Muito obrigado a todos que participaram do nosso Webcaso #6: Uma jovem cansada!
Recebemos 47 respostas de leitores, com várias hipóteses ótimas!
Abaixo, apresentamos a continuação do caso com os comentários sobre o processo diagnóstico – escritos, assim como o relato inicial deste caso, pela Ana Flávia de Seixas Salomão, acadêmica de Medicina da UFJF.
WEBCASO #6: uma jovem cansada - COntinuação e Diagnóstico
Relembrando nosso caso: uma paciente de 36 anos, asmática e tabagista com dispneia aguda e tosse, no Pronto-Socorro. Essa paciente dá todos os indícios de ter uma asma parcialmente controlada, devido ao uso recorrente (3 vezes por semana) da medicação de resgate e também por ter feito pelo menos duas visitas ao pronto-socorro no último ano.
Nesse cenário, algum diagnóstico salta aos seus olhos?
Mais uma crise asmática, certo?
Seria perfeito: um diagnóstico certeiro, feito com menos de dez minutos de consulta, mais uma vida salva e um plantonista liberado na hora exata de finalizar seu dia (pois já eram 19 horas!).
E pode ser, inclusive, que ao utilizar instintivamente este script, possamos acertar o diagnóstico na maioria das vezes… até que isso dá errado. Até que se faz um fechamento prematuro.
Neste caso, existem algumas peças que não se encaixam tão perfeitamente assim: uma paciente francamente dispneica, com uma saturação limítrofe, porém com sibilos discretos e localizados… além de uma taquicardia inexplicada!
Essa inquietação nos levou à seguinte pergunta:
-Senhora, esse quadro que você está me contando agora, se parece com as duas últimas vezes que precisou vir ao pronto-socorro por causa da sua crise asmática?
A paciente responde, parecendo um pouco aliviada:
-Poxa, é bem isso o que está esquentando a minha cabeça. Tá diferente! Quando eu tenho minha crise de asma, é diferente. A falta de ar vem aos poucos, precisa de uma semana pra começar a me incomodar. Essa, não. Essa nem levou dois dias e já me derrubou…
Essa foi a narrativa da paciente, construída a partir das suas vivências, da sua experiência com a doença. É uma narrativa singular, que apenas ela poderia ter construído. Possui imensa multiplicidade de sentidos… e um valor clínico inestimável!
Embora uma crise de asma ainda pareça uma hipótese coerente, a busca de um diagnóstico diferencial parece ser ainda mais importante.
Então, vamos tentar juntar as peças novamente.
O QUE MAIS PODE SER?
Ao recapitularmos mentalmente a história dessa paciente, existe ainda outro fato peculiar, um possível evento sentinela: a introdução recente de um anticoncepcional oral combinado de alta dose estrogênica, para supressão de sintomas androgênicos que incomodavam a paciente (automedicação? iatrogenia?).
Segundo os Critérios de Elegibilidade da Organização Mundial da Saúde, essa paciente (36 anos, tabagista) seria classificada como Categoria 4 (contraindicação absoluta) ao uso deste tipo de medicação.
Diante desse cenário, pareceu imperioso excluir um diagnóstico de Tromboembolismo pulmonar (TEP), apesar de não haver uma evidência clara de trombose venosa profunda e nem história pessoal/ familiar de eventos trombóticos.
Porém, na presença de uma ausculta tão inocente, uma taquicardia inexplicada, um evento sentinela compatível e uma repercussão clínica tão grave, está mais que justificada a hipótese de TEP.
Se a embolia pulmonar for descarta, ainda teríamos que buscar outros possiveis diagnósticos, ou até mesmo iniciar o tratamento para crise de asma, com mais tranquilidade.
Portanto, foram pedidos alguns exames complementares iniciais, que mostraram os seguintes resultados:
- Radiografia de tórax normal;
- Gasometria arterial: pH 7,47; pO2: 59; pCO2: 30; HCO3: 24; BE: -1
- D-dímero: 2.200 ng/dL (normal: até 500);
- Troponina: normal;
- Ecocardiograma à beira-leito: sem sinais de sobrecarga de câmaras direitas.
Neste momento, devido à forte suspeita clínica de TEP, optou-se por iniciar a terapêutica específica para esta afecção (anticoagulação) juntamente com o suporte clínico, tendo em vista a impossibilidade de se realizar imediatamente uma angiotomografia de artérias pulmonares (que não era disponível no serviço).
Mais tarde, o diagnóstico de TEP foi confirmado em outro serviço e a paciente evoluiu bem com o tratamento.
DIAGNÓSTICO FINAL
Tromboembolismo pulmonar associado ao uso de anticoncepcional oral.
Conclusões
Os scripts de doenças, que adquirimos ao longo de nossa formação, podem nos ajudar a acertar diversos diagnósticos.
Contudo, também podem ser uma armadilha e ocasionar erros diagnósticos, com consequências potencialmente graves, se confiarmos cegamente no primeiro script que nos vem à cabeça.
Por isso, um diagnóstico seguro sempre passa por uma boa coleta de dados, independente do quão seguros estejamos.
Não podemos esquecer: nosso cérebro pode nos pregar peças!
E uma ajuda valiosa para evitar essas armadilhas é simplesmente ouvir o sujeito que se senta à nossa frente, querendo compartilhar conosco um pouco sobre sua vida: nosso paciente.
Sobre a autora:
Ana Flávia de Seixas Salomão é acadêmica do curso de Medicina da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), onde também é integrante do Grupo de Estudos sobre Raciocínio Clínico do Grupo de Educação Tutorial (GET MEDICINA).
Agradecemos imensamente à Ana Flávia pela colaboração!
PARA SABER MAIS:
Charon, Rita. Narrative medicine: a model for empathy, reflection, profession, and trust. JAMA, 2001.
Organização Mundial da Saúde (OMS). Critérios Médicos de Elegibilidade para uso de Métodos Anticoncepcionais. Genebra: WHO, 2009.
Diehl, Leandro. DIEHL, Leandro. Vieses cognitivos: programados para errar. Raciocínio Clínico, 2020.
Diehl, Leandro. Os três pilares do diagnóstico correto. Raciocínio Clínico, 2020.