Não é possível aprender o raciocínio clínico apenas com teoria. Atender pacientes e discutir casos são as maneiras práticas de aprender a pensar como médico. Por isso, uma das propostas deste blog é trazer todos os meses uma discussão de caso clínico, da nossa experiência ou da literatura.
Para que as discussões de casos sejam melhor aproveitadas, uma das dicas que se costuma dar é a de pensar em voz alta. Isso significa aprendermos a refletir e expressar como estamos pensando.
O primeiro caso clínico que trazemos foi traduzido e adaptado a partir de um relato publicado no Cleveland Clinic Journal of Medicine. Leia abaixo e vá pensando em voz alta enquanto lê! Depois do caso, seguem os nossos comentários.
Caso Clínico 1
Uma senhora de 75 anos dá entrada no pronto-socorro, acompanhada do filho, com queixas de dispneia e tosse não produtiva. A dispneia é mais importante aos esforços e aumentou progressivamente nos últimos 2 meses.
Ela nega dor torácica, febre ou calafrios. Há 3 semanas ela procurou atendimento médico ambulatorial pelas mesmas queixas e foi tratada com azitromicina por 3 dias, sem melhora. Ela é diabética e hipertensa há 20 anos e tem obesidade grau 3. Também tem artrite reumatoide. Nunca fumou. O filho comenta que percebeu perda de peso e diminuição da ingesta alimentar nas últimas semanas.
Ao exame físico, está tossindo e aparenta estar mal. A temperatura axilar é de 37,7°C, FC: 105 bpm, PA: 140/70 mmHg, FR: 24 rpm e saturação O2 89% em ar ambiente. Não é possível avaliar pressão venosa jugular devido obesidade. Há estertores em ambos campos pulmonares. Ausculta cardíaca sem alterações. Não há edema de extremidades. As mãos e pés estão quentes e há presença de deformidades articulares.
Ela faz uso de lisinopril, atenolol, glipizida e metformina. O filho acha que ela usa outras medicações, mas não tem certeza.
Ela nunca foi atendida neste serviço, de maneira que não há nenhum histórico médico disponível e ela também não trouxe nenhum outro exame ou receitas.
Alguns exames são coletados:
A radiografia de tórax é vista pelo residente da radiologia, e sua impressão inicial é a de congestão vascular pulmonar.
A paciente é internada e recebe furosemida endovenosa. O residente que a admitiu passa o plantão com o seguinte diagnóstico:
Idosa, hipertensa, diabética, com insuficiência cardíaca (IC) descompensada, admitida para tratamento de exacerbação da IC.
Após 2 dias, a dispneia e a tosse não melhoraram.
No 3° dia, a nova residente que assumiu o caso revê a radiografia e observa a presença de opacidades mal definidas, disseminadas em ambos os pulmões. Ele falou com o médico chefe sobre sua suspeita de que houvesse um padrão intersticial sugestivo de uma doença pulmonar primária. O médico chefe ignorou sua preocupação e comentou que IC descompensada era um diagnóstico válido. A residente não voltou mais a tocar no assunto.
Na noite do 4° dia, a paciente piora e tem queda da saturação de O2. É iniciado tratamento com corticoide endovenoso, broncodilatadores e antibiótico de largo espectro.
No dia seguinte, o filho traz exames e medicações que ele localizou na casa da mãe e a equipe descobre que ela vinha usando infliximab para artrite reumatoide nos últimos 4 meses.
Nesse mesmo dia, chega o resultado de um ecocardiograma (realizado no segundo dia da internação) que mostra fração de ejeção normal sem evidência de pressões de enchimento elevadas.
A paciente é então submetida a uma TC de tórax, que revela um padrão reticular com inumeráveis nódulos pulmonares pequenos (1 a 2 mm) e disseminados. O diagnóstico diferencial é então ampliado para pneumonite por hipersensibilidade, linfoma, infecção fúngica e tuberculose miliar.
É iniciado esquema quádruplo para tratamento da TB, que é confirmada após resultado positivo para BAAR no escarro. A paciente evolui com insuficiência respiratória. É admitida na UTI mas continua piorando e evolui a óbito após 14 dias. A necropsia confirma: tuberculose miliar.
Nossos comentários
Claramente, este caso clínico ilustra não só um erro diagnóstico, mas também um diagnóstico difícil. O que podemos aprender com esse caso? Que erros ocorreram e quais poderiam sido evitados? Como pensar diante de um caso mais complexo, envolvendo, por exemplo, múltiplas comorbidades?
Comecemos do começo: a coleta de dados – história e exame físico.
Depois de fazer isso bem feito, o segundo passo seria organizar os dados mais relevantes usando palavras-chave e assim construir um bom resumo do caso.
Neste caso, um bom resumo do caso poderia ser o seguinte:
Se quiséssemos um resumo mais completo, também poderíamos acrescentar dados do exame físico: subfebril (37,7°C), taquicardia, taquipneia, hipóxia e estertores pulmonares bilaterais.
O filho mencionou, ainda, diminuição do apetite e perda de peso.
Agora, de posse de um bom resumo, passamos à geração de hipóteses.
Quais hipóteses esse resumo do problema poderia suscitar?
Insuficiência cardíaca? Doença pulmonar primária?
Comecemos com a dispneia, que pode ser causada por 3 grandes grupos de doenças:
Podemos excluir anemia (pois a hemoglobina estava quase normal) e também ficam menos prováveis quaisquer processos de evolução mais aguda (como pneumonia ou IAM), uma vez que trata-se de um quadro progressivo subagudo (cerca de 2 meses de história). Sendo assim, deveríamos focar em doenças com história mais arrastada (alguns meses): por exemplo, doenças agudas que complicaram ou cronificaram, ou doenças crônicas numa fase inicial.
A hipótese de insuficiência cardíaca (IC) surge facilmente, dada a presença de hipertensão, diabetes e obesidade, todos fatores de risco para doença cardíaca – ou seja, reconhecemos aqui um padrão frequentemente visto nessa condição.
Mas será que a IC, por ser a hipótese mais facilmente lembrada, é mesmo a hipótese mais provável neste caso?
Quando trabalhamos um caso, temos sempre que considerar todos os dados, dando atenção especial aos dados discordantes ou que diminuem a probabilidade de um diagnóstico. São os dados que “não batem” e que nos deixam com a “pulga atrás da orelha”.
Neste caso, temos pelo menos 3 dados iniciais que “não batem” com a hipótese de IC: a ausência de edema periférico, a queda da oximetria e a temperatura subfebril (37,7°C).
Mas tem mais coisa que “não bate”: também não há informações sobre dispneia paroxística noturna nem ortopneia, que seriam esperadas nessa doença. Infelizmente, não foi possível avaliar se havia estase jugular devido à obesidade. Há, ainda, o relato de perda de peso (na IC descompensada, o paciente tende a ganhar peso, pelo edema). Finalmente, o ecocardiograma sem aumento de pressão das câmaras cardíacas fala contra IC.
Assim, podemos considerar que a hipótese de IC, embora fácil de lembrar à primeira vista (ou seja, muito “disponível” para nossa memória), não é tão provável assim, tendo em vista a presença de vários dados que discordam do padrão esperado (o script) dessa doença. Então, inevitável perguntar:
O que mais pode ser?
Restam-nos as doenças pulmonares como a próxima hipótese mais provável. As demais possibilidades do nosso esquema acima (os “outros” na figura) são menos comuns e algumas (como a anemia) já foram descartadas.
Há uma ampla variedade de doenças pulmonares que cursam com dispneia: DPOC, asma, câncer (primário ou metastático), doenças pulmonares intersticiais, TEP crônico…
Provavelmente os mesmos exames seriam solicitados: os de sangue, radiografia, ecocardiograma. Mas o residente já poderia ter pensado mais rapidamente em pedir uma tomografia de tórax. Mais importante, esses exames seriam analisados sob outra ótica, pois seriam solicitados a partir de um raciocínio estruturado baseado em hipóteses e probabilidades.
Como nenhum exame é perfeito, temos que ter em mente que os exames complementares apenas aumentam ou diminuem a probabilidade de uma doença (a partir de uma dada probabilidade pré-teste). O BNP, por exemplo, quando positivo não confirma IC, só aumenta sua probabilidade. Se a probabilidade pré-teste de IC já for alta, um BNP positivo torna essa hipótese muito provável. No entanto, no nosso caso a probabilidade pré-teste de IC não era tão alta assim (tendo em vista os vários dados discordantes), então um BNP positivo faria a probabilidade de IC continuar baixa ou, no máximo, tornar-se moderada. Ou seja: mesmo com BNP positivo, IC continua sendo um diagnóstico duvidoso. (Nunca esquecer que existem várias causas de elevação do BNP, além da IC!)
A radiografia, por outro lado, teria sido interpretada com maior atenção a outras possibilidades diagnósticas, se a primeira equipe de médicos não estivesse tão “ancorada” (presa) à hipótese inicial de IC, e possivelmente a tomografia teria sido pedida mais cedo. O ecocardiograma teria recebido maior atenção e não seria só um exame a mais, pedido apenas para checar “quanto” de disfunção cardíaca ela tinha.
Então, o que inicialmente causou erro diagnóstico nesse caso?
- A impressão inicial desviou toda a investigação posterior;
- Isso foi causado por um ambiente de pronto-socorro (volume de atendimento, pressa, etc.) e por erros no processo do raciocínio;
- O primeiro residente não reconheceu ou não deu importância aos dados discordantes da sua hipótese inicial (IC), dando atenção apenas aos dados que falavam a favor dessa hipótese. Ou seja, ele foi vítima do “viés de confirmação”.
E o que perpetuou o erro?
O primeiro residente passou o caso para os próximos médicos já rotulando a paciente como IC descompensada. Isso causa o chamado “efeito moldura”, ou seja, todos vêem o caso a partir desse rótulo inicial, bloqueando a busca de outras possibilidades diagnósticas.
O que fazer para prevenir isso? Nos plantões, evite passar casos com o diagnóstico já fechado! Diga ao colega que trata-se de uma idosa em investigação de dispneia progressiva e tosse, e que ainda não foi possível confirmar IC.
O primeiro laudo da radiografia de tórax não foi correto.
O que fazer para prevenir isso? Lembre-se sempre que laudos errados ou incompletos são frequentes, então não acredite cegamente no laudo. Além disso, cuidado para não causar o efeito moldura no radiologista! Se você pedir um exame para confirmar IC, é nisso que o radiologista vai pensar. Sugira várias hipóteses no pedido do exame, e se necessário pergunte ao radiologista se outras doenças podem causar o padrão que ele viu na imagem.
O resultado do ecocardiograma demorou para chegar às mãos do médico (um erro do sistema).
O que fazer para prevenir isso? Se um exame é importante, não fique esperando passivamente pelo resultado. Vá atrás do exame, seja proativo!
No meio do caminho, outra residente percebeu o padrão intersticial e questionou o diagnóstico de IC, mas o médico chefe recusou-se a pensar em outras possibilidades e considerou firmado o diagnóstico inicial de insuficiência cardíaca. Depois disso, a residente acomodou-se com o diagnóstico de IC, tendo em vista a autoridade do chefe. Esse é um viés cognitivo, chamado “viés de autoridade” ou “obediência cega”.
O que fazer para prevenir isso? Não ignore sua intuição! Se viu algo destoante, vá em frente e investigue.
Conclusões
Como já dissemos no artigo sobre erros diagnósticos, erros são frequentes, e muitas vezes têm múltiplas causas, como demonstrado neste artigo. Entre os sintomas mais associados a erros diagnósticos, lembre-se que constam dispneia e tosse. Além disso, já falamos dos locais mais comuns de ocorrência de erros – e o pronto-socorro é um deles.
Procure fazer sempre uma lista de diagnósticos diferenciais para os quais o diagnóstico não é tão óbvio à primeira vista. Uma boa estratégia para gerar diagnóstico diferencial foi a que usamos neste caso: um esquema. Ao dividirmos as causas de dispneia em cardíacas, pulmonares e outras, fizemos um esquema que pode ser facilmente lembrado. Procure ir criando ou pesquisando (em livros ou artigos) esquemas para diagnóstico diferencial a partir dos sintomas. Isso agiliza o raciocínio.
Por fim, resta-nos imaginar: por que essa senhora teria apresentado tuberculose miliar? Possivelmente essa complicação foi relacionada ao uso do infliximab para sua artrite reumatoide. Infelizmente, nem a paciente nem o filho lembravam do nome da medicação para contar ao médico na entrada no hospital. É possível que algum médico tivesse lembrado dessa possibilidade se soubesse que a paciente estava em uso de infliximab.
Portanto, neste caso clínico vimos uma sucessão de pequenos erros, relacionados tanto à paciente (que não soube relatar o uso de infliximab) quanto ao sistema (atraso ou erro nos laudos de exames) e, sem dúvida, também ao processo cognitivo dos médicos que a atenderam (em que vários vieses ocorreram, como já vimos). Conhecer todos esses possíveis erros é o primeiro passo para tentar reduzir o risco de que voltem a ocorrer. Por isso, continue acompanhando nosso blog! Todos os meses vamos trazer um caso clínico como este para discussão e aprendizado.
Gostou? Se quiser, leia mais sobre raciocínio clínico clicando nos links abaixo:
- Vieses cognitivos: programados para errar
- Alguns dados sobre erros diagnósticos que vão te surpreender
- Por que cometemos erros diagnósticos?
- O que todo médico precisa saber sobre os processos mentais do raciocínio clínico
- Os três pilares do diagnóstico correto
- O passo a passo do diagnóstico difícil
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PARA SABER MAIS:
Mull N, Reilly JB, Myers JS. An elderly woman with ‘heart failure’: cognitive biases and diagnostic error. Cleveland Clinic Journal of Medicine. 2015;82:745-53.
Croskerry P. From mindless to mindful practice – cognitive bias and medical decision making. New England Journal of Medicine. 2013;368:2445-8.
Moyer MT, Groh B. Disseminated tuberculosis after treatment with infliximab. Hospital Physician. 2006;47-51.
Autores:
- Fabrizio Almeida Prado
- Leandro Arthur Diehl
- Pedro Alejandro Gordan
Você pode referenciar o artigo acima usando o Digital Object Identifier (Identificador de Objeto Digital) – DOI.
Excelente caso. Se não houvesse a dica no título, IC seria a principal hipótese da maioria, realmente é o mais “rotineiro” e disponível. Muito bom ter um exemplo de caso para nos atentar aos diagnósticos menos comuns. Mestre Fabrizio!
Beleza meu caro, é isso mesmo, se olhamos só uma parte dos dados ficamos só com uma impressão que pode ser a errada e não realizamos uma investigação adequada. Abração!
Excelente doutor!! Sem dúvidas IC é o primeiro diagnóstico que vem em mente. Muito bom conseguir analisar os possíveis erros apresentados neste caso.
Pois é, Pedro, insuficiência cardíaca é o diagnóstico mais “disponível” (o que lembramos mais fácil) – mas temos que tomar cuidado, pois nem sempre a hipótese mais fácil de lembrar é a mais provável! Creio que esta seja uma mensagem importante deste caso: tomar cuidado com o chamado “viés de disponibilidade”. Vamos falar muito dele nos próximos posts, fique ligado! Abraço
Bom dia. Parabéns a vocês, Pedro, Leandro e Fabrizio pelo blog. Fabrizio, ótimo exemplo de raciocínio clínico! Que bom começo! Como coincidências sempre existem, dentro da literatura recomendada, gostaria de sugerir para aqueles que ainda não leram, o Editorial de Ely&Graber da American Family Physician de setembro de 2016 (gratuitamente disponível em — http://www.aafp.org/afp/2016/0915/p426.pdf) que apresenta na tabela 1 um checklist para ajudar a prevenir erros diagnósticos e que se aplica completamente ao caso apresentado – e a coincidência mencionada é na mesma tabela há um checklist para dispneia, numa adaptação de uma publicação do Diagnosis..). Forte abraço a vocês, keep going, Vinicius
Obrigado pelos elogios e pelo incentivo, Dr. Vinicius! E obrigado pela indicação do artigo. Realmente muito bom, vamos incorporar ao material que estamos estudando aqui. Continue acompanhando nosso blog. Um abração
O Dr. Mark Graber, um dos autores desse editorial, é um dos maiores estudiosos do raciocínio clínico, e fundador da Society to Improve Diagnosis in Medicine (SIDM). Ainda vamos falar muito dele por aqui!
Olá Dr. Vinícius, obrigado por acompanhar e comentar. Realmente existem check-lists para melhorar o processo diagnóstico e se soubermos incorporar pelo menos o famoso “o que mais pode ser?” já evitaremos muitos vieses e erros cognitivos. Agora quero ver você mandar um caso bacana para o Blog, aguardamos sua contribuição. Um grande abraço!
http://www.aafp.org/afp/2016/0915/p426.pdf
Se clicar em editar, o endereço aparece, ok.
Bela informação, Leandro. Não tinha conhecimento disto; só gosto do artigo. Valeu! Obrigado, Fabrizio. Excelente raciocínio clínico para o caso. Abs, Vinicius
Boa noite! Gostei muito do blog e do caso. Certamente contribuirão muito na minha formação! Gostaria de saber se a hipótese de comprometimento pulmonar pela artrite reumatoide seria uma hipótese plausível. Seria?
Olá Lorena, que bom que você gostou! De fato, fibrose pulmonar pela artrite reumatoide (o chamado “pulmão reumatoide”) também seria uma hipótese pertinente para explicar a dispneia progressiva desta paciente. Essa hipótese estaria dentro de um dos 3 grandes grupos de doenças causadoras de dispneia (o das doenças pulmonares), como você viu acima. O que fala contra o pulmão reumatoide neste caso é o padrão de acometimento pulmonar na tomografia, um pouco diferente do que seria esperado nessa doença. Continue acompanhando! Abraço
Muito obrigada! Pode deixar que já está entre as minhas páginas favoritas. Boa semana!
Muito bom treinar o raciocínio clínico em estudos de caso! Começando agora por aqui!
Que bom que você gostou Lais! Tem bastante material aqui, aproveite! Abraço,