Apesar de serem essenciais à atividade médica, os processos mentais do raciocínio clínico não são estudados nas faculdades de Medicina – pelo menos, não formalmente. No entanto, o raciocínio clínico pode ser aprendido e treinado.
Além disso, precisamos ter em mente que erros diagnósticos são comuns e muitas vezes trágicos, estando envolvidos em 40 a 80 mil mortes por ano nos Estados Unidos. O Institute of Medicine (IOM) refere que um em cada 10 diagnósticos está errado.
“É provável que a maioria de nós irá sofrer pelo menos um erro diagnóstico na vida, com conseqüências devastadoras.”
Improving Diagnosis in Health Care. IOM, 2016.
Tudo isto nos motiva e estimula – na verdade, praticamente nos obriga! – a disseminarmos o conhecimento existente sobre o raciocínio clínico, e a nos envolvermos diretamente com a prevenção dos erros médicos.
Este blog sobre raciocínio clínico é para você e para todo estudante, médico jovem ou qualquer outro médico ou profissional da saúde que, como a gente, teve e ainda tem inseguranças, mas também tem curiosidade, desejo de melhorar e vontade de cuidar bem dos seus pacientes.
Se você quer saber como funcionam os processos mentais do raciocínio clínico e também melhorar o seu próprio raciocínio, siga nossas postagens e procure praticar ao menos algumas das nossas orientações.
Aqui colocaremos à disposição todos os meios ao nosso alcance para te ajudar a compreender como funciona o raciocínio diagnóstico e a maneira mais humana e correta de enfrentarmos as vicissitudes da Medicina e dos sistemas de saúde.
Vamos começar?…
Pensamento crítico e raciocínio clínico
Embora essenciais ao exercício profissional, os processos mentais do raciocínio clínico são largamente negligenciados antes, durante e depois de todo o treinamento médico. Isso deixa lacunas de formação que se tornam mais perceptíveis quando surge o seu resultado mais nefasto: os erros diagnósticos, mais difíceis de serem prevenidos ou corrigidos a tempo.
O raciocínio clínico usa, na verdade, os princípios e as habilidades do pensamento crítico (critical thinking), que é o processo intelectualmente disciplinado para, ativa e habilmente, conceituar, aplicar, analisar, sintetizar e/ou avaliar uma informação, obtida ou gerada por observação, experiência, reflexão ou comunicação, como um guia para o aprendizado ou para a ação.
O pensamento crítico é baseado em valores intelectuais que transcendem os conteúdos, tais como:Este conceito de pensamento crítico, que nada tem a ver com “julgamento” ou “crítica”, é apolítico na sua natureza e deveria fazer parte da formação geral de qualquer pessoa, desde o curso fundamental. Por esse motivo, diferente do que é apregoado universalmente, o estudo do raciocínio clínico dispensa o conhecimento prévio de qualquer matéria básica, como anatomia, histologia ou bioquímica. Desse modo, o raciocínio clínico pode – na verdade, deve – ser treinado tão logo o estudante entre no curso de Medicina (ou até mesmo antes, no ensino médio).
Todos os instrumentos científicos que a Educação Médica tem ao seu dispor, como a geração de hipóteses, o reconhecimento de padrões, a formulação em contexto, a interpretação de testes diagnósticos, o diagnóstico diferencial e a confirmação diagnóstica, estão incluídos na formação pessoal, e fazem parte do dia-a-dia dos estudantes.
A própria experiência de vida de cada um de nós, desde a infância, nos coloca em uma posição onde estamos continuamente levantando hipóteses diagnósticas e instituindo tratamentos.
Quer um exemplo prático? Veja a história abaixo:
Como chegamos a essa conclusão? Como sabemos que não se trata, por exemplo, de rinite alérgica (outra doença que faz as pessoas espirrarem e os narizes escorrerem)?
Fizemos um resumo (ou representação) do caso com os dados importantes, ou seja: um dos estudantes espirrou e tossiu, num contexto de um agrupamento de pessoas com os mesmos sintomas de tosse, espirros, coriza e irritação na garganta.
Geramos hipóteses: rinite alérgica ou resfriado.
Reconhecemos o padrão de resfriado comum, isso é: “já vi esse filme antes”, através do reconhecimento de scripts, e o analisamos no contexto da reunião.
Fizemos o diagnóstico diferencial entre alergia e resfriado comum analisando a epidemiologia (alergia é individual; resfriado é coletivo e contagioso) e confirmamos o diagnóstico, sem necessidade de nenhum teste diagnóstico adicional.
Esse tipo de processo ocorre milhares de vezes antes do curso de Medicina, pois todo estudante tem conhecimentos prévios de incontáveis condições clínicas.
É dessa maneira que vamos estudar os processos mentais do raciocínio clínico neste blog: seguindo um método e adicionando casos de complexidade crescente à medida que ganhamos conhecimento.
A estrutura do raciocínio clínico
Uma forma de entendermos os processos mentais do raciocínio clínico é o diagrama abaixo, publicado originalmente no New England Journal of Medicine em 2006, e traduzido e modificado para melhor compreensão:
A figura é autoexplicativa, mas o importante é notar que sempre se pode voltar à história do paciente e à coleta de dados e reformular o diagnóstico (ou a hipótese diagnóstica principal), pois essas são as varíaveis mais importantes.
Sob o item coleta de dados, podem-se incluir informações adicionais de história, exame físico ou dados de exames complementares apropriados para cada caso.
Além disso, deve-se lembrar que os processos mentais do raciocínio clínico diagnóstico são sempre dependentes do contexto no qual o caso se desenvolve, e também do conhecimento e experiência do profissional (médico) envolvido.
Os processos mentais do raciocínio clínico
Existem dois sistemas de pensamento que regem o raciocínio em geral e o raciocínio clínico em particular, conhecidos como Sistema 1 e Sistema 2.
Esses sistemas são exemplificados no vídeo abaixo, adaptado do livro de Daniel Kahneman: Rápido e Devagar: Duas Formas de Pensar (Thinking, Fast and Slow), de 2011.
Na clínica, o reconhecimento de padrões do Sistema 1 ocorre universalmente, mas esse processo é especialmente evidente em algumas especialidades como Radiologia e Dermatologia, onde o reconhecimento de padrões (nesse caso, visuais) é inerente ao próprio processo diagnóstico.
Já o Sistema 2 é mais utilizado por estudantes e residentes que costumam raciocinar de maneira retrógrada, isto é, do diagnóstico para os dados, e também por médicos experientes que usam o método hipotético-dedutivo, de forma anterógrada, ou seja: eles acumulam o maior número de dados relevantes da história, exame físico e exames complementares, para então chegar ao diagnóstico. Essa também é a forma de raciocínio propalada através da figura mítica do detetive Sherlock Holmes.
Os dois processos mentais do raciocínio clínico podem ser ativados separada ou simultaneamente, e independem da experiência do médico. Sabe-se, no entanto, que os médicos mais experientes tendem a raciocinar mais com o Sistema 1, pois eles tiveram mais tempo de treinamento, prática, e contato com um grande número de casos. Dessa forma, eles acabam criando uma grande biblioteca de “padrões” ou “scripts” de doenças, que os ajudam a reconhecer as mais diversas patologias de maneira rápida, inconsciente e intuitiva.
Erros diagnósticos
Vamos ver, agora, como os processos mentais do raciocínio clínico funcionam na prática, e como podem levar a erros diagnósticos.
Analise o caso abaixo:
Esse caso tem sido apresentado a múltiplas platéias de médicos (inclusive cardiologistas), residentes e estudantes de Medicina, e invariavelmente a hipótese diagnóstica é:
ENDOCARDITE BACTERIANA
No entanto, para surpresa de todos, esse não é o diagnóstico correto.
Isso ocorre porque a maioria das pessoas,quando sob pressão para obter uma resposta rápida, usa o Sistema 1, rápido e intuitivo. O Sistema 1, de fato, pode ser o mais eficiente em algumas situações – mas não neste caso.
O próprio Sherlock Holmes nos ensina:
“Dados! Dados! Preciso de dados!
Não posso fazer tijolos sem barro!”
Doyle AC. As faias acobreadas (The adventure of copper beeches), 1891-92
Obviamente, faltam dados na história e exame físico para o diagnóstico correto.
Vejamos o caso completo, portanto, depois de uma revisão que trouxe todos os dados pertinentes (os dados novos estão em negrito):
Agora o caso já permite uma análise melhor, e o uso do mesmo Sistema 1 pode levar, desta vez, ao diagnóstico (correto):
ANEMIA FALCIFORME!
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As figuras abaixo ilustram os processos mentais do raciocínio clínico realizados no caso original (incompleto) e no caso revisado (completo):
Uma outra forma de apresentar o raciocínio clínico e a atuação dos dois sistemas de pensamento (o Sistema 1, rápido e intuitivo, e o Sistema 2, lento e deliberado) é aquela preconizada por Kevin Eva no seu seminal artigo What every teacher needs to know about clinical reasoning:
Como se pode ver, no esquema acima há uma interação entre o Sistema 1 (rápido, não analítico) e o Sistema 2 (lento, analítico).
Surge aqui também a importância do resumo ou representação do caso, que é uma síntese dos dados principais do caso. Um bom resumo simplifica a apresentação das informações de uma forma esquemática mas completa, num formato útil para desencadear o processo de raciocínio clínico.
O resumo do caso deve ser sempre feito com o uso de boas palavras-chave, também chamadas de qualificadores semânticos, que são termos médicos de sentido oposto que ajudam a “traduzir” a história clinica e o exame físico. Alguns exemplos de palavras-chave:
– dor intermitente X dor contínua;
– supraumbilical X infraumbilical;
– aguda X crônica;
– leve X intensa;
– localizada X difusa.
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Nas postagens seguintes deste blog, falaremos de muitos assuntos interessantes para médicos e estudantes de medicina:
- Dicas para ouvir a história do paciente e fazer uma boa anamnese;
- Estratégias do raciocínio clínico e como utilizá-las;
- Técnicas da medicina baseada em evidências aplicadas ao diagnóstico;
- Causas mais frequentes de erro diagnóstico;
- Vieses cognitivos frequentemente associados a erros diagnósticos;
- Dicas para prevenir erros diagnósticos;
- Os 3 pilares do diagnóstico correto;
- As doenças de diagnóstico difícil: zebras, camaleões e unicórnios do raciocínio clínico
E muitos outros temas, sempre com uma abordagem prática mas devidamente embasada na literatura, escritos de forma atraente, e cheios de histórias reais, para ajudar você a ser o melhor médico que você pode ser.
Venha conosco nesta jornada!
PARA SABER MAIS:
- Cox M, Irby D, Bowen J. Educational strategies to promote clinical diagnostic reasoning. New England Journal of Medicine. 2006;355(21):2217-2225.
- Institute of Medicine. Improving Diagnosis in Health Care. Washington: National Academies Press, 2015.
- Kahneman D. Rápido e Devagar: Duas Formas de Pensar. Rio de Janeiro: Objetiva, 2012.
- Eva KW. What every teacher needs to know about clinical reasoning. Medical Education. 2005;39(1):98-106.
- Croskerry P. A universal model of diagnostic reasoning. Acad Med. 2009;84:1022-1028.
- Quirk M. Intuition and Metacognition in Medical Education: Keys to Developing Expertise (Springer Series on Medical Education). Heidelberg: Springer Publishing Company, 2006.
Autores:
- Fabrizio Almeida Prado
- Leandro Arthur Diehl
- Pedro Alejandro Gordan
Você pode referenciar o artigo acima usando o Digital Object Identifier (Identificador de Objeto Digital) – DOI.
DOI: 10.29327/823500-1
ótimo texto, me esclareceu muitas dúvidas.
Que bom que você gostou do post, continue nos acompanhando que vem muito mais por aí!
Excelente!
ótimo conteúdo!!
Sempre volto aqui para relembrar e aprender novamente.
Obrigado
Que bom que pudemos ajudar você a aprender alguma coisa, Vinicius! Um abraço,