Frio na barriga, sudorese, palpitação, arrepio na espinha… Você já sentiu essas reações de medo, de alerta?

Pois na Medicina isso também acontece. É quando nos deparamos com um paciente que, por alguma razão, nos traz um sentimento de desconforto, de insegurança ou de que “tem algo errado“.

No post de hoje, veremos o papel da intuição na Medicina: como ela pode nos ajudar e como desenvolvê-la.

Mais uma coisa: descobrimos onde a intuição fica localizada! Leia até o final e descubra de onde vêm seus “gut feelings”.

“Tem algo errado”

 

Neste ano, uma R2 da Cirurgia Geral veio me procurar para discutir um caso.

 

 

Boa residente, esperta, estava preocupada e desconfortável com um paciente. Era uma vítima de colisão auto-auto, um homem jovem que, por algum motivo, mantinha-se hipotenso.

Ela ficou apreensiva, pois já havia excluído várias causas de hipotensão: choque hemorrágico (incluído ultrassom de abdome), sepse, pneumotórax, hemotórax, lesão medular ou trauma craniano. Mas algo não batia: ele não estava bem.

Discutimos um pouco o caso até que a R2 fez a hipótese de contusão miocárdica. Essa hipótese se comprovou logo após e o paciente recebeu o tratamento adequado. Eu não soube mais detalhes do caso, mas de passagem pelo pronto-socorro, ela me disse rapidamente, em meio à correria, que o paciente havia se recuperado bem.

Confesso que fiquei impressionado com a atitude dela de buscar ajuda na incerteza, e não era a primeira vez que ela tinha me procurado.

 

Gut fellings

Essas sensações viscerais de que “algo está errado”, que nem sempre sabemos explicar, são conhecidas, em língua inglesa, como “gut feelings”. Este é um termo muito bom, para o qual não encontrei uma tradução tão boa. (Intuição? Sexto sentido?) (Se você souber de uma tradução melhor, deixe abaixo nos Comentários.)

Gut fellings

Essas sensações viscerais de que “algo está errado”, que nem sempre sabemos explicar, são conhecidas, em língua inglesa, como “gut feelings”. Este é um termo muito bom, para o qual não encontrei uma tradução tão boa. (Intuição? Sexto sentido?) (Se você souber de uma tradução melhor, deixe abaixo nos Comentários.)

Os gut feelings são definidos como:

A sensação de alarme, associada a uma reação corporal, por algo incerto, não aparente e possivelmente danoso, que surge de maneira súbita

Mas esse pressentimento não precisa ser só de que algo ruim vai acontecer.

Algumas pesquisas entrevistaram médicos com o intuito de saber se eles usavam seus gut feelings na sua prática cotidiana e como eram essas intuições. Descobriram que, além de serem usados com frequência, os gut feelings ainda podiam ser classificados em 2 tipos:

1) Sensação de alarme que “algo está errado”;

2) Sensação de segurança.

Note que estamos falando daquelas intuições rápidas, imediatas, que surgem antes mesmo que o problema seja analisado ou que se tenha um completo entendimento do mesmo. Na nossa história acima, se perguntássemos para a R2 de Cirurgia por que ela estava incomodada com seu paciente hipotenso, provavelmente ela não saberia dar nenhuma boa explicação e só diria: “não sei o que é, mas tem algo errado”.

Por outro lado, a sensação de segurança, menos frequente, nos leva a pensar: “não sei bem por quê, mas posso esperar, observar, liberar este paciente”.

Se você já leu nosso post anterior sobre a Teoria do Processo Dual (se não leu, leia agora mesmo!), já percebeu que essa é uma atividade do Sistema 1: rápida, intuitiva, sem esforço, não-analítica, não-consciente e sujeita a vieses e erros.

Mas será que nossa intuição é útil mesmo? Não será possível nos enganarmos? Ela funciona igual nos iniciantes e nos experts?

Sim, a intuição pode ser útil

Pesquisas com médicos, clínicos gerais, pediatras e hospitalistas mostram que eles usam bastante sua intuição e confiam nela, tomando decisões baseadas no pressentimento.

Nesses casos, a intuição funciona como uma bússola. Ela aponta vagamente para uma direção (“este paciente está grave”), mesmo que ainda não defina um caminho ou destino exato.

Por exemplo: em pacientes com dor torácica ou crianças com suspeita de pneumonia, esse alarme interior muitas vezes foi o que determinou que os médicos tomassem alguma atitude: investigar melhor, proteger o paciente ou encaminhar para um serviço de maior complexidade.

Em outras palavras, nossa intuição é a maneira rápida que nosso cérebro usa para lidar com a incerteza e a imprevisibilidade. É um sinal amarelo que se acende – e, se o médico é atento, ele vai parar e pensar melhor.

Alguns problemas com a intuição

Nossa intuição é um sistema propenso a vieses e erros. Por isso, confiar somente nela, ou esperar que ela apareça para tomarmos uma decisão, não é uma boa estratégia.

Porém, se nossa intuição leva a uma atitude de maior atenção e cuidado, é bastante provável que seja benéfica. Pode ser que um paciente que não tenha nada grave acabe sendo internado ou investigado – mas esse é um “engano” bem melhor do que deixar passar despercebido um paciente com risco de complicação grave ou morte.

Diferenças entre iniciantes e experts

Os experts em diversas áreas têm a reconhecida capacidade de chegar a soluções (hipóteses, diagnósticos e planos de tratamento) de maneira mais rápida, eficiente e com menos esforço que os iniciantes. Isso porque eles acabam usando mais o reconhecimento de padrões (Sistema 1).

Pense no conhecimento médico como uma rede (abstrata e cerebral) associativa e interconectada de conhecimentos, contextos, experiências prévias, mecanismos fisiopatológicos, scripts de doenças, tratamentos, exames.

Essa rede se enriquece com o estudo e a experiência. Dessa maneira, vai ficando mais completa e também mais facilmente disponível à recuperação pela memória do expert.

É claro que, nos iniciantes, essa rede é menos elaborada e estruturada.

Outro ponto interessante é que nessa rede entram também as emoções e sua regulação, a autoconsciência e a metacognição.

Lembra-se das suas reações emocionais diante dum doente grave, quando estudante ou quando começou a dar plantões? Medo, aflição, suar frio, náuseas… E quando um médico experiente estava junto, quais as reações dele? Não eram menos intensas, com mais autocontrole? O raciocínio mais claro e centrado?

Isso é fruto justamente da expertise: de estar acostumado com as situações e saber o que fazer em cada uma delas.

Como surge a intuição?

Sistema 1 reconhece padrões de maneira subconsciente ou não-consciente. É por isso que muitas impressões clínicas são impossíveis de explicar! A gente até pode inventar uma justificativa mais tarde para uma impressão, mas a explicação verdadeira é simplesmente esta: “porque me veio à cabeça”.

Esse conhecimento tácito (ao contrário de explícito) não é verbalizável e é desencadeado por informações interpretadas de maneira inconsciente. Por isso que, antes de ter uma explicação racional, muitas vezes o médico sente, ou pressente, que há algo errado ou que não se encaixa.

Como algo perigoso foi reconhecido, surge a reação visceral de desconforto, aperto abdominal, etc.

Onde fica a intuição?

Antes de falar como desenvolver sua intuição e como usá-la bem, temos uma boa notícia: encontramos sua localização! Apesar de ser chamada de gut feelingsnão é nos guts que ela está. (Desculpem o trocadilho ruim…)

Mais ainda, mostraremos outras áreas cerebrais relacionadas ao raciocínio clínico.

Uma maneira de avaliar a função cerebral é a ressonância magnética funcional. Foi isso que Durning e colaboradores fizeram: avaliaram o raciocínio clínico de médicos experts e iniciantes (ou, como meu filho fala: “pros” e “noobs”, hehe) enquanto estes respondiam casos clínicos. Sabe o que eles descobriram?

Tanto os experientes quanto os mais novos tinham uma rede comum de ativação cerebral, porém várias áreas dos experts sobressaíram.

Veja só que bonito o mapa das funções de cada região que é mais ativada (não se assuste com os nomes):

É nessas duas últimas regiões (a ínsula e o córtex cingulado anterior) onde está a intuição! É aí que passam as conexões neuronais que fazem os padrões reconhecidos encontrarem seus equivalentes afetivos e cognitivos, juntamente com a incerteza e a emoção, num processo não-consciente que resulta nos gut feelings.

Como desenvolver minha intuição?

 

A intuição é uma aprendizagem associativa a partir da experiência.

Assim, uma maneira de adquirir e refinar sua intuição é ter muitas experiências e aproveitá-las ao máximo.

Seja atento e bom observador (incluindo suas reações e pensamentos). Seja curioso. Quanto mais conexões fazemos, maior o aprendizado! Quanto mais experiências tivermos, mais coisas guardamos na memória – que depois serão recuperadas pelo Sistema 1 ou pelo Sistema 2.

Isso acontece porque o conteúdo desse aprendizado pode ser adquirido de 2 maneiras: implícita (só pela experiência) ou deliberada (onde trabalhamos conscientemente nossas experiências).

E não esqueça o papel das emoções!

Os afetos reforçam as associações e são a maior motivação desse sistema. Aproveite situações de maior intensidade emocional, tanto para organizar essas emoções, quanto para estudar e intensificar o aprendizado.

Usando bem a intuição na Medicina

Você já percebeu o papel importante da intuição na Medicina e na vida. Porém, ela é mais confiável quanto maior for sua expertise.

Portanto: residentes, cuidado! Não esqueçam do efeito Dunning-Kruger!

Você terá pressentimentos, mas não confie cegamente neles. Faça como a residente da história: procure auxílio e converse com um colega mais experiente.

Desenvolva também suas estratégias de raciocínio analítico (o Sistema 2). Você pode aprender aqui com a gente, lendo os posts, os casos comentados e acompanhando nossas discussões em vídeo.

Conclusões

Médicos iniciantes, assim como os experientes, também têm pressentimentos, mas estes não são tão confiáveis. As reações viscerais dos novatos ainda estão desorganizadas e a sua rede de conhecimento ainda não está bem formada. Por isso, se você está começando, peça ajuda, calibre suas habilidades e desenvolva seu raciocínio clínico.

Talvez seja a intuição (além do conhecimento) que faz os professores e os médicos mais experientes verem coisas que os alunos não viram. O que você acha?…


PARA SABER MAIS:

Epstein S. Demystifying intuition: What it is, what it does, and how it does it. Psychological Inquiry, 2010.

Durning S, Costanzo M, Artino A et al. Neural basis of nonanalytical reasoning expertise during clinical evaluation. Brain and Behavior, 2015.

Stolper E, Van de Wiel M, Van Royen P et al. Gut feelings as a third track in general practitioners’ diagnostic reasoning. Journal of General Internal Medicine, 2010.

Autor: Fabrizio Almeida Prado

Você pode referenciar o artigo acima usando o Digital Object Identifier (Identificador de Objeto Digital) – DOI.

DOI: 10.29327/823500-61