Membros inferiores sem edema, pulsos palpáveis simetricamente

Hálux direto com edema, calor, rubor, limitação do movimento.

Em uso de: omeprazol 20mg/dia, enalapril 20mg 2x/dia, hidroclorotiazida 25mg/dia, metformina 850mg 3x/dia, glibenclamida 5mg 2x/dia, sinvastatina 40mg/dia, AAS 100mg/dia, prometazina 25mg/noite, ibuprofeno 600mg 6/6h se dor, ômega-3 3cp/dia, ginkgo biloba 1cp/dia, hidróxido de alumínio se azia, diclofenaco se dor na coluna (uso há anos, 3-4x por semana). 

Quarto passo: Análise

 

“A qualidade do A e P é o que separa médicos medianos de excelentes.”
Jeremiah Fleenor

 

Esta é a hora de se perguntar “O que eu penso diante disso?

Podem ser incluídos problemas de uma forma geral, síndromes, diagnósticos fechados e até mesmo sintomas que ainda não se enquadraram. Este campo permite incluir hipóteses, interrogações, negações e suspeitas.

Ou seja: é neste item que se faz o registro do raciocínio clínico do médico, dentro do formato ReSOAP.

Nesta etapa, recomendamos não esquecer de fazer uma anotação mínima de diagnóstico diferencial. Afinal, como já vimos, o motivo mais comum para deixar passar um diagnóstico é não ter pensado nele!

 

#A

 

1. Hoje: Monoartrite aguda em hálux: 1) Gota? (mais provável); 2) Artrite séptica? (sem febre); 3) Trauma? (sem história)

2. Hipertensão, Diabetes, Dislipidemia

3. Etilismo, Tabagismo, Sedentarismo

4. Polifarmácia / Cascata de prescrição / Abuso de AINE

5. Falta de coordenação do cuidado

6. Medo de câncer – história familiar

7. Saúde do trabalhador – sobrecarga laboral, dupla jornada

Quinto passo: Plano

 

A parte final do ReSOAP é o #P: Plano de cuidados compartilhados, onde serão registradas as condutas que serão tomados em relação aos problemas elencados na etapa #A: Análise.

São descritos quatro tipos principais de planos:

  1. Planos Diagnósticos: provas diagnósticas para elucidação do problema;
  2. Planos Terapêuticos: indicações terapêuticas planejadas e pactuadas para a resolução ou manejo do problema da pessoa: medicamentos, dietas, mudanças de hábitos;
  3. Planos de Seguimento: estratégias de seguimento longitudinal e cuidado continuado;
  4. Planos de Educação em Saúde: informações e orientações apresentadas e negociadas com a pessoa, além de conter sugestões ou dicas para o médico seguir nos próximos encontros.

No nosso exemplo com o Sr. Rui:

 

#P

 

1. Prescrevo medicação endovenosa para controle da dor aguda e via oral para casa; atestado para o trabalho e repouso.

2. Pactuamos coleta de exames laboratoriais (últimos há mais de 5 anos) para avaliação de diabetes, função renal, hepática, ácido úrico, dislipidemia e retorno com resultados (prioridade). Oriento mudanças alimentares. Avaliar controle pressórico no retorno.

3. Investigo motivação para cessar etilismo e tabagismo.

4. Desprescrição de hidroclorotiazida (hiperuricemia?), oriento descontinuar uso de anti-inflamatórios e seus riscos.

5. Plano de desprescrever: AAS, omeprazol, prometazina, hidróxido de alumínio. Reavaliar ômega-3 e ginko biloba.

6. Conversamos sobre risco de câncer, tranquilizo quanto à monoartrite.

7. Próxima consulta: avaliar ansiedade e preocupações; qualidade do sono; possibilidade de aposentadoria (interconsulta com assistente social).

Veja que os passos do ReSOAP ajudam em objetivos diferentes:

 

S e O – Coleta de dados e habilidades de comunicação;

A e P – Raciocínio clínico e ação.

 

Lista de problemas

 

“Um problema clínico é tudo aquilo que requer um diagnóstico e manejo posterior, ou aquilo que interfira com a qualidade de vida, de acordo com a percepção da própria pessoa.”
Lawrence Weed

 

Em contextos mais longitudinais (Atenção Básica, especialidades que acompanham o paciente ao longo da vida), podemos fazer a lista de problemas de cada pessoa e deixá-la na folha de rosto do prontuário.

Nesta lista, relacionamos todos os problemas clínicos, com data de início e data de resolução (quando for o caso).

Dessa forma, a Análise (#A) no ReSOAP, pode ser mais sucinta, contendo apenas a análise do atendimento do dia.

 

Vantagens do ReSOAP

 

Resumindo, o Registro Baseado em Problemas – ReSOAP é uma técnica que pode contribuir para:

  1. Qualificar o raciocínio clínico;
  2. Afirmar o cuidado centrado na pessoa;
  3. Garantir longitudinalidade das ações e a segurança do paciente;
  4. Realizar gestão do tempo;
  5. Priorizar sintomas graves (para o médico) ou muito preocupantes (para o paciente);
  6. Analisar amplamente o contexto;
  7. Estabelecer plano de manejo compartilhado (médico e paciente – corresponsabilização);
  8. Permitir fácil acesso a dados para planejar ações preventivas e redução de custos: facilidade para avaliar tentativas de tratamento anteriores e quais pensamentos o profissional já teve diante daquele caso;
  9. Facilitar o trabalho em equipe, expandindo essa forma de registro para diversas categorias profissionais.

E aí, gostou desse método? Já conhecia?

Achou fácil de incorporar em seu dia a dia?

Acha que pode ajudar no seu raciocínio e no cuidado ao paciente?

Deixe abaixo suas dúvidas e comentários! 

 

PARA SABER MAIS:

Gusso G, Lopes JMC. Tratado de Medicina de Família e Comunidade. Porto Alegre, Artmed, 2018.

Autora: Beatriz Zampar

Você pode referenciar o artigo acima usando o Digital Object Identifier (Identificador de Objeto Digital) – DOI.

DOI: 10.29327/823500-73